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Notícia atualizada às 11h56, em 17/2/2016
O Alto Rio Negro, no noroeste do Amazonas, vive uma crise grave na saúde indígena, denuncia a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn). De acordo com a entidade, faltariam medicamentos, aldeias estariam sem atendimento e postos de saúde em ruínas, pacientes estariam sendo transportados em condições precárias durante horas ao longo dos rios. Fotos divulgadas pela Foirn também mostram o que seriam motores de barcos sucateados e abandonados, medicamentos vencidos, uma cadeira de dentista nunca usada e tonéis de combustível armazenados dentro de um posto de saúde (veja imagens abaixo e na galeria ao final da reportagem).
Apesar disso, os recursos do governo federal para o Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) da região estariam chegando normalmente e até teriam aumentado nos últimos anos.
Na segunda (15/2), a Foirn publicou um novo texto reafirmando as denúncias e exigindo mais uma vez providências dos órgãos responsáveis. Em janeiro, a organização enviara um ofício ao Ministério Público Federal (MPF) no Amazonas cobrando uma investigação. Algumas denúncias já tinham sido encaminhadas a outros órgãos, como Ministério da Saúde e Fundação Nacional do Índio (Funai), em meados do ano passado (veja mais).
Há cerca de quatro anos, tramita uma ação civil pública do MPF que busca garantir o abastecimento de remédios na região. O MPF também está investigando as condições da infraestrutura de atendimento na região, o que poderá ou não redundar numa nova ação (leia mais).
O Ministério da Saúde negou que haja desassistência e desabastecimento de medicamentos e outros insumos na região numa nota enviada ao ISA por sua assessoria após pedido de entrevista com o secretário de Saúde Indígena, Antônio Alves (leia íntegra da nota no quadro no final da notícia).
“Negligência”
Algumas das denúncias, como de “negligência”, recaem sobre a atual coordenadora do DSEI Rio Negro, a enfermeira Ilma Lins de Souza, há pouco mais de um ano na função. Em entrevista ao ISA, ela negou as acusações e informou que já pediu demissão porque a pressão sobre o cargo seria muito grande.
“Nós estamos trabalhando com o que no momento nós temos. Não existe essa negligência que colocaram”, rebate Souza. “Não vou dizer assim: ‘olha, está tudo muito bem’. Eu estaria até mentindo para você. Mas a coisa não está tão ruim como falam”, reforça.
Ela alega que os custos de combustível para o transporte teriam aumentado muito recentemente. As distâncias, dificuldade de acesso e a grande população a ser assistida pelo DSEI – mais de 36 mil pessoas – também dificultariam o trabalho. Mesmo assim, Souza garante que os recursos disponibilizados pelo governo foram suficientes e nenhuma comunidade teria ficado sem atendimento, em 2015, nos três municípios atendidos pelo distrito: São Gabriel da Cachoeira, Santa Isabel e Barcelos.
Ainda de acordo com as lideranças indígenas, a coordenação do DSEI estaria divulgando informações incorretas sobre os indicadores de saúde e estaria se negando a apresentar os principais dados de sua gestão. A ausência de profissionais de saúde em campo também estaria acarretando problemas na notificação de mortes e casos clínicos.
Souza encaminhou à reportagem um balancete que indica que o orçamento do DSEI em 2015, de R$ 7,2 milhões, teria sido todo executado. Ela acrescenta que os dados sobre sua gestão têm sido apresentados sistematicamente à própria Foirn e ao Conselho Distrital de Saúde Indígena (Condisi), instância de controle social do DSEI com participação de indígenas.
Equipes ausentes
No ofício encaminhado ao MPF pela Foirn, consta uma tabela que aponta uma queda de mais de 100% do total de visitas das equipes de saúde às comunidades. Nos últimos três anos, o número teria despencado. Em 2013, as visitas teriam sido 226; em 2014, 146; e em 2015, 103 (veja documento anexado acima).
O número para 2015 não destoa do enviado por Ilma de Souza à reportagem: 100. Há divergência, no entanto, para os dois anos anteriores. Segundo dados apresentados por ela, em 2013 teriam ocorrido 126 visitas e, em 2014, 88. Ou seja, entre 2014 e 2015 haveria aumento de entradas de equipes, e não queda.
Um profissional de saúde que atua na região há vários anos e que já trabalhou no DSEI diz que os principais problemas no atendimento começaram no início de 2014, mas que a situação teria piorado em 2015 porque o corpo de funcionários do DSEI teria sido trocado sem que sua presença em campo tenha sido reforçada. Conforme a mesma fonte, que prefere não se identificar, os médicos deveriam trabalhar pelo menos 180 dias ao ano nas aldeias (incluindo períodos de folga), mas, no ano passado, essa presença teria ficado entre 45 e 60 dias em média.
“Não procede essa questão de não ter equipes em área. Nós temos como provar. A gente também fotografa, a gente também filma”, rebate Souza. Ela afirma desconhecer a origem dos dados apresentados pela Foirn e questiona sua credibilidade.
Ainda conforme os gráficos incluídos no ofício ao MPF, o total de mortos nas aldeias da região teria caído de 6,1 por mil habitantes para 1,6 por mil habitantes, entre 2014 e 2015. O número absoluto de mortos no período, nas aldeias, teria caído de 182 para 47. A questão é que outro gráfico mostra que não teriam ocorrido óbitos entre julho e dezembro de 2015, provavelmente um erro de registro ou informação em uma população de dezenas de milhares de pessoas (veja tabela abaixo).
Os números absolutos para mortalidade geral e mortalidade infantil enviados por Souza à reportagem apresentam melhora em 2015. Os coeficientes de mortalidade infantil e mortalidade materna (por mil nascidos vivos), no entanto, pioraram entre 2014 e 2015 (veja documento).
Problemas de gestão
“De modo geral, a saúde aos povos indígenas tem piorado, tem se tornado mais precária. E a forma de gestão, como isso vem sendo conduzido, não tem agradado muito, não tem um fundamento ou uma visão política de gestão de como coordenar as equipes multidisciplinares. Por mais que se afirme que a população está sendo assistida, a realidade mostra outra situação”, critica Marivelton Rodrigues Barroso, da diretoria da Foirn.
De acordo com ele, o DSEI Alto Rio Negro teria alguns dos piores indicadores de cobertura de vacinas no país. Em 2014, o distrito estava entre os três DSEIs com cobertura vacinal menor de 30% entre crianças com menos de um ano, segundo o Relatório de Monitoramento dos Planos de Ação 2014 do Departamento de Atenção à Saúde Indígena (DASI) (leia o relatório).
A taxa de vacinação é um dos principais indicadores de saúde e a informação indica que a situação na região de fato pode ser grave. A reportagem não conseguiu os dados para 2015. A possível queda no número de visitas das equipes de saúde também indica que a cobertura vacinal pode ter caído, já que uma vacinação eficiente depende de um grande número de visitas às aldeias.
Uma das denúncias mais graves da Foirn é sobre uma senhora de 82 anos que não teve o devido atendimento prévio em sua comunidade, conforme determinam os princípios do subsistema de Saúde Indígena, e que, por causa disso, teria chegado à Casa de Saúde Indígena (Casai) de São Gabriel da Cachoeira, em dezembro, com um caso grave de “prolapso uterino” – parte do órgão reprodutivo da idosa deslocou-se para fora da vagina. De acordo com as lideranças indígenas, os funcionários da Casai não a encaminharam ao hospital da cidade, como exigia seu caso, e teriam realizado tratamento inadequado no local (veja resposta do Ministério da Saúde abaixo).
Violações de direito
“Recebi com muita preocupação as denúncias feitas pela Foirn porque elas trazem várias informações, inclusive provas ou indícios de prova, de várias violações de direito da saúde dos povos do Rio Negro e, acima de tudo, materializam outras denúncias que estão sendo feitas pelo Brasil afora sobre o colapso do atendimento da saúde indígena”, diz Érika Yamada, relatora de Direitos Humanos e Direitos Indígenas da Plataforma de Direitos Humanos, Econômicos, Sociais e Culturais (Dhesca Brasil).
Yamada questiona a justificativa dada pelo DSEI sobre as dificuldades de acesso e as longas distâncias que precisam ser percorridas pelas equipes de saúde no Rio Negro. Para ela, o subsistema de Saúde Indígena foi criado pelo governo federal há alguns anos justamente para garantir um atendimento de qualidade diante dessas dificuldades e das especificidades culturais dos povos indígenas.
Ela lembra ainda que recursos pessoais e financeiros do DSEI poderiam ser melhor aproveitados com investimentos em prevenção, maior presença das equipes em campo e a coordenação de ações de diferentes órgãos do governo ligados à saúde, previdência e educação. “Acho que a Funai poderia ter um papel fundamental aí de articular melhor essas políticas”, conclui. Yamada conta que pretende pedir mais informações aos órgãos oficiais envolvidos e apresentar um relatório sobre o assunto até o fim do ano.
O Ministério da Saúde, por meio da Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI), ainda não foi notificado da denúncia, no entanto, já iniciou a apuração das informações apresentadas pela Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro. Não confere a informação de que a região sob a responsabilidade do Distrito Sanitário Especial Indígena Alto Rio Negro esteja desatendida: existem, atualmente, 50 equipes multiprofissionais de saúde indígena e 22 médicos atendendo diretamente nas aldeias (sendo 20 deles profissionais do Mais Médicos – três intercambistas individuais e 17 cooperados cubanos).
Com relação ao caso específico da idosa com miíase descrito no documento da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro, o DSEI garantiu atendimento completo à paciente, que foi tratada inicialmente por um médico na Casa de Apoio à Saúde Indígena (CASAI), e, posteriormente, encaminhada ao hospital municipal de São Gabriel da Cachoeira. No hospital, a idosa foi atendida por uma ginecologista, que solicitou exames laboratoriais e a internação da paciente. Não houve, em nenhum momento, utilização de “creolina” diretamente no corpo da paciente, que foi tratada com éter e soro fisiológico – a creolina foi utilizada somente para matar a miíase (larvas), após ter sido retirada mecanicamente do organismo da idosa.
Também não há desabastecimento de medicamentos e insumos, apenas falta provisória de alguns itens específicos, cuja aquisição já se encontra em curso. É importante destacar que existe dificuldade logística para aquisição de medicamentos inerente à região, decorrente da localização remota que exige longo deslocamento por via fluvial. A Sesai continuará a investigar as informações expostas na denúncia, e tomará todas as medidas necessárias para aprimorar o atendimento de saúde às comunidades indígenas do Rio Negro. Em 2015, a secretaria repassou ao DSEI R$ 7,2 milhões – valor que inclui diárias, material de consumo, obras, mão de obra e locomoção de equipes e indígenas, e que foi integralmente executado.
O Rio Negro tem alta concentração de territórios e povos indígenas. Lá estão localizadas sete Terras Indígenas (TIs) – Alto Rio Negro, Médio Rio Negro I, Médio Rio Negro II, Balaio, Cué-Cué/Marabitanas, Rio Apapóris e Rio Tea – que, juntas, têm população total de 32,2 mil pessoas e uma área de 11,5 milhões de hectares. Os municípios que compõem a região – São Gabriel da Cachoeira, São Isabel e Barcelos – contam com muitos indígenas em relação ao total da população. De acordo com dados do censo do IBGE de 2010, só em São Gabriel da Cachoeira vivem 37,8 mil pessoas, das quais 29 mil são indígenas, ou quase 80% do total.