Essa é a versão antiga do site do ISA que ficou no ar até março de 2022. As informações institucionais aqui contidas podem estar desatualizadas. Acesse https://www.socioambiental.org para a versão atual.
Reportagem: Ester Cezar
Com a finalização do voto da ministra Cármen Lúcia e o pedido de vistas do ministro André Mendonça, acabou na quarta-feira (6) a primeira parte do julgamento do “Pacote Verde” no Supremo Tribunal Federal (STF).
Na qualidade de relatora, a ministra analisou a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 760 e a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 54, que tratam do enfrentamento à emergência climática, da proteção da Amazônia e exigem a execução do Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia (PPCDAm). O ISA é uma das organizações da sociedade civil responsáveis pela elaboração da ADPF 760.
Em voto considerado histórico, Cármen Lúcia acolheu as alegações e pedidos das ações e declarou a existência de um “estado de coisas inconstitucional”. O termo jurídico designa situação de omissões e falhas estruturais nas ações governamentais em relação às políticas públicas classificadas como essenciais pela Constituição, resultando em massiva violação de direitos fundamentais.
A ministra propôs um prazo de 60 dias para que o governo apresente um plano para a retomada do PPCDAm e para o cumprimento da meta climática com a qual o país comprometeu-se internacionalmente (máximo de 3.925 km² de desmatamento por ano até 2020). Em 2021, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), a Amazônia teve um desmatamento de mais de 13,2 mil km².
Cármen Lúcia determinou, ainda, a apresentação de um plano de fortalecimento institucional para o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama), o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e a Fundação Nacional do Índio (Funai), além de medidas de monitoramento, transparência e controle social do cumprimento da decisão.
A ministra ainda comparou o desmonte das políticas ambientais ao que chamou de “cupinização institucional”. “Com relação ao meio ambiente, especificamente, as instituições são destruídas por dentro, como cupim, sem que se mostre exatamente o que se passa. Promovem-se políticas públicas ineficientes, ineficazes”, criticou.
O ministro André Mendonça seria o próximo a se pronunciar, mas pediu “vistas” para analisar melhor os processos. A solicitação suspende a apreciação das duas ações por 30 dias, mas não raro esse prazo regimental não é cumprido. Assim, não há data marcada para a retomada do julgamento.
Ainda no dia 6, começou a análise da ADPF 651, outra do pacote e que contesta a constitucionalidade do decreto que excluiu a sociedade civil do conselho deliberativo do Fundo Nacional do Meio Ambiente. No dia seguinte, a sessão terminou com o voto favorável à ação da relatora, também Cármen Lúcia, que foi seguido pelos ministros Ricardo Lewandowski, Alexandre de Moraes e, em parte, André Mendonça. O ministro Nunes Marques abriu divergência, entendendo não haver inconstitucionalidade no decreto. O julgamento será reiniciado no dia 20.
O “Pacote Verde” inclui no total sete ações sobre o meio ambiente (veja lista completa no quadro ao final da reportagem). É a primeira vez na história que a Corte estabelece uma agenda comum para julgar ações específicas sobre o tema. Cármen Lúcia é relatora ainda da ADPF 735 e das ADIs 6148 e 6808. A ministra Rosa Weber relata a ADO 59.
As ações denunciam o desmonte das políticas socioambientais no país, acusando o governo Bolsonaro de violar o direito constitucional ao meio ambiente ecologicamente equilibrado para as presentes e futuras gerações, instituído no artigo 225 da Constituição, além de direitos como à vida, à dignidade, à saúde, dos povos e comunidades tradicionais, das crianças, adolescentes e jovens.
A ADPF 760 pede a retomada e cumprimento urgentes do PPCDAM. O plano foi criado em 2004 e, segundo avaliação de especialistas, foi a mais bem-sucedida política ambiental brasileira, sendo responsável pela redução de 83% nas taxas de desflorestamento entre 2004 e 2012. Porém, em 2019, a iniciativa foi suspensa pelo governo, resultando em seguidos recordes nos índices de destruição da floresta.
A ação também aponta graves violações a direitos fundamentais dos povos indígenas e comunidades tradicionais, que são essenciais para a manutenção da vida, como destacou, durante o julgamento, o advogado da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) Luís Eloy Terena.
“As Terras Indígenas e as Unidades de Conservação são bens da União que funcionam como barreiras territoriais contra o desmatamento. São essas áreas de segurança climática que, ao serem efetivamente protegidas, garantem de forma significativa que o Brasil cumpra as metas assumidas diante da comunidade internacional. O compromisso normativo e ético para combater as mudanças climáticas é uma tarefa de responsabilidade global”, argumentou.
De acordo com Sandra Cureau, subprocuradora-geral da República aposentada, o compromisso constitucional do país não é apenas com a presente geração. “A solidariedade contida no artigo 225 caput da Lei Maior é intergeracional, é preciso que seja garantido também às crianças e aos jovens e aqueles que ainda virão um patamar de equilíbrio ecológico que lhes garanta o direito à vida e à saúde e o respeito aos seus direitos fundamentais”, disse.
Além do ISA, participaram da elaboração da ação a Apib, Conselho Nacional de Populações Extrativistas (CNS), Observatório do Clima (OC), Greenpeace Brasil, Conectas Direitos Humanos, Instituto Alana, Engajamundo, Artigo 19 e Terra Azul. A ADPF foi proposta pelo PSB, PSOL, PT, PCdoB, Rede, PDT e PV.
A ADO 54 apresenta uma série de dados que atestam a omissão da administração federal no combate ao desmatamento.
Na análise da ação, o advogado-geral da União, Bruno Bianco, afirmou que o governo não falhou ao tentar conter a destruição da floresta. Bianco mencionou a criação do Plano para Controle do Desmatamento Ilegal e Recuperação da Vegetação Nativa 2020-2023, uma espécie de substituto ao PPCDAm. Ele alegou uma suposta tentativa de interferência na atuação do governo por parte das organizações responsáveis pelas ações e pediu seu indeferimento.
“Não houve qualquer descontinuidade no plano de ação para prevenção e controle do desmatamento na Amazônia, [...] mas sim uma evolução para um novo Plano Nacional de Combate ao Desmatamento Ilegal e Recuperação da Vegetação Nativa para os anos 2020 a 2023”, defendeu. “Fica muito claro que as impugnações expostas nessas ações de modo geral traduzem pretensões de intervenção e rearranjo na atuação do poder executivo”, concluiu.
O assessor jurídico do ISA Mauricio Guetta apresentou alguns dos dados que põem em xeque a fala de Bianco. Entre eles, o aumento da taxa de desmatamento da Amazônia nos últimos três anos, de 7,5 km² mil, em 2018, para mais de 13,2 mil km², em 2021; extinção de instâncias governamentais e órgãos de combate aos crimes ambientais e às mudanças do clima; redução no número de autuações pelo Ibama (o menor nos últimos 20 anos); paralisação do Fundo Amazônia.
Guetta também criticou a tentativa do governo de substituir o PPCDAM. De acordo com ele, o novo plano federal, mencionado pelo advogado-geral, não encontra respaldo legal, o que o torna juridicamente inexistente.
“O tal novo ‘plano’ igualmente inexiste devido ao seu conteúdo, por não possuir qualquer das características exigidas à constituição de uma política pública, em franco retrocesso ao que consta do PPCDAm”, criticou. “Estamos em um momento decisivo na história da Terra, numa época em que a humanidade deve escolher o seu destino comum. Com a decisão pretendida, o STF pode orientar o Brasil a voltar a caminhar em direção à Constituição Federal e, com isso, restabelecer a esperança do povo brasileiro e de toda a comunidade global”, continuou.
“Esse julgamento é um dos mais importantes da história do direito socioambiental e ele tem uma relevância que transcende os limites do país, porque a Amazônia é essencial para o combate às mudanças climáticas. Sem a Amazônia não há esforço global capaz de frear a mudança do clima. Então a gente está tratando de um elemento essencial para o futuro da humanidade”, concluiu (veja vídeo abaixo).
Já o procurador-geral da República, Augusto Aras, simplesmente ignorou a responsabilidade do governo na crise ambiental e afirmou se tratar de uma questão que não deveria ser julgada pelo STF.
“Não parece a este procurador geral, na espécie, estar evidenciado ato do poder público lesivo a preceito fundamental da Constituição, tampouco omissão constitucional passível de censura, ao menos nesta via processual e nesta assentada de julgamento”, alegou.
1. ADPF 760: pede a retomada do Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia;
2. ADPF 735: questiona decreto presidencial que retira autonomia do Ibama na fiscalização de crimes ambientais e a transfere para as Forças Armadas pela Operação Verde Brasil;
3. ADPF 651: pede inconstitucionalidade de decreto que excluiu a sociedade civil do conselho deliberativo do Fundo Nacional do Meio Ambiente;
4. ADO 54: acusa o governo federal de omissão no combate ao desmatamento
5. ADO 59: pede a reativação do Fundo Amazônia, o repasse de recursos financeiros de projetos já aprovados e a avaliação dos projetos em fase de consulta;
6. ADI 6148: questiona resolução do Conama que estabelece padrões de qualidade do ar sem estabelecer prazos para a mudança;
7. ADI 6808: contesta medida provisória que permite licença ambiental automática para empresas consideradas de grau de risco médio e impede que órgãos de licenciamento solicitem informações adicionais, além das informadas à Redesim (Rede Nacional para a Simplificação do Registro e da Legalização de Empresas e Negócios).