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Conhecedores da Amazônia

Rede indígena de manejo ambiental descreve em diários de pesquisa mudanças climáticas tendo como referência as estrelas e constelações
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Por Ana Amélia Hamdan

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“Quinta-feira, 8 de abril de 2021: manhã totalmente nublada. Dias 9, 10, 11 de abril: Verão de Umari. Nessa semana, meus parentes da aldeia Porto Amazonas, Colômbia, farão no Igarapé Zogue-Zogue Festa de Pupunha. É a última festa de verão pupunha. E logo em seguida terá cerimônia de Dabucuri de frutas silvestres com flauta sagrada. Feito isso, cunhados da aldeia Puerto Inajá e Santa Isabel (Komeña) já começam um novo ciclo de jejuar (…)”

Esse é um pequeno trecho do diário que Damião Amaral Barbosa, da etnia Yeba Masã, registra como Agente Indígena de Manejo Ambiental (Aima) em sua comunidade, no Igarapé Castanha, Rio Tiquié, na fronteira do Brasil com a Colômbia.

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Neste ano, também nos primeiros dias de abril, Damião registrou outro cenário: a fruta umari veio na época certa, mas o chamado verão de Umari — que são alguns dias sem chuva — não apareceu. “O rio já encheu grande, enchente grande, encheu igapó, não teve mais verãozinho de três ou quatro dias. Veio a fruta, mas não verão do Umari”, descreve.

O relato foi feito pelo próprio Damião durante a oficina de AIMAs ocorrida de 5 a 15 de abril na comunidade Açaí-Paraná, no Baixo Rio Uaupés, município de São Gabriel da Cachoeira (AM). O encontro reuniu cerca de 30 agentes ambientais que vivem em comunidades indígenas dos rios Tiquié, Baixo Uaupés, Igarapé Castanha e Negro, para troca de experiências sobre as observações nas comunidades onde moram.

Essas comunidades estão numa das regiões mais preservadas da Amazônia, mas ainda assim os AIMAs vêm percebendo alterações nos ciclos naturais e falam em impactos da emergência climática. As percepções coincidem com as narrativas dos conhecedores indígenas, que também participaram da oficina.

O tema foi discutido no encontro, assim como lixo, manejo dos peixes, cadeia de valores e o reconhecimento dos agentes ambientais pelos órgãos oficiais. O último ponto está na pauta da Câmara Federal, conduzida pela Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas, coordenada pela deputada federal Joenia Wapichana (Rede).

Ela está se reunindo com indígenas e organizações de defesa dos povos tradicionais para a elaboração de projetos de lei para regulamentação dos AIMAs e dos Agentes de Segurança Territorial Indígena (Gpvit).

Coordenador-adjunto do Programa Rio Negro do Instituto Socioambiental (ISA), o antropólogo Aloisio Cabalzar está à frente do projeto Rede de AIMAs, desenvolvido em parceria com a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn), por meio da coordenadoria Diawii. Ele participou da oficina em Açaí-Paraná e, em conversa com os pesquisadores, ressaltou a importância da rede, inclusive para a conscientização da importância dos territórios indígenas.

“São vocês que vivem aqui que conhecem melhor que qualquer um a região, os ciclos, a paisagem, serras, rios e cachoeiras. Sabem manejar esse território. Por isso existem as Terras Indígenas. Isso tem que ser entendido e reconhecido pelas autoridades. Esse trabalho com o registro de diários mostra esses conhecimentos, essas práticas de manejo e de governança do território”, disse no encontro.

Cabalzar explica que o projeto não surgiu com o objetivo de monitoramento de mudanças climáticas, mas esse tema vem aparecendo nos relatos dos agentes ambientais. “O projeto dos AIMAs é desenvolvido há mais de 15 anos pelo ISA e foi iniciado como demanda dos próprios indígenas de ampliação do projeto de manejo de peixes que foi desenvolvido no Rio Tiquié. Havia o entendimento de que o ciclo de vida dos peixes estava relacionado a outros ciclos ecológicos, biológicos e mesmo rituais”, conta. O projeto é desenvolvido com apoio de várias instituições, sendo que atualmente as principais parcerias são com o LIRA (GBMF/BNDES) e Nia Tero.

A Rede de AIMAs realiza pesquisas interculturais, com intercâmbio de saberes entre os indígenas de várias etnias — como Tukano, Tuyuka, Yeba Masã, Piratapuya, Baniwa –, de kumuas (como os conhecedores rituais são chamados na região) e de conhecedores indígenas e não indígenas. “As observações partem do entendimento indígena da integração: as pessoas não são uma coisa e a natureza é outra. O manejo indígena é parte dos processos ecossistêmicos, são interdependentes, como mostram os diários e também a fala e os benzimentos dos conhecedores”, explica Cabalzar.

Em seus diários — as anotações são feitas em cadernos, agendas e tablets. Os indígenas acompanham as enchentes, os períodos de verão, os trabalhos, florações, migrações de peixes, aves e outros a animais, piracemas, doenças, festas e benzimentos — tendo como referência as constelações. Alguns dos diários ganham ilustrações de flores, frutos, peixes e outros animais.

Atualmente, a Rede de AIMAs conta com cerca de 40 agentes, com atuação nos rios já citados e no Rio Içana, onde há predominância de comunidades da etnia Baniwa, e na região de Barcelos.

Mulheres

“Escutando os pesquisadores, a gente entende que esses conhecimentos não são repassados na educação formal. O papel dos AIMAs é gerar um monitoramento diário de questões ambientais interligado com o sistema de constelação único, dentro do conhecimento deles”, afirma Marina Spindel, ecóloga e assessora do ISA que também participou da oficina de AIMAs em Açaí-Paraná.

“Em uma época em que se fala tanto de mudanças climáticas, os agentes mostram ter um conhecimento à frente do que vemos nas instituições acadêmicas”, completa.

Spindel explica que há interesse em reforçar a participação das mulheres indígenas na Rede de AIMAs. O grupo conta com apenas uma, Oscarina Caldas Azevedo, Desana, moradora de Acará Poço.

Segundo Oscarina, alguns temas de sua observação, como o clima, coincidem com a dos homens, mas há outras partes que se diferenciam, pois são da vivência da mulher indígena.

Entre elas estão os trabalhos na roça e os conhecimentos sobre as mandiocas. Durante o encontro, as mulheres presentes realizaram uma roda de conversa para compartilhar vivências.

Língua indígena

Na oficina, a principal língua falada foi Tukano. Dagoberto Azevedo, antropólogo, assessor e analista de pesquisa e desenvolvimento socioambiental do ISA, da etnia Tukano, fez a tradução não somente da língua, mas do entendimento, facilitando o diálogo entre os indígenas e não indígenas. “Nem sempre a tradução é literal. É necessário também explicar o que os indígenas estão querendo dizer e fazer uma espécie de mediação para o mundo dos brancos”, diz.

Azevedo reforçou a importância da Rede de AIMAs para o fortalecimento dos conhecimentos indígenas. “Esse trabalho vai além da pesquisa da forma que o não indígena faz. Essa pesquisa observa e registra questões culturais e conhecimentos. Alguns desses saberes estavam entrando em desuso”, observa.

“Embora os conhecedores continuassem a trocar experiências entre eles, não se falava abertamente sobre essas práticas, que conhecemos na língua Tukano como ‘Basese’. Aos poucos, esses conhecedores foram se abrindo e trocando experiências com a rede de AIMAs”, explica.

Conhecedores tradicionais também participaram da oficina, integrando rodas de conversas para compartilhamento de saberes.

Um deles é Rafael Azevedo, Tukano, morador de Acará-Poço, no Rio Tiquié. Segundo ele, no entendimento indígena, a desordem dos ciclos está ocorrendo devido à diminuição das práticas dos povos tradicionais.

“As constelações, nós temos entendido que nossos avós faziam com que elas funcionassem bem como eles queriam. Como perdemos nossos pais, a sabedoria, alguns conhecimentos, estamos passando a fase ruim para sustentar a família por meio da agricultura, da caça e do peixe”, lamenta.

“Isso para nós significa que o planeta hoje em dia está todo mudado. Não se sabe mais que tempo vai dar verão e que tempo vai dar inverno. Temos que aprofundar mais no conhecimento dos nossos antepassados, precisamos retomar os conhecimentos e os benzimentos.”

Nos relatos dos AIMAs, a alteração nos ciclos é uma constante. Entre os registros que indicam eventos climáticos inesperados, está o da comunidade Açaí-Paraná, onde aconteceu o encontro. Famílias perderam roças nas enchentes de 2021, quando foi registrada uma cheia histórica no Amazonas.

Morador dessa comunidade, o Aima Rosivaldo Miranda, da etnia Piratapuia, conta que vem observando alteração nos ciclos. “Vemos as mudanças climáticas realmente acontecendo. No ano passado, perdemos três roças, com o alagamento. As famílias perderam a alimentação, ficaram no prejuízo. Na comunidade vizinha também houve perdas”, comenta.

A agricultora Amélia Matos Lopes, da etnia Baniwa, moradora de Açaí-Paraná, viu sua roça virar um igapó, ou seja, ser toda inundada. “Para chegar na nossa roça, temos que pegar a rabeta [barco com motor] e seguir cerca de uma hora no rio. Meu marido seguiu para a pescaria, eu e minha filha ficamos na roça. Era abril de 2021, não lembro bem o dia. Quando cheguei lá, estava tudo inundado. A água estava na cintura, minha filha subiu num pé de ingá para não se molhar. Mesmo na inundação, eu apanhei um pouco de mandioca. Mas chorei muito quando vi aquela situação”, relembra.

Dona Amélia produziu 12 latas de farinha com a mandioca que conseguiu arrancar e contou com a ajuda de familiares que moram em outras comunidades para conseguir mais quantidade do alimento, que é a base da dieta dos moradores da região.

Rosivaldo Miranda diz que está preocupado com a instabilidade das chuvas deste ano e dos próximos períodos. “Tem pouco tempo, o rio encheu muito, mas depois voltou a baixar. Não sabemos como vai ser”, alerta.

A comunidade de Açaí-Paraná está numa região de caatingas e igapós extensos, onde não é possível a agricultura. Áreas propícias para colocação de roças são poucas. Por outro lado, a região é farta em peixe.

A comunidade cultiva roças em áreas relativamente próximas — cerca de uma hora de distância, entre trecho de rio e caminhadas — e ainda promove troca com outros grupos do Tiquié e Uaupés, recebendo farinha e outros produtos e oferecendo peixe.

Morador da comunidade de São Paulo, no Alto Rio Tiquié, o AIMA Lucas Alves Bastos, da etnia Tukano, também relata a percepção das mudanças nos ciclos. “A gente vê na nossa pesquisa sobre as mudanças dos tempos. Os velhos, nossos conhecedores, informam que hoje em dia não é como antes. As enchentes, os verões, as revoadas, as migrações de pássaros, também desova dos peixes, cada dia que passa não acontece mais como nos anos anteriores. As coisas estão mudando. Na época, cada ano tinha que fazer roça para queimar em certo período. Hoje em dia, alguns fazem a roça, mas não conseguem fazer a queima, pois chove, perde seu trabalho”, relata.

Durante as conversas, os indígenas sugeriram a formação de uma rede de conhecedores indígenas para fortalecimento de práticas como benzimentos e proteções. Outros dois encontros dos AIMAs para realização de oficinas de formação e troca de informações estão previstos para acontecer em 2022.

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Saiba quais são as constelações que marcam os ciclos na região dos rios Tiquié e Uaupés

Aña — Jararaca

Pamo — Tatu

Muhã — Jacundá

Dahsiu — Camarão

Yai — Onça

Ñohkoatero — Plêiades

Waikasa — Jirau de Peixe

Kaisarirõ

Sioyahpu — Cabo-de-Enxó

Diayo — Ariranha

Uphaigu ou yurara — Jabuti-Grande

Yhe — Garça

Participantes do encontro

GRUPO ALTO TIQUIÉ

João Paulo Pimentel Tenório, Tuyuka, comunidade São Pedro

Lucas Alves Bastos, Tukano, comunidade São Paulo

Josimar Rezende Marques, Tukano, comunidade Caruru

Edécio Marques Meira, Tuyuka, comunidade Cachoeira Comprida

Osmail Azevedo Rezende, Tuyuka, comunidade São Pedro

MÉDIO TIQUIÉ

Rafael Antônio Azevedo, Tukano, comunidade Acará-Poço

Oscarina Caldas Azevedo, Desano, comunidade Acará-Poço

Aliete Laura Caldas Azevedo, Acará-Poço

Celestino Rezende Azevedo, Tukano, Pirarara-Poço

Vilmar Rezende Azevedo, Tukano, comunidade Pirarara-Poço

Rogelino da Cruz Alves Azevedo, Tukano, comunidade São José II

José Caldas Pedroso, Tukano, comunidade Cunuri

José William Sampaio Uribe, Siriano, comunidade Santo Alberto

Benjamin Sarmento Uribe, Siriano, comunidade Santo Alberto

IGARAPÉ CASTANHA/RIO TIQUIÉ

Damião Amaral Barbosa, da etnia Yeba Masã, comunidade São Felipe

Inácio Macedo Barbosa, Desano, comunidade Santa Rosa

Genésio Batista Silvano, Tukano, comunidade Assunção

Oziel Barbosa Macedo, Hupde, comunidade Santa Rosa

Mateus Gomes Macedo, Desano, comunidade Santa Rosa

Teodoro Rodrigues Barbosa, Yeba Masã, comunidade São Felipe

BAIXO UAUPÉS E RIO NEGRO

Rosivaldo Miranda, Piratauipa, comunidade Açaí-Paraná

Silvaldo Navarro da Silva, Tukano, comunidade São Pedro

Paulino André de Ribeiro, Tukano, comunidade Unuri

Alfredo Castro, Tukano, comunidade São Pedro

Germano Moreira, Tukano, comunidade Açaí-Paraná

Gabriel Moreira, Tukano, comunidade Açaí-Paraná

Edson Galvão, Tukano, comunidade São Pedro

Paulo Augusto Marques Araújo, Dãw, comunidade Waruá

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