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Biologia sintética e pirâmides pedagógicas

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Nurit Bensusan

Confira o artigo da assessora do ISA Nurit Bensusan sobre os desafios envolvendo as novas biotecnologias discutidos na COP 14, conferência internacional sobre biodiversidade


Novas biotecnologias estão batendo à nossa porta cotidianamente e, antes mesmo que tenhamos tempo de decidir se queremos ou não abri-la, o mundo será transformado por elas. Inovações na edição genômica combinadas com condutores genéticos (gene drives, em inglês), técnicas que já vêm sendo usadas, podem modificar completamente organismos e espécies rapidamente.

A edição genômica é uma técnica que permite introduzir um fragmento do DNA de um organismo ou um fragmento de DNA criado em laboratório no genoma de outro organismo. A diferença é que novos métodos foram estabelecidos recentemente, o que permite que mais espécies possam ser "editadas" e que seja mais fácil fazê-lo.

A ideia da condução genética é que uma parte do genoma sempre prevaleça na descendência. Ou seja, normalmente a herança é um misto de probabilidades ligadas às características dos genes, assim a descendência pode apresentar características diversas. Com esses condutores, essa parte "conduzida" se manifesta na descendência invariavelmente e, dessa forma, em algumas gerações todos os indivíduos daquela espécie terão a característica "conduzida".

Estamos falando de mudar características genéticas de organismos e da possibilidade de expandir tais características para toda uma espécie de forma definitiva. Essas tecnologias já são usadas, por exemplo, para combater a dengue por meio da produção de mosquitos que dão origem a uma descendência que morre antes de atingir a fase adulta e de poder se reproduzir. Também alimentam uma das maiores aspirações de parte da humanidade: transformar nossa espécie radicalmente. E aparentemente as primeiras tentativas já estão em curso: segundo reportagem do El País, os primeiros bebês com edição genômica teriam acabado de nascer na China: seriam gêmeas resistentes ao vírus da AIDS.

Um bom retrato dessa polêmica é a ideia de transformar todas as galinhas do mundo em galinhas cor-de-rosa. Como consumimos seis bilhões de galinhas por ano, ao transformarmos todas em fósseis cor-de-rosa, poderíamos deixar uma marca do nosso tempo, o início do Antropoceno, no registro fóssil, para deleite dos arqueólogos e paleontólogos do futuro. O Antropoceno é o nome proposto por alguns especialistas para uma nova era geológica, a atual, que teria como característica principal a atuação da humanidade como força capaz de alterar o planeta. Será que vale a pena? Você comeria uma galinha cor-de-rosa? Gostaria de deixar sua marca do registro fóssil? Prefere uma galinha azul?

Apesar dessa ideia ser um manifesto e não um projeto científico de fato, as condições dele ser executado existem hoje. Se, por um lado, muitos estão alarmados com as possíveis consequências dessas tecnologias e clamam por uma moratória para elas, outros temem que haja restrições e acreditam que as legislações nacionais darão conta de controlar as consequências não previstas e de resolver os dilemas éticos que surgirão.

Convenção da Biodiversidade

Um artigo da revista Nature mostra, inclusive, a preocupação que muitos pesquisadores têm com as discussões sobre o tema na Conferência das Partes da Convenção da Biodiversidade (COP 14), que estão acontecendo no Egito.

As novas biotecnologias são, sem sombra de dúvida, as campeãs das muitas controvérsias discutidas nessa reunião sobre esse tratado internacional. Estão sendo discutidos a possibilidade da convenção adotar uma moratória do uso de condutores genéticos e, principalmente, se os resultados dessas tecnologias - sejam elas novas sequências genéticas ou novos organismos – estariam ou não no escopo na convenção e do Protocolo de Nagoya, que trata do acesso ao patrimônio genético e ao conhecimento tradicional e sua correspondente repartição de benefícios.

A biologia sintética é um "novo avanço e uma nova dimensão de biotecnologia moderna que combina a ciência, a tecnologia e a engenharia para facilitar e acelerar a compreensão, o desenho, redesenho, fabricação e a modificação de materiais genéticos, organismos vivos e sistemas biológicos”. Na COP 13, há dois anos, especialistas já haviam ponderado que, por causa dessas características, ela poderia provocar efeitos adversos sobre os três objetivos globais da convenção: conservação, uso sustentável e repartição justa e equitativa dos benefícios derivados do uso da biodiversidade (leia mais no box ao final do texto).

Moratória descartada

As discussões na COP 14 terminam esta semana. A moratória, neste momento, parece descartada, mas seguem os debates sobre o monitoramento e o controle do uso dessas tecnologias. O Brasil, chamado na COP 14 em conjunto com a Argentina e o Uruguai pejorativamente de “República da Soja”, tem se posicionado contra ambas as possibilidades. É espantoso ver um país com a biodiversidade brasileira abrir mão de mecanismos fundamentais para garantir a integridade de seu patrimônio natural.

Vale ressaltar, também, que essas tecnologias impactam as formas que povos indígenas e comunidades locais convivem com a biodiversidade. Seus conhecimentos ligados às espécies de plantas, animais e micro-organismos são muitas vezes usados como atalho para as pesquisas de novos produtos farmacêuticos, cosméticos, químicos, industriais e de uso na agropecuária.

Essas novas tecnologias, ao promover a transformação das informações genéticas em informações digitais, fazem que seja mais difícil ter um controle sobre o uso do conhecimento tradicional. O mapeamento dos genomas permite transformar as informações armazenadas no DNA dos organismos em códigos digitais que podem ser acessados em qualquer lugar do mundo. Hoje esses códigos, conhecidos como sequências genéticas, estão armazenadas em bancos genéticos digitais, de livre acesso. Ou seja, qualquer pessoa pode acessar uma sequência genética e reproduzi-la outra vez, rematerializando essa informação digital em uma informação genética. Essa, por sua vez, pode ser utilizada para edição genômica de outros organismos e em um futuro próximo poderá ser usada para criar novos organismos.

A rastreabilidade do uso do conhecimento tradicional se torna quase impossível quando a informação genética passa a ser digital, desconectada da materialidade de um organismo, recombinada, editada e transformada. Sem mecanismos de controle, como parece querer o Brasil, o quase impossível se torna de fato impossível.

Desafios

A Convenção da Biodiversidade sempre enfrentou grandes desafios. Conservar a natureza, usá-la de forma racional e mais ainda repartir de forma equitativa e justa benefícios derivados do uso dos elementos da biodiversidade nunca foi tarefa fácil, especialmente em um mundo que parece andar na contramão desses objetivos. Porém, neste momento, os desafios foram multiplicados: por um lado, o rápido caminhar da destruição de espécies e paisagens não permite apostar em um futuro mais auspicioso; por outro, a tecnologia avança celeremente, não admitindo nem precaução, nem preocupação com os outros organismos com quem dividimos o planeta, nem com povos que vivem de forma distinta. Se tudo isso não fosse pouco, a ascensão de inúmeros governos nacionalistas mundo afora dificulta as negociações internacionais, fundamentais para a proteção ambiental do planeta.

Nesta semana, quando a COP 14 se encerra, e com ela as discussões sobre o cenário da Convenção da Biodiversidade para depois de 2020, talvez fosse o momento de pensar em novos instrumentos para conservar biodiversidade nesse novo cenário. Mais uma vez, é possível imaginar que não é gratuito que essa reunião aconteça justamente no Egito: as tecnologias inovadoras que criaram as pirâmides permaneceram, mas a civilização ímpar que as circundava, desapareceu. Servirá de lição?

O que são os recursos genéticos e conhecimentos tradicionais?

Os recursos genéticos da biodiversidade são encontrados em animais, vegetais ou micro-organismos, por exemplo, em óleos, resinas e tecidos, encontrados em florestas e outros ambientes naturais. Já os recursos genéticos da agrobiodiversidade estão contidos em espécies agrícolas e pastoris. Comunidades de indígenas, quilombolas, ribeirinhos e agricultores familiares, entre outros, desenvolvem e conservam, por décadas e até séculos, informações e práticas sobre o uso desses recursos. Esses são os chamados conhecimentos tradicionais. Na nova legislação, aqueles grupos sociais são designados de “detentores” desses conhecimentos.

Tanto o patrimônio genético quanto os conhecimentos tradicionais servem de base para pesquisas e produtos da indústria de remédios, sementes, gêneros alimentícios, cosméticos e produtos de higiene, entre outros. Por isso, podem valer milhões, bilhões em investimentos. Na nova legislação, pesquisadores e desenvolvedores desses produtos são chamados de “usuários” dos recursos genéticos e conhecimentos tradicionais.

O que é a “repartição de benefícios”?

A Convenção da Diversidade Biológica (CDB), tratado internacional que regula o tema dos recursos genéticos e conhecimentos tradicionais, prevê que quem usa e explora economicamente os recursos genéticos e conhecimentos tradicionais deve remunerar, de forma “justa e equitativa”, os detentores desses recursos e conhecimentos, reconhecendo-os como instrumento valioso de produção de saber.

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