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Os 37 bodes e o PL sobre acesso à biodiversidade e ao conhecimento tradicional

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Nurit Bensusan, assessora do ISA e especialista em biodiversidade

Por iniciativa do senador João Capiberibe (PSB-AP) aconteceu, ontem (1/4), no Senado, o seminário “Marco Legal da Biodiversidade: patrimônio, direitos ou mercadoria?”. Foi uma bem vinda tentativa de tornar mais democrático o debate sobre o Projeto de Lei da Câmara (PLC) nº 2/2015, que trata do acesso ao patrimônio genético brasileiro e ao conhecimento tradicional a ele associado. Na Câmara, não houve iniciativa semelhante.

Depois de longos anos trabalhando com esse tema, é interessante observar como questões que eram essenciais e inegociáveis para os detentores de conhecimento tradicional e para os defensores da biodiversidade brasileira, são tratadas agora como favores concedidos, ao invés de direitos adquiridos.

De fato, esse diálogo é fundamental, mas é tardio e insuficiente. E é justamente aqui que entram os bodes. Esse projeto de lei é como colocar 40 bodes numa sala, não dá nem para respirar, nem para se mexer.

O relatório produzido pela Comissão de Meio Ambiente do Senado, sob a coordenação do senador Jorge Viana (PT-AC), melhora um pouco a proposta. Os participantes do seminário destacaram a postura de Viana no sentido de ouvir as demandas de povos indígenas e comunidades tradicionais e buscar o consenso entre os setores interessados, do que resultou um parecer com 15 modificações de mérito em relação ao texto vindo da Câmara. Mas seguimos com 37 bodes na sala e nem temos certeza se os três outros bodes foram embora mesmo ou se retornarão quando o PL voltar à Câmara.

Em sua fala, a presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), Helena Nader, argumentou que pessoas físicas e jurídicas sediadas no exterior devem se associar a instituições nacionais para desenvolver atividades ligadas ao acesso ao patrimônio genético e ao conhecimento tradicional. Vale ressaltar, como muitos dos que a sucederam, que Nader frisou que defende também todos os pontos levantados pelos detentores de conhecimento tradicional.

Na sequência, Adriana Diaféria, da Coalizão Empresarial pela Biodiversidade, fez um histórico do que levou as associações de empresas do ramo de cosméticos, higiene e fármacos a organizarem-se para pressionar o governo por um novo marco legal do tema. Vale ressaltar que a própria ideia de “biodiversidade” do grupo é utilitarista e reducionista. Biodiversidade não é sinônimo de patrimônio genético, biodiversidade é muito mais do que isso e essas empresas estão muito longe de serem “pela biodiversidade”.

Diaféria chamou atenção para dois pontos que estão sendo alvo de controvérsias no relatório da Comissão de Meio Ambiente. O primeiro é a questão dos elementos principais de agregação de valor. Tradução: no projeto, só há repartição de benefícios sobre um produto acabado onde o recurso genético ou o conhecimento tradicional é considerado um dos “elementos principais de agregação de valor”. Caso contrário: nadica de nada, ou seja, não há repartição de benefícios. Evidentemente, detentores de conhecimento tradicional e defensores do nosso patrimônio genético querem que o termo “principais” seja retirado e o setor privado não quer. Tal atitude das empresas é condizente com a lógica que pautou a elaboração do projeto: repartição de benefícios deverá ser uma exceção, a regra será a isenção. E isso em nome da biodiversidade...

Outro ponto que a representante do setor privado mencionou é um dispositivo, no mínimo curioso, que está no PL: a isenção de repartição de benefícios tanto para quem acessou patrimônio genético antes do ano 2000 quanto para quem passar a explorar economicamente o produto acabado após a vigência dessa nova lei. Diaféria afirmou que o texto do PLC estaria de acordo com a Convenção da Diversidade Biológica (CDB), tratado internacional ratificado pelo Brasil. A CDB, no entanto, estabelece a obrigação de repartir benefícios. Segundo o secretario executivo da CDB, o projeto fere a convenção (veja aqui).

Maurício Guetta, do ISA, a deputada federal Janete Capiberibe (PSB-AP) e Maíra Smith, da Fundação Nacional do Índio (Funai), defenderam os direitos, tolidos e afrontados por esse PL, dos detentores de conhecimento tradicional. Um ponto comum de suas falas foi a preocupação em assegurar que eventuais mudanças positivas no texto do PL não se percam quando ele retornar à Câmara.

A ministra do Meio Ambiente, Izabella Teixeira, esteve no seminário e apenas fez uma fala genérica defendendo o projeto. Já o secretário executivo do MMA, Francisco Gaetani, eximiu-se de toda e qualquer responsabilidade sobre o processo de elaboração do PL e suas consequências. Ele alegou que o MMA não tem poder convocatório para consultar as “populações tradicionais” (isso mesmo depois da consolidação da expressão “povos e comunidades tradicionais”, pela Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais). Disse também que o PL protege o conhecimento tradicional e contrariou Adriana Diaféria ao comentar que o MMA fez poucos encontros com esse setor. Gaetani disse que o MMA não responde pelo governo e sim o coletivo de ministérios envolvidos nesse projeto. Ele tentou minimizar as declarações de Bráulio Dias na entrevista ao ISA.

A verdade é que ainda há dispositivos no PLC que ferem a CDB, o Protocolo de Nagoya (tratado internacional sobre recursos genéticos e conhecimentos tradicionais), a Constituição Federal; ferem o bom senso, os direitos dos detentores de conhecimento tradicional, o direito da sociedade brasileira de aferir benefícios derivados de sua biodiversidade; ferem a imagem das empresas que negociaram o projeto de lei, mostrando que suas políticas de responsabilidade socioambiental são apenas propaganda; ferem a imagem do Ministério do Meio Ambiente, indicando que não está a serviço do bem público, e sim a serviço de interesses específicos.

Alguns dos participantes do seminário deixaram claro que, diante do desequilíbrio no texto do projeto, podem ser ajuizadas ações de inconstitucionalidade e ações individuais contra a nova lei, gerando insegurança jurídica e dificuldades de implementação. Gerando talvez até saudades da Medida Provisória (MP) 2186-16, que regulamenta o tema hoje.

Enfim, 37 ou 40... os bodes vão continuar na sala...