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Um dos últimos decretos assinados por Dilma sobre acesso ao patrimônio genético e conhecimento tradicional favorece empresas dos setores farmacêutico, cosmético e alimentar. Leia o artigo da coordenadora adjunta de Política e Direito do ISA, Nurit Bensusan, sobre o assunto
Entre os últimos atos da presidente Dilma, está o Decreto 8.772 de 11 de maio de 2016 que regulamenta a Lei 13.123/2015. A norma trata do acesso ao patrimônio genético e ao conhecimento tradicional, foi resultado de um processo de elaboração pouco democrático e menos ainda equilibrado e remeteu para a regulamentação muitos aspectos que foram abordados no novo decreto (leia mais).
Ao estabelecer um novo marco legal para a questão, em substituição a Medida Provisória 2186-16, a Lei 13.123/2015 foi infeliz, colocando sob ameaça tanto o patrimônio genético brasileiro, o conhecimento de povos indígenas e comunidades tradicionais e a nossa agrobiodiversidade, quanto a possibilidade de benefícios derivados do uso da nossa biodiversidade que apoiariam tanto sua conservação, como a pesquisa e a geração de inovação (sabia mais no box abaixo).
Ou seja, o espaço para uma regulamentação a contento era bastante exíguo. Ainda assim, o decreto agrava dispositivos inconstitucionais da lei. Também afronta a Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB) e a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ambos tratados internacionais ratificados pelo Brasil.
Por exemplo, como é possível obedecer ao preceito constitucional, presente no artigo 225, parágrafo 1º, inciso II da Carta Magna, que reza que ao Poder Público cabe “preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético”, com um sistema que possui, quando muito, instrumentos de rastreabilidade apenas nominais? A lei falha em estabelecer mecanismos de fiscalização, mas o decreto vai mais além, permitindo que atividades como a pesquisa, o desenvolvimento tecnológico, o requerimento de propriedade intelectual, a remessa de amostras do patrimônio genético e a exploração econômica de produtos acabados contendo patrimônio genético ou conhecimento tradicional aconteçam sem nenhum monitoramento do Estado. Dessa forma, dificilmente será mantida a integridade de nosso patrimônio genético.
Em relação à CDB, há diversos dispositivos do decreto em desacordo com seus preceitos básicos. Por exemplo, o artigo 8j da Convenção diz que cada país deve “em conformidade com sua legislação nacional, respeitar, preservar e manter o conhecimento, inovações e práticas das comunidades locais e populações indígenas com estilo de vida tradicionais relevantes à conservação e à utilização sustentável da diversidade biológica e incentivar sua mais ampla aplicação com a aprovação e a participação dos detentores desse conhecimento, inovações e práticas; e encorajar a repartição equitativa dos benefícios deles oriundos da utilização desse conhecimento, inovações e práticas.”
Nada disso será feito no âmbito desse novo marco legal, pois, sem mecanismos de fiscalização e de rastreabilidade, não é possível falar em respeito e manutenção dos conhecimentos, inovações e práticas das comunidades locais e povos indígenas. Além disso, a repartição de benefícios, quando ocorrer – dadas as muitas isenções nesse novo arcabouço jurídico – não será nem justa, nem equitativa, pois a lei não oferece possibilidades para que isso aconteça e o decreto corrobora tal cenário.
A lógica da CDB é também desafiada, pois não há no novo marco legal nenhuma previsão de consentimento prévio informado para o acesso ao patrimônio genético, não havendo tampouco nenhum mecanismo de reconhecimento da contribuição das inovações e práticas dos detentores de conhecimento tradicional sobre o patrimônio genético. O resultado é que, apesar dos comprovantes, certificados e atestados que o decreto se compromete a fornecer, o âmago da CDB está em xeque: não haverá repartição justa e equitativa de benefícios.
Os favorecidos
Não há nenhuma dúvida que esse novo marco legal é muito favorável aos usuários do patrimônio genético e dos conhecimentos tradicionais, ou seja, as empresas dos setores farmacêutico, cosmético, alimentar, de sementes etc. Os mecanismos de verificação, por eles apontados como burocracia inaceitável, não condicionam nenhuma das atividades ligadas ao acesso ao patrimônio genético e ao conhecimento tradicional. A repartição de benefícios será uma exceção e não a regra, e mais excepcional ainda será se for justa e equitativa, pois não há instrumentos para garantir direitos e minorar o desequilíbrio das relações entre detentores de conhecimento tradicional e usuários.
Esses são apenas alguns exemplos que mostram quem são os beneficiários desse novo marco legal. Ainda assim, no dia em que o decreto foi assinado, tanto o Ministério da Agricultura, quanto do Desenvolvimento, Indústria e Comércio (MDIC) relutavam em juntar suas assinaturas ao texto, alegando que ele não estava a contento, fazendo coro com o insaciável setor empresarial brasileiro. Pior ainda, o Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), que não assinou o decreto, possivelmente alegando que a pesquisa ficaria comprometida por ele. O que tais setores não percebem é que sem respeito e sem reconhecimento da importância do conhecimento tradicional e sem que a repartição de benefícios derivada do uso da nossa biodiversidade seja justa e equitativa, não haverá atmosfera para geração de inovação, tampouco para a realização de pesquisa e de desenvolvimento tecnológico, nem condições para a conservação da nossa natureza.
Os recursos genéticos da biodiversidade são encontrados em animais, vegetais ou micro-organismos, por exemplo, em óleos, resinas e tecidos, encontrados em florestas e outros ambientes naturais. Já os recursos genéticos da agrobiodiversidade estão contidos em espécies agrícolas e pastoris. Comunidades de indígenas, quilombolas, ribeirinhos e agricultores familiares, entre outros, desenvolvem e conservam, por décadas e até séculos, informações e práticas sobre o uso desses recursos. Esses são os chamados conhecimentos tradicionais.
Tanto o patrimônio genético quanto os conhecimentos tradicionais servem de base para pesquisas e produtos da indústria de remédios, sementes, gêneros alimentícios, cosméticos e produtos de higiene, entre outros. Por isso, podem valer milhões, bilhões em investimentos. O Brasil é a nação com maior biodiversidade do mundo e milhares de comunidades indígenas e tradicionais, daí ser alvo histórico de ações ilegais de biopirataria, crime que a nova lei deveria coibir e punir.
A Convenção da Diversidade Biológica (CDB), tratado internacional que regula o tema dos recursos genéticos e conhecimentos tradicionais, prevê que quem usa e explora economicamente os recursos genéticos e conhecimentos tradicionais deve remunerar, de forma “justa e equitativa”, os detentores desses recursos e conhecimentos, reconhecendo-os como instrumento valioso de produção de saber.
“Consentimento livre, prévio e informado” é a consulta feita a quem detém os recursos genéticos e conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade – as comunidades indígenas e tradicionais – sobre seu uso e exploração. Todo uso que se pretende fazer desses recursos e conhecimentos deve ser precedido de um processo de discussão com a comunidade que os detém, de modo que ela seja informada, conforme sua língua e costumes, do que se pretende fazer, dos produtos e vantagens a serem obtidos, garantindo a ela tempo suficiente para entender essas informações e ser capaz de decidir e autorizar, ou não, de forma autônoma, o uso pretendido. Se a consulta implicar uma autorização de uso e, por sua vez, ela significar o desenvolvimento de um produto ou processo com uso econômico, pode também gerar um contrato de repartição de benefícios entre as partes.