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Na manhã desta quarta-feira (10), em Brasília, ocorreram as solenidades de entrega do relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV) à sociedade brasileira e à Presidência da República. O relatório, com um total de mais de 4300 páginas divididas em três volumes, inclui povos indígenas entre as vítimas de graves violações de direitos humanos ocorridas entre 1946 e 1988, reconhecendo que estes povos, assim como seus apoiadores, foram de fato vistos pelo Estado brasileiro como seus opositores. Leia a íntegra do documento.
O capítulo sobre os povos indígenas do relatório da CNV inaugura a inclusão das populações indígenas nos debates oficiais sobre a Justiça de Transição, em conjunto com o processo concedeu anistia política a um grupo de 14 indígenas do povo Aikewara, em setembro deste anos (veja mais). O texto conclui: “o Estado brasileiro, por meio da CNV, reconhece a sua responsabilidade, por ação direta ou omissão, no esbulho das terras indígenas ocupadas ilegalmente no período investigado e nas demais graves violações de direitos humanos que se operaram contra os povos indígenas articuladas em torno desse eixo comum” (p. 247).
Inserido no Volume II do relatório geral, assinado por Maria Rita Kehl, o capítulo “Violações de direitos humanos dos povos indígenas” (veja aqui) apresenta, ao longo de 60 páginas, um número limitado de casos de violações de direitos contra povos indígenas, entre eles: o esbulho dos territórios Ava-Guarani, Guarani Kaiowá, no noroeste do Paraná e no sul do Mato Grosso do Sul, respectivamente; a emissão de certidões negativas sobre os territórios dos Nambikwara (MT); os processos de desagregação social e extermínio dos Xetá (PR), Tapayuna (MT) e Avá-Canoeiro (TO); as mortandades causadas pela construção estradas e hidrelétricas entre os Panará (MT), Parakanã (PA), Akrãtikatejê (PA), Yanomami (RR) e Waimiri-Atroari (AM). O texto apresenta também a constituição de sistemas punitivos sob a égide do SPI e da Funai e práticas de tortura, como no caso do Reformatório Krenak (MG), em que indivíduos de vários povos foram encarcerados. No capítulo sobre a Guerrilha do Araguaia, no Volume I do relatório, as violações cometidas contra os Aikewara (PA) também foram detalhadas.
O capítulo apresenta a estimativa de que pelo menos 8.350 indígenas foram mortos no período investigado e revela, como uma das particularidades dessas violações, o fato de se destinarem não a indivíduos, mas a povos inteiros - por meio do esbulho de suas terras, remoções forçadas de seus territórios, contágio por doenças infecto-contagiosas, prisões, torturas e maus tratos. Ele é fechado por uma lista de recomendações que vão desde pedidos públicos de desculpas do Estado até a regularização, desintrusão e recuperação ambiental de terras indígenas, abrindo perspectivas de reparação coletiva.
Com base em pesquisas documentais e material colhido em viagens a campo, audiências públicas e depoimentos, o capítulo constata que “em quase todos os casos, não apenas uma, mas múltiplas violações ocorreram contra um mesmo povo” (p. 215). O texto registra que os efeitos dessas violações, em muitos casos, são sentidos ainda hoje, mais de 25 anos depois da promulgação da Constituição de 1988. Entre as principais conclusões está também a de que essas violações obedeciam a uma sistemática que transformava “o ‘modo de ser’ de cada um dos povos indígenas em alvo político da perseguição do Estado visando a apropriação de seus territórios” (p. 246).
Apesar de trazer perfis de apenas 434 mortos e desaparecidos políticos - os quais a CNV teve condições de confirmar -, o texto do relatório reconhece que as graves violações contra camponeses e indígenas resultaram em um número de vítimas ainda mais expressivo, fato reiterado pelo próprio coordenador da CNV, Pedro Dallari, durante a cerimônia de entrega à Presidência. Diferentemente das violações cometidas contra outros setores da sociedade, os crimes perpetrados contra indígenas careciam de sistematização até o momento e, portanto, o relatório indica a continuidade das investigações, por meio da instalação de uma comissão exclusiva para aprofundar e ampliar o escopo da pesquisa.
Colaboraram Isabel Harari e Rafael Pacheco Marinho