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Cerca de 11,2 milhões de hectares da Bacia do Rio Negro, no noroeste do Amazonas, podem se tornar o maior sítio Ramsar do mundo. A área equivale a quase 20% da bacia ou cerca de três vezes o território do Rio de Janeiro.
A proposta para a criação do sítio foi enviada pelo Ministério do Meio Ambiente (MMA), no início de fevereiro, para o Secretariado da Convenção das Zonas Úmidas de Importância Internacional. Ela engloba parcialmente oito Terras Indígenas (TIs) e 16 Unidades de Conservação (UCs), entre áreas federais, estaduais e municipais.
A expectativa é de que o secretariado confirme se a aceita ou não no Fórum Mundial da Água, em Brasília, que ocorre entre os dias 18 e 23 de março. Se a proposta for aceita, o Brasil abrigaria o maior sítio Ramsar do mundo e a extensão total de seus sítios mais que dobraria: as 22 áreas assim classificadas hoje somam 8,8 milhões de hectares.
O título de sítio Ramsar foi criado pela Convenção sobre Zonas Úmidas de Importância Internacional, na cidade de Ramsar, no Irã, em 1971, para conferir reconhecimento especial a áreas de grandes rios, mares, lagos ou pântanos.
O título não traz nova proteção legal, em termos nacionais ou internacionais. Portanto, não acrescenta restrições a atividades econômicas, além das que já existem por causa das áreas protegidas criadas na região. A diferença é que elas ganham uma espécie de selo internacional, que atesta importância ambiental e pode viabilizar investimentos em pesquisa, cooperação e conservação.
A própria convenção disponibiliza alguns desses recursos. O Global Environment Facility (GEF), um das principais fundos de financiamento para projetos de conservação, também oferece recursos para essas áreas e deverá criar em breve uma modalidade específica para sítios Ramsar, segundo o sócio-fundador do ISA Márcio Santilli (leia mais)
“Essa figura jurídica internacional agrega um reconhecimento do ponto de vista da água, dos recursos hídricos”, afirma Santilli. O ISA desenvolve projetos de pesquisa, gestão socioambiental e defesa de direitos, em parceria com povos indígenas na região, há mais de 20 anos.
Santilli lembra que a região tem uma importância estratégica para o futuro dos recursos hídricos do planeta, com um dos mais elevados índices pluviométricos, que garantem a manutenção de lagos, canais e afluentes, formadores do maior rio de águas pretas da Terra (saiba mais no box ao fim da reportagem).
Ele comenta ainda que a região é um ponto de inflexão dos chamados “rios voadores”, grandes massas de umidade que atravessam o continente a partir do Atlântico e que, por causa dos Andes, deslocam-se para o centro-sul do Brasil, levando chuvas a regiões de grande concentração urbana e produção agrícola.
Uma novidade importante da proposta do MMA é a previsão de que o sítio englobe várias áreas protegidas diferentes, incluindo Terras Indígenas, o que pode contribuir para o fortalecimento dos povos indígenas na governança ambiental da região, fundamentais para a proteção e sustentabilidade. Até então, esses sítios no país eram criados a partir de uma única Unidade de Conservação.
Essa inovação abre a possibilidade para uma experiência de gestão compartilhada das áreas. A questão é se o governo irá viabilizá-la e como. Há muitos anos, discute-se no país a possibilidade de se fazer a gestão compartilhada de mosaicos ou corredores de áreas protegidas, mas a ideia não sai do papel.
“O objetivo agora é trabalhar numa escala regional, envolvendo mais de uma área protegida”, reforça João Paulo Sotero, coordenador de Monitoramento e Planejamento de Conservação de Paisagens do MMA.
Para Santilli, um conselho de gestão do sítio poderia incluir todas as partes envolvidas: indígenas, gestores das UCs, municípios e até instituições presentes da região, como o Exército.
A assessora do ISA e especialista em Biodiversidade, Nurit Bensusan, diz que o MMA precisa criar uma portaria ou outro instrumento legal para disciplinar a gestão desse colegiado. “Esse conselho deveria ser instalado antes da saída do ministro do Meio Ambiente, José Sarney Filho”, defende. O ministro deve deixar o governo até abril para disputar as eleições, em outubro.
“Só teremos benefícios concretos para a conservação dessa região se governo e sociedade civil aproveitarem as oportunidades derivadas desse reconhecimento, criando novas maneiras de gerir esse conjunto de áreas”, analisa Bensusan. Para ela a inclusão de terras indígenas é também uma oportunidade de integrar o conhecimento indígena às pesquisas socioambientais feitas nessa área.
Sotero, do MMA, acrescenta que a conectividade das áreas pode ser o grande diferencial do sítio do Rio Negro. “Um desafio posto para a área ambiental é promover a conexão entre os fragmentos que existem. E isso pode funcionar com o sítio Ramsar”, aposta.
Outro potencial do sítio Ramsar é fortalecer o turismo de base comunitária ou de avistamento de fauna e flora. A região já abriga o projeto Serras Guerreiras de Tapuruquara, que promove expedições turísticas guiadas pelos povos indígenas da região, mobilizando quase 500 pessoas. A iniciativa é uma parceria entre o ISA, Associação das Comunidades Indígenas e Ribeirinhas (Acir), Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Forin) e a ONG Garupa (saiba mais aqui).
O MMA excluiu da proposta a zona de fronteira, de 150 km, com Colômbia e Venezuela.
A Constituição determina que projetos e empreendimentos situados nessa faixa sejam analisados pelo Conselho de Defesa Nacional. O problema é que o colegiado reúne-se muito esporadicamente e, por causa disso, o MMA corria o risco de não conseguir enviar uma proposta para o secretariado da convenção antes do fim da gestão de Sarney.
O MMA pretende, em um segundo momento, ampliar o sítio, agregando parte da faixa de fronteira, com a aprovação do conselho. A ideia seria incluir também áreas não legalmente protegidas. Sotero confirma que já estão em curso as negociações com o Ministério da Defesa, que integra o conselho.
Para Santili, a criação do sítio Ramsar reafirma a soberania nacional sobre a região. “Ajuda a caracterizar a preocupação do governo brasileiro com áreas especiais e demonstra que o país não depende de ingerências”, diz.
Com 1,5 mil km de extensão, o Rio Negro é o maior rio de águas pretas do mundo e o maior afluente da margem esquerda do Amazonas.
A porção brasileira da bacia do Rio Negro tem 51,6 milhões de hectares, onde existem 44 Terras Indígenas, com 27,2 milhões de hectares (38% da bacia no Brasil) e 45 povos indígenas. A região abriga ainda 26 unidades de conservação - 15 de proteção integral e 11 de uso sustentável, somando 11,6 milhões de hectares (ou 16% da bacia no Brasil).
Apesar de as águas negras serem pobres em nutrientes, a bacia possui um conjunto de espécies e de características ecológicas muito específicas e valiosas do ponto de vista ambiental. Por exemplo, são cerca de 550 espécies de peixes. Além disso, a terra indígena do Alto Rio Negro foi considerada uma área insubstituível para a biodiversidade por um estudo publicado na revista Science. O índice usado no trabalho (irreplaceability index) identificou apenas 137 áreas em todo o mundo que se enquadram nessa categoria.