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Usos e abusos dos direitos indígenas nas disputas entre os poderes

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Márcio Santilli, sócio fundador do ISA

Amanhã será retomado o julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), sobre a tese do “marco temporal”, que pretende restringir os direitos dos índios só às terras que estavam ocupando em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição. A tese foi suscitada, em 2009, no julgamento pelo STF da demarcação da Terra Indifena (TI) Raposa-Serra do Sol (RR), mas ministros do próprio STF consideraram, em diferentes ocasiões, que as condicionantes e restrições referidas naquela decisão não deveriam ser estendidas a outros casos automaticamente.

Ainda em 2009, ao contestar a demarcação da TI Ibirama-Laklãnõ, dos povos Xokleng, Kaigang e Guarani, o governo de Santa Catarina ressuscitou a tese. Em 2019, o caso ganhou o status de “repercussão geral”. Isso quer dizer que a decisão final sobre o caso servirá de diretriz, para o Judiciário e a administração federal, para todas as outras demarcações.

Essa decisão está sendo esperada há anos. Os ruralistas querem que o STF adote o marco temporal como forma de impedir a conclusão de processos de demarcação em curso, enquanto promovem projetos de lei no Congresso para possibilitar o a exploração de áreas de interesse situadas nas TIs e para permitir o plantio de transgênicos. Do ponto de vista dos indígenas, a rejeição do marco temporal é essencial para viabilizar o reconhecimento das terras de vários grupos que foram expulsos durante a ditadura militar.

Sob pressão dos ruralistas, a Advocacia-Geral da União (AGU), em 2017, editou um parecer instituindo o marco temporal e outras normas limitadoras das demarcações. A medida da AGU teve os seus efeitos suspensos até o término do julgamento, que começou de forma virtual, mas foi depois transferido para o plenário formal, a pedido do ministro Alexandre de Moraes. Foi, então, pautado para o final de junho e, depois de alguns adiamentos, afinal, iniciado na quinta-feira passada, com a perspectiva de ser concluído durante esta semana.

Mobilização indígena

Em junho, seguindo todos os protocolos sanitários, delegações indígenas vieram a Brasília, mesmo sem uma convocação formal e sem estrutura para permanência. Um acampamento foi improvisado e reuniu cerca de mil indígenas que protestaram contra projetos de lei, contrários aos seus direitos, que tramitam no Congresso, mas dando especial atenção ao julgamento que começaria, então. Com o seu adiamento para o final de agosto, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) organizou o Acampamento Luta pela Vida (ALV), que acolheu mais de seis mil representantes de 176 povos de todo o Brasil. Foi o maior da história e parte dos índios permanecem em Brasília, na esperança de que o caso seja resolvido, com a afirmação dos seus direitos.

A força política do movimento indígena foi claramente percebida. O ALV é um exemplo de organização. Todos os participantes haviam sido previamente vacinados e grande parte deles foi testada na chegada e na partida. Também tiveram acesso a máscaras, álcool em gel e outros insumos, doados por pessoas e instituições. Realizaram pacificamente as suas manifestações e deixaram claro que o grupo de indígenas que tem sido frequentemente mobilizado pelo governo, inclusive em lives presidenciais, não passa de uma exígua minoria.

A bancada ruralista, que defende os interesses do segmento mais atrasado e predador do agronegócio, deixou fora da pauta do Congresso os seus projetos mais perniciosos, que pretendem inviabilizar novas demarcações de terras, além de reduzir a extensão das já demarcadas e permitir a sua exploração por terceiros. Também foram editadas matérias pagas na imprensa, divulgando falsas informações sobre o impacto das demarcações pendentes sobre a produção agropecuária, que foram prontamente desmentidas.

O presidente Jair Bolsonaro também recorreu às mentiras alarmistas, dizendo que, se o STF rejeitar o marco temporal, uma área maior do que toda a região sul se somaria às terras já demarcadas, inviabilizando o agronegócio no país. Na verdade, estão pendentes as demarcações de um terço das terras indígenas (com processos já abertos na Fundação Nacional do Índio), a maior parte de menor extensão e situada fora da Amazônia. As demandas pendentes não têm escala para afetar a produção agropecuária. Mas o presidente pretende usar o julgamento sobre o marco temporal para atacar o STF, inclusive durante as manifestações golpistas convocadas para 7 de setembro.

Obstrução e retaliação

A previsão que se tem é que a maioria dos ministros do STF deve acompanhar o voto do relator, ministro Edson Fachin, para rejeitar a tese do marco temporal e reafirmar o caráter originário dos direitos territoriais indígenas, que está expresso na Constituição. Porém, qualquer ministro pode pedir vistas e interromper o julgamento, sendo que Kassio Nunes Marques, indicado por Bolsonaro, será o próximo a votar, assim que se concluírem as intervenções das partes em litígio e das instituições que se habilitaram como amici curiae (pessoas e organizações que levam subsídios ao caso). No caso de um pedido de vistas, outra data seria futuramente definida para a conclusão do processo.

O ministro Gilmar Mendes expressou a sua preocupação com a falta de mediação entre os interesses dos indígenas e ruralistas. Pode ser que ele tente, por meio de seu voto (quando houver), construir uma posição intermediária, que rejeite o marco temporal como limite, mas estabeleça o direito à indenização (pela terra), além de eventuais benfeitorias, aos proprietários detentores de títulos legítimos. Parece difícil, embora não seja impossível, que a maioria do STF aventure-se a legislar nesse sentido, no contexto desta decisão, o que deveria caber ao Legislativo.

Porém, os ruralistas não parecem dispostos a fazer qualquer mediação. Esforços nesse sentido já foram feitos, até agora sem sucesso. Até a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 132, que institui o direito à indenização e já foi aprovada no Senado, foi deixada para trás pela bancada.

Os ruralistas também já contariam com o apoio do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), para levar à deliberação do plenário o Projeto de Lei 490, que institui o marco temporal. Com ou sem decisão do STF, ruralistas e bolsonaristas poderão tentar golpear os direitos indígenas, após a desmobilização do AVL.

Caso o STF conclua o julgamento e rejeite o marco temporal, outras reações são previsíveis. Bolsonaro já incorporou essa eventual decisão à narrativa de confronto que vem mantendo contra o Judiciário, insinuando que não pretende cumpri-la e que vai se unir à bancada ruralista para golpeá-la no Legislativo. Não se exclui a possibilidade de que tentem ressuscitar outra PEC, a 215, que desvirtuaria por inteiro os direitos indígenas reconhecidos pela Constituição de 1988.

Agora ou nunca

Apoiada por Bolsonaro e Lira, a bancada ruralista quer aproveitar este momento de força para aprovar uma longa lista de maldades. Já aprovou projetos de lei para reduzir o licenciamento ambiental a um procedimento autodeclaratório e facilitar a ocupação de terras públicas por agentes privados. E ainda quer legalizar o uso de agrotóxicos proibidos em outros países, revogar a aplicação do Código Florestal em áreas urbanas, reduzir ou extinguir unidades de conservação ambiental, além, claro, de golpear os direitos indígenas e de outras populações tradicionais.

A tática ruralista do “agora ou nunca” tem gerado constrangimentos no Senado. Se, por um lado, pautas como a da grilagem de terras públicas, até encontram acolhida e suscitam concorrência predatória entre alguns senadores, por outro lado, também suscitam resistências. Por exemplo, a intenção ruralista de transferir para o Congresso a competência para demarcar TIs, que consta tanto do PL 490, sofre forte rejeição entre os senadores.

O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), por sua vez, procura consolidar uma imagem mais ponderada, uma postura de mediação diante de propostas polêmicas e de conflitos entre os poderes. A pauta predatória animada pelo governo e pelos ruralistas constrange Pacheco, que pretende se diferenciar de Bolsonaro e Lira para se credenciar como candidato a presidente da chamada terceira via.

O campo está minado e, como se vê, há vários desdobramentos possíveis. A força do movimento indígena, que tem reagido à conjuntura adversa com maior vigor do que outros segmentos sociais, é a importância dos seus territórios, seja para a ganância de predadores ou para uma estratégia de enfrentamento das mudanças climáticas e da crise hídrica. Isso coloca os povos originários na linha de frente da resistência política.

A retórica agressiva do presidente Bolsonaro para desconstituir os direitos constitucionais indígenas acaba por valorizá-los e consolidá-los no topo da agenda. Os indígenas, seus direitos e suas terras certamente terão uma presença inédita nas eleições de 2022 e nos projetos de futuro para o Brasil. Alguns dos mesmos que estão hoje defendendo o marco temporal pedem o fechamento do STF. É preciso defender a democracia e as instituições.

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