Essa é a versão antiga do site do ISA que ficou no ar até março de 2022. As informações institucionais aqui contidas podem estar desatualizadas. Acesse https://www.socioambiental.org para a versão atual.
Confira o artigo de Juliana Santilli que critica anteprojeto de lei elaborado pelo Ministério da Agricultura sem nenhuma consulta a organizações da sociedade civil e movimentos sociais. Acesse com exclusividade aqui no site do ISA proposta do ministério que ainda não tinha vindo a público. Juliana Santilli é promotora de Justiça do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, sócia fundadora do ISA e autora do livro “Agrobiodiversidade e Direitos dos Agricultores” (Ed. Peirópolis, 2009)
O Ministério da Agricultura (Mapa) elaborou um anteprojeto de lei para regular o acesso e o uso da agrobiodiversidade. A proposta desrespeita e restringe os direitos dos agricultores familiares, populações indígenas, tradicionais e locais, que são os principais responsáveis pela conservação e uso sustentável da biodiversidade agrícola brasileira. O anteprojeto foi elaborado sem qualquer participação das organizações e dos movimentos sociais representativos dessas comunidades. (O anteprojeto e sua exposição de motivos não eram conhecidos do público e podem ser acessados aqui).
Trata-se de uma proposta elaborada exclusivamente pelo e para o agronegócio, e sem qualquer consulta aos demais atores sociais que compõem o rico e complexo universo agrário e agrícola brasileiro. A própria exposição de motivos do anteprojeto reconhece que o texto “foi amplamente discutido com instituições representativas do agronegócio” – como a Confederação Nacional da Agricultura (CNA), a Organização das Cooperativas do Brasil (OCB) e a Frente Parlamentar da Agropecuária – e que “obteve apoio” de todas essas organizações.
E as organizações representativas da agricultura familiar, tradicional e agroecologica? Foram simplesmente ignoradas em um anteprojeto que pretende nada menos do que regular “o acesso ao patrimônio genético destinado à alimentação e à agricultura, aos conhecimentos tradicionais associados, a repartição de benefícios para a sua conservação e uso sustentável”, bem como “implementar os direitos de agricultor previstos no Tratado Internacional sobre Recursos Fitogenéticos para Alimentação e Agricultura (TIRFAA)”.
A proposta nega direitos aos agricultores, ao afirmar expressamente que: “o acesso à variedade tradicional, local ou crioula ou à raça localmente adaptada ou crioula para as finalidades de alimentação e de agricultura compreende o acesso ao conhecimento tradicional associado e não depende da anuência do agricultor tradicional que cria, desenvolve, detém ou conserva a variedade ou raça” (art.5º, §1º, negritos nossos). A justificativa da exposição de motivos para isso é de que “não importa qual o povo ou comunidade que ‘inventou’ o recurso genético”.
A agrobiodiversidade passa a ser considerada pelo anteprojeto como “bem da União” (art.2º), gerido única e exclusivamente pelo Mapa (art.4º, caput) e sem qualquer participação dos agricultores e de suas organizações. Caberá também unicamente ao Mapa definir como aplicar os recursos destinados à implementação dos direitos de agricultor (art.4º, IX). Ou seja, os agricultores e suas organizações não terão qualquer direito de decidir sobre as formas de utilização de eventuais recursos que lhes sejam destinados por meio do Fundo Federal Agropecuário, administrado também exclusivamente pelo Mapa e sem qualquer participação social.
Promessas vagas
O anteprojeto não prevê benefícios e incentivos concretos para que os agricultores mantenham suas práticas que geram e enriquecem a biodiversidade agrícola. A proposta do Mapa limita-se a promessas vagas de dar preferência na participação em programas governamentais (art.9º do anteprojeto) e de acesso a uma pequena parcela dos recursos do Fundo Federal Agropecuário (art.6º).
Além de vagas, tais promessas restringem-se aos agricultores “que criam, desenvolvem ou detêm variedades tradicionais ou crioulas” (art.9º, caput). Ora, a todos os agricultores familiares, tradicionais e locais – independente de desenvolver ou não variedades tradicionais – deve ser assegurado o direito de acessar material genético conservado por instituições públicas, de participar de programas públicos de custeio agrícola, de apoio à criação de bancos de sementes locais, de reintrodução de variedades locais etc (art. 9º, IV, V, VI, VII e VIII). Não se trata de qualquer benefício especial, mas de direitos a ser assegurados a todos os agricultores que promovem a conservação da agrobiodiversidade.
A contribuição dos agricultores para a conservação da agrobiodiversidade não se limita ao desenvolvimento de variedades locais, ainda que estas tenham grande importância para a biodiversidade agrícola e a segurança alimentar. Os sistemas agrícolas locais e tradicionais compreendem um rico conjunto de conhecimentos, inovações, práticas de manejo, cultivo e seleção de espécies agrícolas, desenvolvidas pelos agricultores, que geram a enorme diversidade de plantas cultivadas e de agroecossistemas em nosso país. Esses conhecimentos, práticas e inovações são um componente-chave da agrobiodiversidade e não podem ser ignorados por um anteprojeto que pretende regular o acesso e o uso da agrobiodiversidade brasileira.
Se, por um lado, o anteprojeto não recompensa devidamente os agricultores, por outro lado, prevê diversos incentivos fiscais e creditícios (artigos 12 e 13) para as empresas que “investirem em pesquisa e desenvolvimento com agrobiodiversidade nativa”. Trata-se de mais um equívoco do anteprojeto, pois os incentivos à pesquisa e ao desenvolvimento de produtos e processos que agreguem valor à agrobiodiversidade nativa devem promover as inovações desenvolvidas pelos agricultores.
Tratado internacional
Os direitos dos agricultores, de natureza coletiva (como o próprio anteprojeto reconhece), não podem ser implementados de forma tão limitada. Trata-se de uma interpretação distorcida e restritiva do Tratado Internacional sobre Recursos Fitogenéticos para Alimentação e Agricultura (TIRFAA), já ratificado pelo Brasil e que o anteprojeto pretende regulamentar no plano nacional (clique aqui para acessar o tratado).
O TIRFAA reconhece os direitos dos agricultores de forma bem mais ampla. O tratado dedica todo o art. 9º ao reconhecimento dos direitos dos agricultores, estabelecendo que: “as partes contratantes (os países que ratificaram o Tratado, como o Brasil) reconhecem a enorme contribuição que as comunidades locais e indígenas e os agricultores de todas as regiões do mundo, particularmente dos centros de origem e de diversidade de cultivos, têm realizado e continuarão a realizar para a conservação e para o desenvolvimento dos recursos fitogenéticos, que constituem a base da produção alimentar e agrícola em todo o mundo”.
O tratado estabelece ainda que a responsabilidade de implementar os direitos dos agricultores é dos países, que devem adotar medidas para proteger e promover os direitos dos agricultores, inclusive:
(a) proteção do conhecimento tradicional relevante aos recursos fitogenéticos para a alimentação e a agricultura;
(b) o direito à repartição equitativa dos benefícios derivados da utilização dos recursos fitogenéticos para a alimentação e a agricultura; e
(c) o direito de participar na tomada de decisões, em nível nacional, sobre assuntos relacionados à conservação e ao uso sustentável dos recursos fitogenéticos para a alimentação e a agricultura.
Repartição de benefícios
O anteprojeto nega os direitos dos agricultores sobre os seus conhecimentos tradicionais associados à agrobiodiversidade (art.5º, §1º). Ao regular a repartição de benefícios decorrentes da exploração econômica de produto oriundo da agrobiodiversidade, a proposta deixa a cargo exclusivo do usuário escolher a modalidade de repartição dos benefícios: quem utiliza os recursos da agrobiodiversidade para fins comerciais ou industriais é que escolhe como vai repartir os benefícios gerados, sem que qualquer poder de decisão seja atribuído aos detentores dos recursos e conhecimentos associados à agrobiodiversidade (art.6º caput).
O anteprojeto considera como uma das formas de repartição de benefícios (a ser escolhida pelo usuário) a simples produção do produto (oriundo da agrobiodiversidade) no país (art.6º, I), independentemente de ser comercializado e/ou protegido por direitos de propriedade intelectual Entre as demais formas de repartição de benefícios, ainda estão previstas a disponibilização do produto sem restrição para pesquisa e melhoramento, o licenciamento livre de ônus, a distribuição gratuita de produtos em programas de interesse social (art. 6º, II, III e IV). Entretanto, diante da possibilidade de que o usuário opte pela repartição de benefícios por meio unicamente da produção do produto no país, é pouco provável que as demais modalidades de repartição de benefícios venham a ser implementadas.
O usuário pode ainda optar por repartir os benefícios pelo pagamento de uma parcela anual de 0,3% da receita ou rendimento líquido obtido com a exploração econômica do produto (art.6º, VI). Tal parcela será depositada no Fundo Federal Agropecuário e será destinada à implementação dos direitos de agricultor. Certamente, haverá pouquíssimos recursos destinados à implementação desses direitos, pois as demais modalidades de repartição de benefícios descritas acima, e que podem ser livremente escolhidas pelos usuários, tendem a ser menos onerosas.
Participação limitada
O anteprojeto também limita a participação dos agricultores na tomada de decisões a assuntos relacionados “à conservação e utilização sustentável das variedades tradicionais, locais ou crioulas, ou das raças localmente adaptadas ou crioulas” (art.9º, III). Ora, o tratado da FAO (art. 9º, c) não restringe o direito de participação dos agricultores às políticas públicas relacionadas a variedades tradicionais, locais ou crioulas. Tal direito deve ser compreendido de forma ampla e inclusiva e abarcar quaisquer decisões políticas que produzam impactos sobre a agrobiodiversidade nativa e sobre os sistemas agrícolas locais que a conservam e enriquecem. Isto inclui a participação das organizações representativas dos agricultores nos órgãos responsáveis pela elaboração e implementação de políticas de gestão da agrobiodiversidade, que não podem ficar unicamente a cargo do Mapa.
Além disto, o anteprojeto, apesar de afirmar, em sua exposição de motivos, que “se baseia na filosofia do TIRFAA”, em momento algum preocupa-se em implementar as disposições do tratado sobre a conservação e a utilização sustentável da agrobiodiversidade, diretamente associadas à implementação dos direitos dos agricultores familiares, locais e indígenas.
O tratado prevê expressamente a obrigação de todos os países signatários, como o Brasil, de “promover ou apoiar os agricultores e as comunidades locais no esforço de manejo e conservação on farm [no campo] de seus recursos fitogenéticos para alimentação e agricultura”, assim como de “promover a conservação in situ dos parentes silvestres de plantas cultivadas, inclusive em áreas protegidas, apoiando, entre outros, os esforços das comunidades indígenas e locais” (art. 5º, c e d).
Além disto, o tratado prevê a obrigação dos países de “promover o fitomelhoramento com a participação dos agricultores, particularmente nos países em desenvolvimento, a fim de fortalecer a sua capacidade para o desenvolvimento de variedades especialmente adaptadas às condições sociais, econômicas e ecológicas, inclusive nas áreas marginais” (art.6º c). Outra obrigação dos países é de “fortalecer a pesquisa que promova e conserve a diversidade biológica, maximizando a variação intraespecífica e interespecífica em benefício dos agricultores, especialmente daqueles que geram e utilizam suas próprias variedades e aplicam os princípios ecológicos para a manutenção da fertilidade do solo e o combate a doenças, ervas daninhas e pragas (art.6º b).
Nenhuma dessas obrigações assumidas pelo Brasil em relação à conservação on farm e in situ e à utilização sustentável da agrobiodiversidade são sequer mencionadas pelo anteprojeto, apesar de sua enorme importância para os agricultores, para a sustentabilidade socioambiental da agricultura, para o enfrentamento das mudanças climáticas e para a segurança alimentar e nutricional de toda a sociedade.
Protocolo de Nagoya
Finalmente, a exposição de motivos do anteprojeto faz uma afirmação equivocada: a de que a legislação nacional deverá definir normas não só para o acesso “aos recursos genéticos da agrobiodiversidade brasileira por outros países”, como para “o acesso aos recursos genéticos de espécies exóticas por instituições nacionais”.
Ocorre que as condições para o acesso aos recursos genéticos exóticos (originários de outros países), como a soja e cana-de-açúcar, serão determinadas pela legislação do país de origem desses recursos, e não pela legislação brasileira. Alguns setores ligados ao agronegócio têm se posicionado no Congresso Nacional contra a ratificação do Protocolo de Nagoya, que visa promover a implementação do terceiro objetivo da Convenção da Diversidade Biológica (CDB): a repartição justa e equitativa dos benefícios derivados da utilização dos recursos genéticos (e dos conhecimentos tradicionais associados). Os setores contrários à ratificação do Protocolo de Nagoya argumentam que a exclusão da soja do sistema multilateral (de acesso facilitado) do tratado criará dificuldades para que as instituições brasileiras acessem recursos genéticos da soja, originária da China, para fins de pesquisa e melhoramento genético.
Esses argumentos não têm fundamento, pois as condições para o acesso aos recursos genéticos da soja serão determinadas pela legislação chinesa, e não pelo Protocolo de Nagoya. Ao ratificar o protocolo, o Brasil estará se comprometendo a respeitar a legislação da China, que – independentemente da assinatura ou não protocolo pelo Brasil – poderá editar normas nacionais sobre o acesso aos seus recursos fitogenéticos de soja. Assinando ou não o Protocolo de Nagoya, o Brasil não poderá violar a soberania da China sobre os seus recursos naturais e fazer coleta de recursos genéticos da soja encontrados em condições in situ no território chinês. Evidentemente, o Protocolo de Nagoya só produzirá efeito após a sua entrada em vigor, o que não ocorreu ainda, e não implicará obrigações em relação às variedades de soja já desenvolvidas no Brasil.
Por outro lado, ao deixar de ratificar o Protocolo de Nagoya, o Brasil revela não apenas uma grande incoerência em seus posicionamentos internacionais – pois trabalhou ativamente pela aprovação do protocolo, e depois pode não ratifica-lo internamente – como também perde oportunidades importantes de auferir benefícios (monetários e não monetários) pela exploração do seu rico e diversificado patrimônio genético.