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Sistema Agrícola Quilombola do Vale do Ribeira pode se tornar patrimônio cultural brasileiro

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Lideranças quilombolas, parceiros e o ISA validaram no sábado último (21/6) as informações que irão integrar o dossiê sobre o Sistema Agrícola Quilombola, para que seja reconhecido como patrimônio cultural brasileiro
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O seminário, realizado no quilombo Ivaporunduva, em Eldorado, Vale do Ribeira, reuniu cerca de 50 lideranças quilombolas, representando as comunidades que fazem parte do processo, técnicos do ISA e parceiros, para fazer um balanço das etapas percorridas até aqui. Também avaliaram o que falta para concluir o documento final e enviá-lo para análise do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).

Essa história começa com a elaboração da Agenda Socioambiental Quilombola elaborada pelas comunidades em parceria com o ISA e concluída em 2008. Durante a pesquisa surgiu a demanda pela realização de um levantamento cultural mais amplo e de ações de fortalecimento da cultura quilombola. Assim, teve início o Inventário de Referências Culturais e o desenvolvimento de ações de fortalecimento das roças quilombolas e sua agrobiodiversidade. Bons exemplos são as feiras de trocas de sementes e mudas dos quilombos do Vale do Ribeira, que este ano vai para sua nona edição, e o Paiol de Sementes, lançado na feira de 2015.

Agora, as comunidades quilombolas do Vale do Ribeira estão na reta final para o reconhecimento e registro de seu Sistema Tradicional Agrícola, decisivo para seu fortalecimento. O representante do do quilombo São Pedro, Aurico Dias, falou sobre a parceria com o ISA, que ajuda a organizar melhor as questões voltadas à alimentação, cultura e geração de renda. “O registro é mais uma ferramenta contra as ameaças aos direitos quilombolas”.

Para Diana Dianovisky, da Coordenação de Registro do Patrimônio Imaterial do Iphan, patrimônio não é apenas algo físico e concreto, mas inclui também os modos de vida, como as roças. Ela falou da importância de identificar geograficamente este bem cultural, para que o Iphan, se consultado sobre impactos e empreendimentos nessa na região específica, tenha informações para que possa se manifestar com clareza. Ela reforçou o papel do Iphan de conduzir os processos de registro do patrimônio imaterial de forma que contribuir com a a partir destes seja possível a elaboração de políticas públicas para a salvaguarda daquele bem.

Apresentação do trabalho

Alexandre Kishimoto, do ISA, apresentou os temas propostos para compor o dossiê, elaborados com a participação das comunidades por meio de reuniões e oficinas, além de entrevistas concedidas para coleta de informação sobre as roças e textos produzidos por pesquisadores parceiros que atuam com o tema no Vale do Ribeira.

A antropóloga do ISA, Anna Maria Andrade, relembrou com os quilombolas o processo de elaboração do inventário cultural, que ela coordenou, e que mostrou a importância e a centralidade das roças. A construção participativa do levantamento de bens culturais contou com pesquisadores quilombolas, chamados agentes culturais, que fizeram o levantamento em suas comunidades. “Entre 2010 e 2012 foram identificados 180 bens e muitos conhecimentos associados à roça, tais como: que madeiras utilizar para o processamento dos alimentos? de que forma realizar os plantios? que celebrações são feitas atreladas à roça? quais os lugares ocupados historicamente para os plantios (as capuavas)? As roças foram identificadas como um bem bastante difundido. É íntegro, ou seja, está presente nas comunidades. Mas é um esteio ameaçado pela legislação ambiental, pela falta da regularização fundiária, pela maneira como a educação no campo é tratada”, avalia Anna Maria.

O tema da agrobiodiversidade foi apresentado para compor o dossiê englobando todo o levantamento de variedades para o paiol e as feiras de trocas de sementes que acontecem entre os quilombolas há oito anos. “Sempre trocaram sementes entre as comunidades (arroz, milho, cana, mandioca), e também animais. Com as feiras começaram a lembrar dessas trocas que os antigos faziam. É uma maneira diferente, mas é uma forma de continuar o processo que os ancestrais faziam”, lembrou seu Hermes Modesto Pereira, do quilombo de Morro Seco, em Iguape. “O que precisa para ter o sistema protegido é território e enquanto os terceiros jogarem veneno nos territórios, a roça está ameaçada”, alertou dona Diva, liderança do quilombo Pedro Cubas de Cima. Sueli Berlanga, da Equipe de Articulação e Assessoria às Comunidades Negras do Vale do Ribeira (Eaacone),reforça: “A história mostra que as roças eram espaços de resistência dos ex-escravos”.

Roças são um direito

O Defensor Público Estadual Andrew Toshio Hayama, que contribuiu com o texto do dossiê abordou a criminalização das roças tradicionais. A ciência já vem subsidiando a compreensão sobre as práticas e sua sustentabilidade, e os marcos legais nos permitem entender que as roças são um direito. O Poder Público deve assumir deveres, “não atrapalhar”, e criar incentivos para que o Sistema Agrícola se viabilize.

Sobre estes incentivos, Roberto Resende, da Iniciativa Verde, também colaborador do dossiê, argumentou que o sistema de roças feito pelos quilombolas é previsto na lei, e que para garantir sua viabilidade é preciso que as políticas públicas contemplem ações para a roça tradicional.

O quilombola Paulo Pupo, do quilombo Ivaporunduva, falou do orgulho das comunidades em relação ao Sistema Agrícola. “A retomada dos mutirões [referia-se ao mutirão da colheita de arroz realizado em 2015] ajuda a envolver mais as comunidades. Temos orgulho de produzir e consumir alimentos orgânicos. O registro do sistema pode melhorar a autoestima e valorizar o ser quilombola”.

Os desafios

A pesquisadora Katia Pacheco, professora da Universidade de Brasília, que atua há muitos anos no Vale do Ribeira, destacou que o registro é uma forma de dialogar com a sociedade. Chegar até aqui é uma conquista que deve ser valorizada. Fazer a roça está muito ligado ao reconhecimento que os quilombolas esperam da sociedade e é preciso aproveitar as políticas públicas como as de comercialização, sem esquecer da segurança alimentar.


Dona Benedita, do quilombo Maria Rosa, em Iporanga, disse que “os professores da cultura das roças são os pais”. Para ela, o jovem estimulado a estudar fora não pode deixar o conhecimento tradicional de lado. Os quilombolas cultivam sua terra, precisam valorizar isso e todo o seu conhecimento.

A participação e a apropriação pelos jovens é o grande desafio, ao lado do incentivo e apoio de políticas que fomentem e contribuam para que estas roças sejam fonte de cultura, segurança alimentar e geração de renda. E os quilombolas já se organizam neste sentido, à medida que comercializam com apoio da Cooperquivale, 53 variedades de produtos diferentes para o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA). Apesar de ainda serem necessárias muitas ações há muito a ser feito no campo da valorização da produção e agregação de valor para a comercialização, mas não há dúvida que a geração de renda com as roças tradicionais é um caminho para manter o sistema vivo. (Veja quadro no final sobre as roças na Mata Atlântica).

Roça como Patrimônio Imaterial

Ao final, os quilombolas assistiram e validaram o último vídeo de umaa série de três que foram produzidos sobre o Sistema Agrícola (veja os vídeos no final do texto). As lideranças endossaram a importância da continuidade do processo e aproveitaram para esclarecer dúvidas junto ao Iphan sobre os próximos passos. O ISA se comprometeu a concluir o relatório incorporando as recomendações do Iphan e das comunidades quilombolas, bem como a edição final e posterior distribuição do DVD, reunindo os três vídeos, a cada família que vive nas comunidades quilombolas requerentes do registro do Sistema.

Diana do Iphan avaliou que o seminário foi proveitoso para entender a construção do inventário e do dossiê. Informou que o relatório enviado pelo ISA será analisado e publicado em Diário Oficial para contestações. Depois passará pelo Conselho Consultivo, que irá deliberar sobre seu registro ou não. Uma vez aceito e publicado, há uma série de instrumentos que o Iphan pode apoiar, como a elaboração de material didático, produção de vídeos sobre o tema, feiras de trocas etc. Mas tudo isso tem que ser deliberado pelos próprios quilombolas, que são os “detentores” do bem. Existem organizações já constituídas e deliberativas, como a cooperativa e as associações, e isso é importante para garantir os espaços de discussão sobre o sistema agrícola.

Embora não seja um órgão ambiental, o Iphan pode articular a discussão com outras instâncias evidenciando os aspectos culturais do sistema. Além da finalização do relatório, as comunidades e parceiros já estão discutindo estratégias para compor o plano de salvaguarda, ações necessárias para garantir a manutenção do Sistema Agrícola Quilombola.


As comunidades participantes

Enviaram representantes os quilombos Abobral, Bombas, Cangume, Galvão, Ivaporunduva, Maria Rosa, Morro Seco, Nhunguara, Pedro Cubas, Pedro Cubas de Cima, Pilões, Porto Velho, Praia Grande, São Pedro, Sapatu. Os representantes de Poça, André Lopes, Piririca e Mandira não conseguiram chegar por conta do mau tempo no dia.

O seminário é mais uma das ações do Projeto Sistema Agrícola Quilombola: soberania alimentar, cultura e geração de renda, realizado pelo Programa Vale do Ribeira do ISA em 19 quilombos da região, com o patrocínio da Petrobras.

As roças amigas da biodiversidade da Mata Atlântica

Durante o seminário, o pesquisador Alexandre Filho Ribeiro, do grupo de pesquisa Ecologia Humana de Florestas Neotropicais da USP destacou os resultados dos estudos que há mais de dez anos o grupo realiza sobre as de estudosdas pesquisas de mais de 10 anos do grupo relacionadas sobre asàs roças de coivara. Em determinado momento houve o afastamento do ser humano dos processos ecológicos, quando os nutrientes, inseticidas e outros insumos passaram a vir de fora do sistema. Nos dias de hoje ainda se observam populações que fazem roças com os princípios de interação com a floresta, como o Sistema Agrícola Quilombola. Segundo Alexandre, o grupo de estudos foca seus trabalhos nos diversos aspectos que envolvem as roças, avaliando seu impacto na floresta, na biodiversidade e na saúde.

Alexandre realizou estudo sobre a conservação do solo, considerando o corte e a queima. Relatou que o solo da Mata Atlântica é pobre em nutrientes, que estão disponíveis nas copas, tronco e galhos grossos das árvores. Quando é feito o corte e a queima esses nutrientes são liberados, adubando a roça. Ao medir a temperatura durante a queima, identificou que ela subiu menos de 10 graus, o que é pouco impactante. Outro pesquisador do grupo, Helbert Medeiros fez a pesquisa sobre a fauna, instalando câmeras em locais de roças e entrevistando as comunidades. Verificou que o conhecimento dos quilombolas vem da observação da dinâmica da natureza ao fazer as roças. É justamente essa relação com a natureza que se perdeu ao longo do tempo, e que é tão importante no Sistema Agrícola Quilombola. O saber quilombola é de extrema importância para a ciência. Outra conclusão dos estudos é que as florestas de 25 anos são melhores para o sistema do que a capoeira fina, reafirmando o conhecimento dos quilombolas sobre a maturidade das florestas boas para a roça.

Assista ao vídeo do mutirão da colheita de arroz, que é parte do dossiê do Sistema Agrícola Quilombola.

Assista ao segundo vídeo do dossiê do Sistema Agrícola Quilombola sobre as sementes quilombolas.

ISA
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