Você está na versão anterior do website do ISA

Atenção

Essa é a versão antiga do site do ISA que ficou no ar até março de 2022. As informações institucionais aqui contidas podem estar desatualizadas. Acesse https://www.socioambiental.org para a versão atual.

Parte e reparte: quem fica com a melhor parte?

Printer-friendly version
Nurit Bensusan, biológa e professora visitante da Universidade de Brasília (UnB)

Confira o artigo de opinião de Nurit Bensusan sobre o projeto de lei (PL) 7.735, que pretende regular o acesso aos recursos genéticos da biodiversidade e da agrobiodiversidade e aos conhecimentos tradicionais a eles associados. O texto foi publicado originalmente no jornal Correio Braziliense de 12/11/2014

A exuberância da natureza brasileira é continuamente louvada em prosa e verso, mas quando se trata de leis, essa mesma natureza, orgulho do país, vem sendo, cada vez mais, considerada como uma maldição, da qual devemos nos livrar o mais rápido possível. Um bom exemplo é o Código Florestal: abandonamos uma lei, cujo espírito era conservar florestas para garantir solos e água, e adotamos uma que trata as florestas como um contratempo.

Agora, a mesma lógica aplica-se à regulação do acesso aos recursos genéticos provenientes da nossa biodiversidade (uma planta, um animal, um micro-organismo) e aos conhecimentos associados a esses recursos que os povos indígenas e comunidades tradicionais possuem. No Brasil, o tema é regulado, há 13 anos, pela Medida Provisória (MP) 2186-16/2001. Ao longo desse período, foram feitas várias tentativas de substituir a MP. A questão é que, apesar de não haver dúvidas que ela deve ser alterada, substituí-la por algo pior, não parece uma boa ideia...

Tramita hoje na Câmara dos Deputados mais uma dessas tentativas, o Projeto de Lei (PL) 7.735/2014, de iniciativa do Executivo e fruto dos apelos do setor empresarial que lida com tais recursos, como a indústria farmacêutica e de cosméticos. O PL não foi discutido com os segmentos interessados, como, por exemplo, a comunidade acadêmica, nem com os detentores do conhecimento tradicional, povos indígenas e comunidades tradicionais. E, para piorar, ganhou um inexplicável regime de urgência, dada a complexidade do tema e o tempo que transcorreu desde a primeira tentativa de regular o assunto.

Apesar de trazer alguns avanços em relação à MP, boa parte dos dispositivos sugeridos causa perplexidade por estar em desacordo com os compromissos mais básicos de um governo que se diz preocupado com o social e com aqueles assumidos em fóruns internacionais, como a Convenção da Biodiversidade (CDB) da ONU.

Um dos pilares da CDB é a repartição de benefícios derivados do uso dos recursos da biodiversidade. Ou seja, quem usa algum recurso aufere algum benefício com isso e deve dividi-lo, de alguma forma, com aquele que o possui. Isso se estende ao conhecimento tradicional: aquele que o usa como subsídio para acessar ou utilizar um recurso da biodiversidade deve também repartir os benefícios auferidos.

No PL em tramitação, a repartição de benefícios incidirá apenas sobre produtos acabados, definidos como aqueles que não requerem nenhum tipo de processo produtivo adicional. Esse é um dos dispositivos que causa perplexidade: não haverá repartição de benefícios sobre os produtos intermediários, que também geram lucro? Produtos que servem como importantes ferramentas para a geração de outros produtos ficarão de fora? E esses certamente são muitos.

Várias perguntas emergem dessa perplexidade: quem se beneficia com essa situação? Como essa flexibilização em benefício do setor privado dialoga com a abordagem da recente campanha eleitoral de oposição à subordinação dos interesses comuns aos mercados? Um dos argumentos usados em favor dessa repartição de benefícios limitada é a incapacidade do governo de fiscalizar e controlar todos os elos da cadeia. Tal argumento levado às últimas consequências serviria para liberar o contrabando e até mesmo aceitar a sonegação de impostos: como não conseguimos coibir o contrabando, nem garantir a arrecadação, vamos legalizar as atividades que derivam dessa incapacidade legal, assim não temos com que nos preocupar...

Outro dispositivo que causa perplexidade é a exclusão das micro e pequenas empresas da necessidade de repartir benefícios. Poder-se-ia imaginar que isso é apenas uma maneira simpática de incentivá-las, mas uma boa parte das empresas que acessa recursos da nossa biodiversidade é desse porte. O resultado é que, em numerosos casos, não haverá repartição de benefícios.

Há vários outros artigos no projeto que visam reduzir a repartição de benefícios. Enfim, a natureza é grandiosa, a diversidade é enorme, o potencial gigantesco, os benefícios inúmeros e a repartição, segundo a proposta, será ínfima. Como o maior beneficiário dessa repartição de benefícios seria a própria União, as pulgas multiplicam-se atrás da orelha.