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“Agora apareceram os rastros do comedor de coração, do comedor de pulmão”

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Jovem Yanomami relata avanço da Covid-19 em aldeia com presença de garimpeiros. A Hutukara Associação Yanomami formalizou denúncia às autoridades pedindo providências
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“Então esses rastros [da Covid-19], foi o que aconteceu de verdade. Hoje eu estou pensando certo. Não tem outros rastros aí. Hoje o corpo com essa doença de minha irmã mais nova está suspendido (como parte do ritual funerário Yanomami). Antes eu pensei que ela só tivesse malária. Eu pensei isso antes, mas agora apareceu os rastros do comedor de coração, do comedor de pulmão”.

Esse relato, traduzido do Yanomami para o português, é um pequeno trecho do depoimento de Y. Y., uma jovem indígena da região do Rio Mucajaí, na Terra Indígena Yanomami. Essa é uma das regiões mais impactadas pelo garimpo. A jovem denunciou à Hutukara Associação Yanomami que sua irmã mais nova, de 14 anos, morreu em junho, vítima da Covid-19. Depois da morte, toda a família de Y.Y foi removida para Boa Vista com suspeita da doença, inclusive sua filha, de cinco anos. A menina já estava com malária e depois testou positivo para Covid-19. Ela chegou a ser entubada.



A Hutukara, por sua vez, uma das organizações Yanomami que lideram a campanha #ForaGarimpoForaCovid, encaminhou a denúncia da jovem Y. Y. às autoridades, com cartas enviadas ao Ministério Público Federal, Funai e Ibama.

Segundo o censo de 2018 do Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei) Yanomami, na região vivem 306 pessoas, distribuídas em cinco comunidades. Em seu depoimento enviado por áudio, em Yanomami, a indígena Y. Y. descreve a deterioração sanitária local, que enfrenta ao mesmo tempo o aumento da malária e a chegada da Covid-19 junto com a invasão e crescimento dos garimpos.

“Isso aqui, essa doença [Covid-19] é muito forte! Essa doença mata muito mesmo! Muitos brancos estão morrendo por causa dessa doença! Lá no posto de saúde os brancos disseram que se essa doença chegasse em nossa terra, nós talvez morreríamos. E por eles terem dito isso, nós dissemos: Então quando essa doença chegar também, onde se misturar com a malária, nós talvez iremos morrer! (...) Depois de ir com minha filha inconsciente para o lugar onde se verifica os pulmões [raio-x], logo que mostrei o peito dela, [e disseram:] ‘aí está com sangue’, foi então que entendi. Antes eu não sabia o que era, mas agora estou sabendo tudo!”, disse Y.Y.

O principal vetor de doenças na Terra Indígena Yanomami é o garimpo ilegal. Estudo do Instituto Socioambiental (ISA) mostrou que pelo menos 40% dos Yanomami e Ye’kwana que vivem próximo a zonas de garimpo podem ser contaminados pelo novo coronavírus. Pela urgência da retirada dos garimpeiros da TIY, há dois meses o Fórum de Lideranças Yanomami e Ye'kwana lançou a campanha “Fora Garimpo, Fora Covid!”, que pede a desintrusão urgente. Mais de 350 mil pessoas já assinaram a petição em apoio ao povo Yanomami e Ye'kwana.

As lideranças Yanomami estimam que 20 mil garimpeiros estejam ilegalmente dentro do território. Cada um deles é um potencial vetor de transmissão do novo coronavírus aos indígenas. “Por causa disso a gente continua a pegar malária e por causa disso minha irmã ficou mal. Ela morreu. ‘Talvez seja malária!’ nós dissemos isso. E como não era isso [malária], aqui, vindo eu e minha filha para cá, vimos que afinal era essa doença [Covid-19]. A gente sempre pegando malária, a gente fica controlando/fiscalizando os remédios. Então agora entendi sobre essa doença, estou pensando direito”, relata a jovem Y.Y.

De acordo com o monitoramento promovido pela Hutukara sobre o avanço e impacto do garimpo na terra Yanomami, a região do Rio Mucajaí é a terceira com maior extensão de área degradada, somando 359 hectares. É onde a exploração garimpeira foi mais intensa no período de fevereiro de 2019 a junho de 2020.

A violência dos garimpeiros, que assediam, estupram, exploram e incentivam a prostituição das mulheres indígenas, disseminando doenças e ainda promovem a ingestão de bebida alcoólica, também foi descrita por Y. Y. “Então é assim que os garimpeiros fazem: Lá na minha casa, eles entram levando bebidas alcoólicas, bebidas alcoólicas muito fortes! Eles levam bebidas alcoólicas, Eles querem fazer amizade, chamam as mulheres. Eles dizem: ‘ei! minha mulher!’ eles dormem [com elas] é assim que eles fazem! E por eles terem começado a fazer, nós pegamos a doença. Nós comemos, também vamos, e já que nós sempre vamos nas casas deles, então nós também pegamos malária”.

Denúncia

A Hutukara Associação Yanomami formalizou a denúncia no Ministério Público Federal (MPF), Polícia Federal, Ibama e Funai. Segundo o documento, que apresenta na íntegra o relato de Y. Y, a situação descrita por ela não é novidade e “indica situação de ameaça constante a que ficam sujeitos os indígenas da Terra Indígena Yanomami, enquanto os garimpeiros circulam livremente em suas casas”.

Em nota, a Hutukara afirma que dos 319 casos de Covid-19 registrados pelo Ministério da Saúde entre os Yanomami e Ye’kwana 55%, ou seja, 174 são casos de contaminação comunitária e cobra: “É cada dia mais necessário que as autoridades tomem medidas para tirar os garimpeiros que estão invadindo nossa terra e impedir que a Xawara continue se espalhando entre nós!”.

Evilene Paixão
ISA
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