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Galinhas como metáforas essenciais e o novo marco legal do patrimônio genético

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Nurit Bensusan, especialista em Biodiversidade e coordenadora adjunta de Política e Direito do ISA

No 3º artigo da série sobre o novo marco legal de acesso e exploração do patrimônio genético e conhecimento tradicional, a especialista Nurit Bensusan denuncia que a repartição de benefícios da biodiversidade não será a regra e nem cumprirá a sua função


Dizem por aí que uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa. Esse ditado aplica-se como uma luva ao novo marco legal de acesso ao patrimônio genético e ao conhecimento tradicional. Segundo seu texto, a Lei 13.123/2015 trata da “repartição justa e equitativa dos benefícios derivados da exploração econômica de produto acabado ou material reprodutivo oriundo de acesso ao patrimônio genético ou ao conhecimento tradicional associado, para conservação e uso sustentável da biodiversidade”. Não há dúvida de que a lei e o decreto que a regulamenta (8.772/2016) tratam, de fato, da repartição de benefícios.

Mas, outra coisa, completamente diferente, apesar do que está escrito na lei, é a repartição justa e equitativa de benefícios. Primeiro, para que a repartição de benefícios seja justa e equitativa ela precisa acontecer, como regra. No novo marco legal, a repartição de benefícios é quase uma exceção. Ela só é aplicável quando o componente do patrimônio genético ou o conhecimento tradicional for caracterizado como “um dos elementos principais de agregação de valor” do produto acabado. Os elementos principais de agregação de valor, segundo a nova legislação, são aqueles cuja presença no produto acabado é determinante para a existência de suas características funcionais ou para a formação do apelo mercadológico. Além disso, microempresas e empresas de pequeno porte são isentas da repartição de benefícios, bem como produtos intermediários. Ou seja, haverá muito patrimônio genético e muito conhecimento tradicional usado sem nenhuma repartição de benefícios.

Só essa situação já revela quão distante a repartição de benefícios do novo marco legal está de algo que pode ser chamado de justo e de equitativo. Mas, há mais, muito mais…
Para resolver a questão do conhecimento tradicional compartilhado por diferentes etnias, o novo marco criou um mecanismo onde a repartição é realizada de forma direta apenas com aqueles detentores do conhecimento que consentiram com seu uso. Isso quer dizer que, mesmo que haja vários povos e comunidades que compartilhem um determinado conhecimento, apenas os que foram consultados e anuíram com o acesso ao conhecimento serão parte do acordo de repartição. Os outros, teoricamente, serão compensados pelos recursos que devem ser depositados no Fundo Nacional de Repartição de Benefícios. Ainda não está claro, no entanto, como se dará o acesso ao fundo. Teme-se que seja tão fundo que acabe se revelando um abismo…

Assim, além da repartição não ser justa, por não abarcar todas as situações onde o patrimônio genético e o conhecimento tradicional serão utilizados, e tampouco equitativa, por privilegiar alguns em detrimento de outros sem nenhum critério, ela perverte a lógica que deveria nortear o processo. A repartição foi concebida, no âmbito da Convenção da Biodiversidade (CDB), como uma estratégia de conservação. A ideia é a mesma da galinha de ovos de ouro: cuidamos da galinha, ou seja, preservamos nossa biodiversidade, e usamos seus ovos de ouro, ou seja, a inovação gerada a partir dela, traduzida em produtos como medicamentos e cosméticos. Com o que ganhamos com os ovos de ouro, garantimos o bem estar da nossa galinha. Se não há repartição justa e equitativa de benefícios, é como se não houvesse nenhum retorno para nossos ovos de ouro e o bem estar de nossa galinha, isto é, da nossa biodiversidade, fica ameaçado.

Mas é claro que alguém lucra com os ovos de ouro, pelo menos por um tempo, enquanto a galinha viver e colocar ovos. O resultado é que pode ser que haja inovação a partir da biodiversidade, mas dificilmente haverá retorno para assegurar sua conservação e a manutenção da cultura dos detentores de conhecimento tradicional, responsáveis, muitas vezes, pela preservação da integridade do patrimônio genético.
O novo marco legal resulta, pois, numa oportunidade perdida para o país. Sua mediocridade pode ser descrita também usando a figura da galinha, numa frase do escritor angolano José Eduardo Agualusa: “as asas acontecem tanto aos anjos, quanto aos demônios, quanto às galinhas. Por precaução, o melhor é tratar a todos como se fossem galinhas.” É isso, um novo marco legal ao estilo de galinhas, mas não daquelas que colocam ovos de ouro…

O que são os recursos genéticos e conhecimentos tradicionais?

Os recursos genéticos da biodiversidade são encontrados em animais, vegetais ou micro-organismos, por exemplo, em óleos, resinas e tecidos, encontrados em florestas e outros ambientes naturais. Já os recursos genéticos da agrobiodiversidade estão contidos em espécies agrícolas e pastoris. Comunidades de indígenas, quilombolas, ribeirinhos e agricultores familiares, entre outros, desenvolvem e conservam, por décadas e até séculos, informações e práticas sobre o uso desses recursos. Esses são os chamados conhecimentos tradicionais. Na nova legislação, aqueles grupos sociais são designados de “detentores” desses conhecimentos.

Tanto o patrimônio genético quanto os conhecimentos tradicionais servem de base para pesquisas e produtos da indústria de remédios, sementes, gêneros alimentícios, cosméticos e produtos de higiene, entre outros. Por isso, podem valer milhões, bilhões em investimentos. Na nova legislação, pesquisadores e desenvolvedores desses produtos são chamados de “usuários” dos recursos genéticos e conhecimentos tradicionais.
O Brasil é a nação com maior biodiversidade do mundo e milhares de comunidades indígenas e tradicionais, daí ser alvo histórico de ações ilegais de biopirataria, crime que a nova lei deveria coibir e punir.

O que é a “repartição de benefícios” prevista na nova lei?

A Convenção da Diversidade Biológica (CDB), tratado internacional que regula o tema dos recursos genéticos e conhecimentos tradicionais, prevê que quem usa e explora economicamente os recursos genéticos e conhecimentos tradicionais deve remunerar, de forma “justa e equitativa”, os detentores desses recursos e conhecimentos, reconhecendo-os como instrumento valioso de produção de saber.

O que é o “consentimento livre, prévio e informado”?

“Consentimento livre, prévio e informado” é a consulta feita a quem detém os recursos genéticos e conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade – as comunidades indígenas e tradicionais – sobre seu uso e exploração. Todo uso que se pretende fazer desses recursos e conhecimentos deve ser precedido de um processo de discussão com a comunidade que os detém, de modo que ela seja informada, conforme sua língua e costumes, do que se pretende fazer, dos produtos e vantagens a serem obtidos, garantindo a ela tempo suficiente para entender essas informações e ser capaz de decidir e autorizar, ou não, de forma autônoma, o uso pretendido. Se a consulta implicar uma autorização de uso e, por sua vez, ela significar o desenvolvimento de um produto ou processo com uso econômico, pode também gerar um contrato de repartição de benefícios entre as partes.