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Decisões recentes do Supremo Tribunal Federal (STF) colocam em xeque os direitos de centenas de comunidades indígenas que ainda reivindicam suas terras, em especial no Centro-sul. O teor das deliberações mostra, no entanto, que a polêmica deve durar e que ainda não há consenso dentro da mais importante corte do país sobre alguns aspectos da questão.
Uma das decisões foi tomada pela 2ª turma, em meados de setembro, e anulou a demarcação e a portaria declaratória da TI Guyraroká, em Caarapó (MS), argumentando que os índios não estariam na área reivindicada há mais de 70 anos. A determinação baseia-se nas diretrizes adotadas pela corte no caso da TI Raposa-Serra do Sol (RR), em 2009, no qual a data de promulgação da Constituição (5/10/1988) foi indicada como “marco temporal” para comprovar a posse indígena, ou seja, a comunidade teria direito à terra se estivesse nela nessa data.
O problema é que muitos povos indígenas não se encontravam, na época, e ainda não se encontram em seus territórios porque foram expulsos. O próprio acórdão do julgamento da TI Raposa-Serra do Sol reconhece que, em casos como esses, o “marco temporal” não seria válido.
O laudo antropológico da TI Guyraroká atesta que inúmeros grupos Guarani-Kaiowá deixaram suas áreas de ocupação tradicional, nos anos 1940, quando os fazendeiros que as compraram do governo “paulatinamente expulsaram os índios”. O laudo ressalta que “vários documentos evidenciam que os Kaiowá não aceitaram passivamente a saída das terras” e que muitos deles continuaram na região, trabalhando em fazendas, como “parte de uma estratégia do grupo de permanência na terra onde sempre viveram” (leia o laudo).
“A coisa está tão absurda que, hoje, querem nos penalizar por termos sido expulsos de nossos territórios. Querem que assumamos a culpa pelo crime deles”, critica Ava Kaaguy Rete Guarani-Kaiowá, uma das lideranças que foram a Brasília, esta semana, pedir que o STF garanta seus direitos territoriais (saiba mais).
“Esse processo de saída não ocorreu livre de violências, de coações, de estratégias, enganações, técnicas de atração para retirar o índio que estava no fundo da fazenda, para a área de reserva, através de promessas de que lá você ia ter saúde, melhorias etc”, comenta Marcos Homero Ferreira Lima, antropólogo do Ministério Público Federal no Mato Grosso do Sul (MPF-MS).
Em junho de 2012, a Procuradoria da República no estado moveu a primeira de uma série de ações civis públicas para indenizar comunidades indígenas, entre elas a de Guyraroká, pelos danos morais e materiais que sofreram com o processo de colonização no início do século passado.
A coordenadora da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF, Déborah Duprat, considera que a decisão recente do STF precisa ser vista com cautela, mas lembra que o consenso na corte de que o “marco temporal” é inválido quando há “esbulho” dos índios data do início dos anos 1990.
“Exigir a posse contínua e permanente, por toda a vida, dessas comunidades, num determinado território, é desconhecer o processo civilizatório e desenvolvimentista que foi empurrando-as para as margens [do território nacional]”, afirma Duprat.
Raposa-Serra do Sol
Outra controvérsia envolve a própria aplicação, em outras demarcações, das orientações do caso Raposa-Serra do Sol. No julgamento sobre as dúvidas que restaram sobre ele, os chamados embargos, no ano passado, o relator, ministro Roberto Barroso, afirmou que “os fundamentos adotados pela Corte não se estendem, de forma automática, a outros processos em que se discuta matéria similar”. Ele ponderou, no entanto, que qualquer decisão do STF pode ser considerada “diretriz relevante para as autoridades estatais – não apenas do Poder Judiciário – que venham a enfrentar novamente as mesmas questões”. O voto de Barroso prevaleceu, mas acabou abrindo caminho à polêmica.
“O que o ministro Barroso quis dizer é que, ao contrário do que ocorre, por exemplo, com as Ações Diretas de Inconstitucionalidade, a decisão do STF sobre a Raposa-Serra do Sol não vincula o julgamento de nenhum processo posterior, ainda que verse sobre a mesma matéria, seja em primeira instância, seja nos tribunais, inclusive no próprio STF”, ressalta o advogado Maurício Guetta, do ISA. “Portanto, os juízes têm ampla liberdade de interpretação jurídica e de decisão em novos casos”.
Em agosto, o plenário do STF, instância máxima da casa, rejeitou um mandado de segurança que pretendia anular a demarcação da TI Yvy Katu, também em Mato Grosso do Sul, deixando claro que as condicionantes da Raposa-Serra do Sol não seriam aplicáveis. O relator da matéria foi o ministro Ricardo Lewandowiski (leia mais).
Semanas depois, no entanto, em seu voto no caso da TI Guyraroká, que acabou prevalecendo sobre a posição de Lewandowski, o ministro Gilmar Mendes defendeu que as diretrizes do julgamento Raposa-Serra do Sol não devem ser aplicadas apenas “a esse caso específico, mas a todos os processos sobre o mesmo tema”. Mendes disse que o relatório da Funai sobre a TI Guyraroká tem como “fundamento para a declaração da terra indígena o mero fato de ter havido, em momento pretérito, ocupação indígena no local”. Ele afirmou ainda que “esse argumento seria insuficiente para legitimar a demarcação” (veja os votos de ministros, debates na corte e acórdão sobre o caso).
No final de setembro, outra decisão, também da segunda turma, anulou a portaria da TI Porquinhos (MA), ampliada, em 2009, de 79 mil hectares para 301 mil hectares. Segundo o site do STF, para relatora ministra Carmem Lúcia, a portaria desrespeitou a condicionante do caso Raposa-Serra do Sol que vedaria a ampliação de TIs (veja aqui).
Tanto no caso da TI Porquinhos quanto no da TI Guyraroká, os ministros da 2ª turma contrariaram decisões anteriores do Superior Tribunal de Justiça (STJ), a segunda corte mais importante do País.
Jurisprudência
“O quadro que se desenha é bastante preocupante”, analisa Duprat. Ela avalia que a aplicação generalizada das orientações do caso Raposa-Serra do Sol, alvo de intensas críticas do movimento indígena, traria muitas dificuldades para novas demarcações. A expectativa da bancada ruralista, que cresceu no Congresso nessas eleições, é a de que as últimas decisões justifiquem novas ações.
A procuradora reforça, porém, que, com exceção da 2ª turma do STF, é muito difícil fazer um prognóstico sobre a consolidação de jurisprudência sobre o tema. Duprat menciona que, além de decisões divergentes nas duas maiores cortes do País, vários ministros do STF tomaram decisões isoladas defendendo que as condicionantes não seriam aplicáveis a outras situações.
Marcos Lima, do MPF-MS, alerta que, em vez de resolver os conflitos, as decisões recentes do STF podem ampliá-los. “É possível prever que várias terras que já estão no prelo de serem demarcadas serão impactadas. Você simplesmente paralisar ou anular [a demarcação], não vai resolver o problema. Vai perpetuar para todo o sempre o conflito”.
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