Essa é a versão antiga do site do ISA que ficou no ar até março de 2022. As informações institucionais aqui contidas podem estar desatualizadas. Acesse https://www.socioambiental.org para a versão atual.
Pedro Pereira pega o microfone e pede que todos prestem atenção: “Agora é a gente que vai falar”. Cerca de cem pessoas lotaram a sala de aula do Morro do Anfrísio, na Reserva Extrativista Riozinho do Anfrísio, que sediou a quarta edição da Semana do Extrativismo da Terra do Meio. Realizado entre 16 e 21 de maio. O encontro reúne anualmente ribeirinhos, indígenas e parceiros para pensar na produção dos produtos da floresta e no território em que vivem.
Após alguns informes sobre a programação, Pedro pede que todos formassem uma roda e puxa o hino do seringueiro “pra começar bem e fortalecer o nosso encontro” (Ouça aqui). Pedro vive em Paulo Afonso, uma das últimas comunidades dentro dos limites da Resex. Ele, juntamente com dezenas de famílias beiradeiras, é responsável pela estruturação e valorização das cadeias dos produtos da floresta, como a castanha, o babaçu, a seringa e o cumaru. Ao longo de todo o evento, ribeirinhos e indígenas conduziram as discussões: “Este é um momento histórico pra gente”, afirma Pedro.
Em sua quarta edição, a Semana aconteceu este ano na Resex Riozinho do Anfrísio, localizada em um afluente do Rio Xingu que leva o mesmo nome, a cerca de 430 km ou dois dias de voadeira de Altamira (PA). As longas distâncias dificultam encontros mais frequentes – na época mais seca do ano (entre agosto e novembro), pode-se levar vários dias de uma localidade para outra. A Semana, portanto, é a ocasião em que todos podem se encontrar para pensar e construir estratégias de ação sobre a produção e gestão do território de maneira integrada. Desta edição participaram os ribeirinhos das três Resexs da Terra do Meio - Riozinho do Anfrísio, Rio Xingu e Rio Iriri, da Estação Ecológica Terra do Meio, do Parque Nacional Serra do Pardo, de Altamira, agricultores familiares de Uruará, indígenas Arara, Xikrin, Juruna, Parakanã, Xipaya e Kuruaya, empresas e instituições governamentais e não governamentais.
“A Semana une as pessoas deste território, promovendo um diálogo entre ribeirinhos, indígenas, empresas e instituições”, comenta Herculano Oliveira Filho, o Loro, assessor da Associação dos Moradores do Riozinho do Anfrísio (Amora). “É um momento em que podemos avaliar o andamento do que vem acontecendo, planejar novas etapas do nosso trabalho e conversar sobre nossa relação com as empresas”.
Pela quarta vez Jorge Hoelzel, conselheiro da empresa Mercur, viajou para a Terra do Meio. Ele sobe na voadeira e se prepara para atravessar os 430 quilômetros de rio até o Morro do Anfrísio para conversar sobre a produção e comercialização da borracha com os extrativistas. A Mercur, empresa que produz produtos de borracha, adquire desde 2011 o produto natural da região.
Um dos objetivos centrais da Semana do Extrativismo é promover o diálogo direto entre extrativistas e empresas, buscando melhorias e inovações que promovam contratos justos e transparentes. A vinda dos parceiros comerciais para o encontro a fim de conversar com os ribeirinhos e indígenas em seu território, portanto, é fundamental para o fortalecimento dessa relação. “Esse contato é essencial. Vir pra cá e conhecer o jeito das pessoas viverem na floresta é um enorme espaço de aprendizagem”, avalia Jorge.
“Uma coisa é o nosso produto chegar na fábrica, outra coisa é a empresa ver de perto de que maneira exercemos essa atividade dentro da comunidade, dentro da floresta. Vão enxergar que o ribeirinho não está só tirando um produto, não está só cortando a seringa, tirando a copaíba ou a castanha. Está também monitorando o território, caçando, tirando o cipó para fazer o artesanato, tirando um remédio da mata. São diversas coisas que acontecem dentro de um pequeno território que quem está de longe não consegue observar”, explica Loro. Para ele, os contratos trazem maior segurança para que os extrativistas consigam produzir uma variedade de produtos. “Variedade que traz maior liberdade para trabalharmos durante o ano inteiro.
“Por que a Mercur paga um alto preço pela nossa borracha?”, perguntaram alguns participantes. Edileno de Oliveira, presidente da Amora foi quem explicou, dizendo que além de ser um produto de qualidade e que pode ir para a fábrica já beneficiado pelos extrativistas, contém um valor que é “invisível”.
“Eu acredito que eles pagam um valor a mais porque pra eles a floresta também interessa. Não é só pra nós que a floresta vale. Eles enxergam o nosso trabalho como um trabalho vivo, que merece ser respeitado e compensado. Aqui nós não estamos falando só da produção para gerar renda, mas também para proteger o nosso território, que é de onde extraímos essa produção”.
A valorização dos conhecimentos associados aos produtos da floresta é extremamente importante na construção dos contratos. Jorge explica que a Mercur, por exemplo, não está consumindo apenas a borracha enquanto matéria prima, mas uma borracha que “leva um pouco da vida das pessoas daqui pra lá. E por isso precisa ser valorizada. “O valor desse produto é a garantia da floresta em pé, é a vida”. A Mercur, em parceria com os extrativistas, vem desenvolvendo novas técnicas de manejo da borracha que agregam mais valor ao produto, como a manta.
O diálogo constante com as empresas e os contratos estabelecidos de forma conjunta trazem segurança para que as populações tradicionais da Terra do Meio possam continuar produzindo em suas comunidades, com a garantia de um preço justo e do escoamento de toda a produção. “A gente tem um contrato que tem um preço fixo, sabe que é um preço seguro. Quando não tinha contrato com as empresas, não tinha segurança nenhuma”, disse seu Raimundo Belmiro, da localidade Novo Paraíso. “O pessoal abandonava o território porque não tinha como vender a produção”, completou Gordo Xipaya, da aldeia Tukayá.
Seu Raimundo contou que antes o preço da castanha flutuava muito de acordo com a produção do ano e a quantidade de compradores: “Antes ficava na mão dos atravessadores. E o que acontecia? Colocavam o preço que queriam. Sem o contrato nós vamos sofrer mais uma vez, vender castanha como eu vendi, até de R$ 5,00 a caixa (aproximadamente 22kg)”. Hoje, a empresa Wickbold compra a castanha da Terra do Meio a preço justo e utiliza o ingrediente na massa dos pães. “Nós temos que manter o contrato vivo”, reiterou.
A Firmenich, empresa de perfumaria que compra a copaíba da região desde 2012 também esteve presente no encontro. O gerente de projetos André Tabanez lembrou que o diálogo com as comunidades é um processo constante de aprendizado. “A gente evolui como cliente e eles aqui evoluem como fornecedores”. Ele enfatizou que a empresa estabelece com os extrativistas uma relação comercial para adquirir um ingrediente com qualidade e preço justo. “Não estamos aqui fazendo caridade, estamos fazendo negócios com ética corporativa, direto com as comunidades, eliminando intermediários. Negócios que podem e devem ser bons para todos”. Apenas em 2016, a Firmenich comprou 1.100 kg de copaíba da Terra do Meio, número que pode dobrar neste ano, pois já foram produzidos 1.200 kg até o mês de maio e outras Resex e Terras Indígenas manifestaram interesse em comercializar o produto.
O preço fixo e a garantia de compra de toda a produção, associados a transparência nas negociações, é essencial no fortalecimento das cadeias produtivas da região. “Precisamos reconhecer que existe uma economia da floresta, uma economia que é invisível para boa parte da sociedade”, explicou Rodrigo Junqueira, coordenador do programa Xingu do ISA. Para ele, o entendimento dessa economia é uma estratégia central para a valorização e a proteção do território. “É da floresta que eu tiro os alimentos e o meu sustento. É a minha casa, é aqui o meu modo de vida. Ao trabalhar com os produtos da floresta a gente faz um serviço que é proteger do território. Se não tiver território, não tiver floresta, não vai ter produção”, completou Edileno.
Dona Joana é filha de dona Raimunda Gomes, moradora da localidade do Triunfo, no Alto Riozinho do Anfrísio. Ainda adolescente, Joana desceu o rio e constituiu família no Palhal, uma das ilhas do Rio Xingu, próximo ao núcleo urbano de Altamira, que foi alagada para criar o reservatório da hidrelétrica de Belo Monte.
Joana faz parte do Conselho Ribeirinho, instância formada pelos próprios ribeirinhos que buscam enfrentar o desafio de retornar para a beira do rio com dignidade. Trinta e oito anos depois, ela volta para o Riozinho do Anfrísio para compartilhar a história das mais de 200 famílias que lutam para recuperar seu território. Ela ouviu atenta as discussões sobre a organização das cadeias produtivas pois, com o ambiente radicalmente modificado, tem que descobrir novas formas de ganhar a vida: “Eu estou aprendendo como conseguir uma renda. Antes lá a gente vivia do peixe, e o peixe sumiu. A gente luta pra voltar pro rio, mas temos que ter como sobreviver”.
“Vou levar semente de mandioca, porque lá não existe mais. Semente de cará, de abóbora, de seringueira, vou plantar tudo”. Joana ganhou de presente mudas de diversas espécies que prometeu cultivar no lote em que foi reassentada e compartilhar com os ribeirinhos que lá vivem. “Estamos lutando para melhorar a vida, não só a minha, mas de todos na região. Vamos conseguir fazer com que as pessoas que eram do rio voltem pro rio e tenham como sobreviver ali”.
Veja o mapa da Rede de Cantinas.
Benedito Gomes da Silva, o seu Bené, vive na Estação Ecológica (Esec) da Terra do Meio. Ele contou que a região em que vive “tem muita gente chegando, tem problema de grileiro” e que seria importante fortalecer o trabalho com os produtos da floresta na área para ajudar na renda e no monitoramento do território. “Com a cantina melhorou bastante a nossa situação. Eu vou me organizar e ir para as estradas de seringa”. Ele já participou de oficinas para aprender a fazer a manta de borracha com seu Bernaldo, da Resex Rio Xingu, e garantiu que se tiver as condições necessárias em mãos vai ampliar e melhorar a produção de manta para vender na cantina. “Com coragem e fé vou continuar esse trabalho”.
“A gente ia pro mato furar copaíba e depois não tinha como vender. Quando vendia pro regatão [comerciantes que passam de barco pelas localidades] era no preço que ele queria e demorava muito pra receber. E como fazia para sobreviver?”, perguntou Pedro.
A fim de solucionar a questão dos preços volúveis e da demora no pagamento, em 2011 começaram a se articular as cantinas. Mais do que espaços de compra e venda de produtos, as cantinas trazem segurança e transparência para a consolidação dos arranjos produtivos. O cantineiro, escolhido pela comunidade, é responsável pela gestão de um capital de giro e pelo recebimento dos produtos da floresta: ele paga na hora – a preços tabelados e decididos coletivamente – pela produção dos extrativistas em troca de alimentos, produtos industrializados ou dinheiro.
Rubenildo Barros Vianna, o Miudinho, é cantineiro da localidade Bela Vista, na Resex Rio Xingu, e explica que a boa gestão do capital de giro é essencial para garantir a “saúde” da cantina. “O pagamento imediato anima pra ir pro mato tirar castanha porque a partir do momento que o produtor chega na cantina, ele faz a entrega e já recebe o dinheiro”. Miudinho é responsável pela cantina desde o ano passado e durante a Semana do Extrativismo falou várias vezes sobre a importância de manter o capital de giro em movimento: “Temos que fortalecer o capital de giro para conseguir comprar a produção do pessoal e girar o dinheiro dentro das comunidades”.
A IV Semana do Extrativismo contou com a participação do ISA, Imaflora, ICMBIO, Fundação Viver Produzir e Preservar (FVPP), Instituto Kabu, Associação Floresta Protegida (AFP), Cooperativa Agroindustrial da Transamazônica (Coopatrans), Campax e das empresas Mercur, Firmenich e Cacauway. A Wickbold não pode estar presente no encontro, mas também firmou o compromisso de parceria com as populações da Terra do Meio por meio de uma mensagem enviada especialmente para o evento e em reunião presencial na cidade de São Paulo alguns dias depois. A O encontro foi apoiado principalmente pela União Europeia com colaboração do Fundo Amazônia, Imaflora, ICMBio, Amora, Aipex e TNC.
As cantinas mudaram a forma de organização dos extrativistas, que passaram a ser os protagonistas na construção dos arranjos produtivos e na gestão do território como um todo. Hoje são 20 cantinas distribuídas pela Terra do Meio – 14 nas Resexs e seis em Terras Indígenas, e formam a Rede de Cantinas da Terra do Meio. Além de mercadorias, é por meio das cantinas que circulam informações sobre a gestão do território, incluindo proteção e monitoramento das áreas protegidas, iniciativas de educação e saúde. “Com a cantina tudo mudou. Quando falamos das cantinas estamos também falando de um território de valor. As cantinas possibilitam enxergar além do valor em dinheiro do produto. É a cultura, o modo de vida. Isso tá associado a vida de quem tá vivendo dentro desse território”, explica Loro.
Pedro Pereira, que já chegou a ir até Altamira para vender o óleo de copaíba no carrinho de mão, hoje é o responsável pela cantina da localidade Paulo Afonso, que atende cerca de 30 famílias. “O trabalho na cantina e os contratos motivaram a gente a não sair pra trabalhar fora. Mesmo com a diária alta pra trabalhar fora, não compensa porque a sua família passa mal, você não fica em casa, perde a roça, perde tudo… A gente não ganha só no valor da produção com um contrato desses, ganha em muitas coisas, estar em casa”.
Raimunda Araujo Rodrigues Nonata é cantineira na localidade do Rio Novo, no Iriri. Para ela, a transparência é um dos elementos mais importantes do sistema de cantinas. “Eu preencho sempre os recibos. Se o comprador aumenta o preço, nós pagamos a diferença para o produtor. O extrativista sabe para onde o produto vai, o valor que chega e o valor que eu pago pra ele. Na mão do regatão ninguém sabia pra onde ia nem o quanto ia vender”, explica. Raimunda também coordena a mini usina, uma pequena fábrica de processamento de produtos florestais não madeireiros que beneficia esses insumos agregando valor a eles. Hoje existe uma mini usina em funcionamento e três em fase de implantação,fortalecendo e promovendo inovações para os produtos da floresta.
A Rede de Cantinas se consolidou como um espaço público de formação e aprendizado constante. Da gestão do capital de giro à articulação com as outras cantinas e parceiros, é um elemento central para o fortalecimento dos atores da Terra do Meio. “Quem comandava a produção era o patrão. Hoje quem controla são as comunidades”, conta Gordo Xipaya, que também é cantineiro. Ele e sua aldeia, a Tukayá, vão sediar a Semana do Extrativismo no próximo ano.
Mesmo cansado após dias de debates, Loro pega o microfone e vira de costas para a plateia: “Estou olhando com um imenso orgulho para essa mesa, composta por indígenas e ribeirinhos, dá um orgulho da nossa identidade”. Para Loro, a Semana do Extrativismo também é um momento de integração e fortalecimento dos ribeirinhos e indígenas da Terra do Meio. “Estamos em uma sala com instituições e empresas, discutindo de igual pra igual. E nós, que éramos chamados de preguiçosos, estamos mostrando o contrário. Começamos a bater no peito e falar que temos valor. Que o nosso valor é tão grande que não serve só para nós, mas para o resto do planeta”. Veja o mapa abaixo.
A Terra do Meio, região de aproximadamente 8,5 milhões de hectares de áreas protegidas, sofre intensa pressão de desmatamento, grilagem de terras, retirada de madeira ilegal e construção de grandes obras – como a hidrelétrica de Belo Monte. Viver e produzir nesse contexto é um desafio e manter a floresta em pé é condição fundamental. “Os lugares onde existem mais florestas, são os lugares que tem população tradicional vivendo lá. A floresta hoje só permanece em pé por conta das lutas dos ribeirinhos que vivem nela”, explica Edileno.
Durante a Semana, representantes do Imaflora (Instituto de Manejo e Certificação Florestal) apresentaram os resultados de um ano de implantação do Selo Origens Brasil. A iniciativa, elaborada em parceria com o ISA, faz parte da estratégia de valorizar os produtos da floresta por meio de um dispositivo de rastreabilidade. Através de um código digital (QR Code) é possível ter acesso ao caminho dos produtos: de sua extração à prateleira dos supermercados, passando pelas histórias das populações e do território em que está inserido. [saiba mais]
“O valor desses produtos não está só no preço. São valores que muitas vezes a gente não enxerga: a preservação da floresta, por exemplo. A questão é como levar essa mensagem pro pessoal de longe, do Rio de Janeiro, de São Paulo… O Selo é uma forma de levar essas histórias”, conta Patricia Cota Gomes, coordenadora da iniciativa Origens Brasil.
Loro, que está no comitê gestor do Selo, reitera que ele trouxe mais transparência – tanto para as comunidades saberem para onde seus produtos estão indo, quanto para o consumidor final, que pode facilmente acessar a origem do que está adquirindo. “Hoje não sabemos como muitos produtos são extraídos. Não sabemos se essa copaíba foi tirada com uma motosserra que destrói a natureza. O Selo garanteque a copaíba que está sendo comprando foi tirada de forma sustentável, por gente que sabe fazer o manejo da árvore sem machucá-la. O Selo é uma forma de se valorizar o modo de vida”.
Kwazady Xipaya, da aldeia Tukamã, reitera que, mais do que os produtos, o Selo conta a história dos povos da floresta e auxilia no fortalecimento da identidade dos mesmos. “Nos expomos sem nenhum medo de sermos constrangidos, sem preconceito. Uma das formas de quebrar isso é por meio da nossa produção. Hoje o indígena não tem vergonha de se declarar indígena, o ribeirinho não tem vergonha de se declarar ribeirinho. A valorização da produção fez a nossa autoestima se levantar”.
A convite da Mercur, logo após a Semana do Extrativismo, três extrativistas da Terra do Meio e dois técnicos do ISA acompanharam uma equipe da empresa em uma viagem para as comunidades extrativistas no Rio Muru, no município de Tarauacá (AC). Os seringueiros são ligados a Cooperativa Agroextrativista de Tarauacá (Caet) e são fornecedores de manta de borracha para a Mercur. O intercâmbio teve como objetivo melhorar a qualidade da manta de borracha produzida pelos extrativistas da Terra do Meio e promover um contato mais próximo entre seringueiros de diferentes regiões da Amazônia, buscando inovações de produtos e em modelos de negócios na relação entre comunidades e empresas.