Essa é a versão antiga do site do ISA que ficou no ar até março de 2022. As informações institucionais aqui contidas podem estar desatualizadas. Acesse https://www.socioambiental.org para a versão atual.
Diferentemente do que dizem políticos do Amazonas, existem grandes interesses econômicos por trás da proposta de reduzir a área para conservação, na região de Apuí, no sul do Estado. É o que revela um levantamento inédito do Programa de Monitoramento de Áreas Protegidas do ISA (veja o mapa abaixo e acesse a nota técnica ).
Parlamentares, prefeitos e a Federação de Agricultura e Pecuária do Amazonas (FAEA) insistem que a implantação de Unidades de Conservação (UCs) vai expulsar principalmente pequenos agricultores. Se a ideia de retalhar as reservas ambientais sair do papel, no entanto, um projeto hidrelétrico do senador Ivo Cassol (PP-RO), mineradoras nacionais e estrangeiras, latifundiários e, provavelmente, grileiros de terra serão beneficiados.
Em fevereiro, o ISA noticiou que um movimento encabeçado pela bancada amazonense no Congresso articulava com a Casa Civil a elaboração de um projeto de lei para extinguir a Área de Proteção Ambiental (APA) de Campos de Manicoré, diminuir o Parque Nacional (Parna) do Acari, a Reserva Biológica (Rebio) de Manicoré, as florestas nacionais (Flonas) de Urupadi e Aripuanã, todas criadas em maio de 2016. A área protegida total cairia de 2,6 milhões de hectares para 1,6 milhão de hectares, um decréscimo de 65%. O território perdido para a conservação, de 1 milhão de hectares, equivale à metade do estado de Sergipe (saiba mais).
Na semana passada, os políticos amazonenses reuniram-se com o ministro do Meio Ambiente, Sarney Filho. A conversa resultou na instituição de um grupo de trabalho, com técnicos do governo e representantes dos parlamentares, para analisar o caso. No início de abril, os dois lados tentarão chegar a um acordo num novo encontro. Pego de surpresa pelas articulações com outra pasta, Sarney resiste à ideia, mas a pressão é muito forte.
Os técnicos do Ministério do Meio Ambiente (MMA) explicam que o desenho final das UCs deixou de fora delas estradas, vários empreendimentos e ocupações consideradas legítimas. Lembram também que, com exceção da Rebio, as reservas permitem atividades econômicas, como a produção agropecuária, mineração, manejo florestal e turismo.
“Ninguém está criando UCs em cima de uma ocupação antiga. Ouvimos muito esse discurso. Não é isso”, afirma a secretária de Biodiversidade e Florestas do MMA na época em que as unidades foram instituídas, Ana Cristina Barros. Ela conta que as negociações com o governo e políticos amazonenses, população local e outros ministérios foram exaustivas. O MMA teria cedido em vários pontos.
O senador Omar Aziz (PSD-AM) discorda e diz que as tratativas foram atropeladas. Para ele, a decretação das UCs, no último dia de mandato de Dilma Rousseff, teria sido uma represália aos parlamentares do Amazonas que votaram pelo impeachment. Aziz reafirma que os principais prejudicados com as UCs seriam pequenos produtores rurais instalados na região há décadas. “Não existe grande agricultor no Amazonas. Não temos grandes plantações”, diz.
“Esse movimento não é um fato isolado, mas faz parte de uma estratégia com várias frentes, operada por setores do agronegócio, mineração e produção de energia, para fragilizar o Sistema Nacional de UCs”, denuncia a coordenadora de Política e Direito do ISA, Adriana Ramos. “Considerando a atual retomada do desmatamento, essa proposta demonstra falta de responsabilidade e compromisso com a conservação. O governo federal deveria ser o principal interessado em fortalecer seu principal instrumento de combate ao desflorestamento, que é a criação de UCs, conforme reconhece a nova versão do próprio Plano de Combate ao Desmatamento na Amazônia”, completa.
Se o território atual do Parna for mantido, Ivo Cassol perderá, logo de cara, pelo menos R$ 1,2 milhão, gasto no estudo de inventário hidrelétrico do Rio Acari, que corta a área. A usina prevista foi estimada em até R$ 700 milhões. Conforme a legislação, os parques não permitem empreendimentos ou atividades econômicas em seu interior, a não ser o turismo.
A empresa do parlamentar, Eletrossol, pediu à Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) a autorização para iniciar a avaliação do potencial hidrelétrico do rio, em 2012, e enviou o primeiro inventário, em 2014, antes da decretação das reservas ambientais. O estudo foi rejeitado e, de acordo com Cassol, foi reformulado e reapresentado à agência, em fevereiro deste ano, nove meses após a criação do parque, para que aquele investimento inicial não fosse perdido. Caso o governo resolva diminuir a UC, autorize a barragem e outra empresa ganhe a concessão da hidrelétrica, ela será obrigada a ressarcir a Eletrossol.
O senador minimiza seu interesse no empreendimento porque a Aneel, ao analisar o caso, teria recomendado um projeto com potencial de geração de 140 MW, enquanto a Eletrossol explora hoje apenas usinas de até 30 MW. O desenho proposto pelos parlamentares amazonenses, no entanto, exclui a região por onde passa o Rio Acari do parque nacional (veja no mapa acima).
Cassol defende a proposta de redução das reservas, mas nega que esteja participando das negociações para viabilizá-la. “É melhor uma redução sem litígio do que se criar expectativas e deixarmos esse povo abandonado”, afirma, referindo-se às comunidades locais.
O levantamento do ISA mostra que há 205 pedidos e autorizações de pesquisa e exploração protocolados no Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) cujos polígonos estão sobrepostos às UCs. Desse total, mais da metade incide sobre os trechos que os políticos pretendem desproteger. Os processos têm como alvo a exploração de vários minérios, mas a imensa maioria visa a extração de ouro.
O caso que chama mais atenção é o do Parna do Acari. O desenho proposto pelos parlamentares e a Casa Civil exclui de seu território quase com exatidão os polígonos dos 49 processos minerários sobrepostos ao parque (veja o mapa). Entre os interessados, estão pessoas físicas, cooperativas de garimpeiros, pequenas e médias mineradoras, algumas de capital estrangeiro. A BBX do Brasil é subsidiária da australiana BBX Minerals e a BMIX está vinculada à norte-americana Brazil Minerals Inc., por exemplo.
Daniel Geyerhahn Garcia e Luiz Fernando Lacerda Silva deram entrada a 32 desses processos minerários. Eles detêm sobretudo permissões de lavra garimpeira. Nos documentos de criação das UCs, os dois são identificados como representantes da empresa Goldmen Group.
Garcia esteve na reunião no MMA. Depois de seu encerramento, defendeu a redução do Parna ou sua transformação numa Flona, que permite a mineração, em conversa com técnicos do ministério. Ele argumenta que teve os direitos lesados porque as autorizações que obteve no DNPM e licenças ambientais do governo amazonense para o empreendimento foram concedidas antes da criação das reservas. Garcia informou que só daria entrevistas depois da nova reunião marcada por Sarney Filho.
Em um ofício encaminhado, em maio de 2015, ao Instituto Chico Mendes de Conservação de Biodiversidade (ICMBio) e anexado ao processo de criação das UCs, Garcia adverte que até então gastara R$ 2 milhões com pesquisas e burocracia para tirar seu negócio do papel. A BBX teria investido R$ 2,6 milhões. Um parecer de Garcia também anexado à papelada menciona que a mineração envolve “altos investimentos na região para a extração de cobre e ouro em uma área com potencial de ser uma mina de classe mundial”. O documento indica ainda que “Apuí se tornará no (sic) Carajás de ouro e cobre do Amazonas, desde que haja condições de se continuar a fazer pesquisa mineral na região”.
A nota técnica do ISA sobre os Cadastros Ambientais Rurais (CARs) registrados na região mostra que latifundiários e, provavelmente, grileiros podem ser beneficiados pela redução das UCs. Conforme a análise, existem 162 áreas cadastradas incidentes sobre as cinco reservas, das quais 134 estão sobrepostas a trechos com propostas de desproteção. O tamanho médio dos imóveis nesses trechos é de 6,2 mil hectares, ou seja, várias dessas terras, se não forem protegidas, poderão ser desmatadas e transformadas em latifúndios gigantescos.
Previsto pelo Código Florestal de 2012, o CAR pretende viabilizar a regularização ambiental por meio do registro das áreas desmatadas e das que devem ser reflorestadas em cada propriedade rural. Ele é uma arma importante no combate ao desmatamento ilegal. De acordo com a Lei, o cadastro é autodeclaratório, feito pela internet e não tem valor para fins de regularização fundiária.
Em regiões com conflitos de terras, como a Amazônia, porém, o CAR tem sido usado para tentar viabilizar a grilagem. A chance de que isso esteja acontecendo no sul do Amazonas é muito grande, segundo especialistas e técnicos do governo ouvidos pela reportagem. E não só pelo tamanho das áreas cadastradas.
Entre os 11 maiores CARs registrados sobrepostos às UCs, três deles foram feitos após 12/5/2016, quando elas foram decretadas. O maior foi feito em outubro, quase cinco meses depois, e tem inimagináveis 250 mil hectares, o equivalente a mais de uma vez e meia a extensão da cidade de São Paulo. O cadastro sobrepõe-se ao Parna do Acari e à Estação Ecológica do Alto Maués, além das flonas de Urupadi e de Pau Rosa. Os outros dois cadastros têm 70 mil hectares e 20 mil hectares.
O registro do CAR numa área protegida é outro indício de que se trata de uma tentativa de grilagem – talvez motivada pela expectativa de desproteção da terra. Outro argumento a favor das UCs é justamente o de que toda a região foi avaliada pelo Programa Terra Legal durante dois anos. Em 2014, três milhões de hectares foram identificados como terras federais e destinados ao MMA. Daí a criação das reservas.
“Querem oficializar a grilagem. Isso abre um precedente seríssimo para as outras regiões. Não tem explicação, não tem cabimento”, disse a ex-ministra do Meio Ambiente Izabella Teixeira, em entrevista ao Observatório do Clima.
O presidente da FAEA, Muni Lourenço Silva Júnior, considera que, ao transferir as terras para o MMA, o governo federal desconsiderou processos de regularização em andamento. “A grande parcela, quase absoluta, do universo desses produtores, dessas famílias rurais existentes na região não se confunde com grileiros. Pelo contrário, boa parte dessas pessoas tem protocolos na mão de pedidos de regularização junto ao Terra Legal, mas que não foram concluídos até o momento por motivos alheios à sua vontade”, conclui.
O Greenpeace sobrevoou a região e colheu imagens da floresta e das pressões no entorno das UCs na região de Apuí (veja galeria de fotos abaixo).
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nota técnica | 2.96 MB |