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Da terra e pela terra

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A Feira de Troca de Sementes e Mudas dos Quilombos do Vale do Ribeira, que completou 10 edições, demonstra o poder de mobilização dos quilombos e a força da produção do Sistema Agrícola Quilombola
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João Santos da Rosa, do quilombo Sapatu, ofereceu o convite: conhecer as mudas e sementes aninhadas ali no cantinho, que esperavam ansiosas o começo da feira de trocas. Braço esticado, palma da mão para baixo, ele caminhava dando nome para tudo o que via com uma voz mansa e firme, orgulhosa de cada palavra.

“Esse é feijão cara suja, aquele é pardinho”, explicava o quilombola, 75 anos. “Essa é mandioca, aquele é cará, aqui tem cana mole. Isso tudo aqui é batata doce, abóbora, farinha de mandioca, arroz. E aqui tem cheiro verde, ali tem hortelã. Tem muita coisa mesmo.”



O caminho percorrido por João Santos da Rosa, a passos lentos entre as caixas, os sacos e os feixes é mais que uma simples trilha de nomes de plantas, sementes e raízes. É o resultado do compartilhamento de saberes tradicionais, essência dos 10 anos da Feira de Troca de Mudas e Sementes das Comunidades Quilombolas do Vale do Ribeira, realizada neste sábado (19/08) em Eldorado (SP).

“A feira, com diz o próprio nome, é uma feira de trocas. Aqui as comunidades trocam mudas e sementes, e trocam também causos, experiências, memórias”, disse Raquel Pasinato, coordenadora do programa Vale do Ribeira do Instituto Socioambiental (ISA).

Em uma década de feira, o balanço é muito positivo. Mais de 200 variedades de sementes foram compartilhadas, muitas delas consideradas perdidas pelas comunidades. Um paiol de sementes foi criado em 2015 para armazená-las. E mais e mais variedades foram sendo trazidas, compartilhadas e semeadas, ao mesmo tempo em que as comunidades tinham seus territórios ameaçados por uma ação que aguarda julgamento no Supremo Tribunal Federal (ver box).



O evento deste ano contou com a participação de 21 comunidades quilombolas de todo o Vale do Ribeira. Um recorde para celebrar a recuperação das tradições e demonstrar a força da produção do Sistema Agrícola Tradicional Quilombola, com roças que garantem os alimentos, geram renda para as comunidades e fortalecem a agrobiodiversidade regional.



O Sistema Agrícola Tradicional Quilombola, que aproveita os processos ecológicos e os nutrientes da Mata Atlântica, e a troca de sementes e mudas, que acontece todos os anos, são práticas estratégicas de adaptação das comunidades contra o avanço das mudanças climáticas, que já fazem parte do dia a dia dos quilombolas.

Excesso de chuvas, temperaturas muito baixas ou picos de calor intenso têm prejudicado os preparativos para o plantio das roças e ameaçado a segurança alimentar nos quilombos.

Produção, biodiversidade, criatividade e cultura

Além da troca de mudas e sementes, a feira é um ponto de encontro para conhecer as danças e os sabores do Vale do Ribeira.

Enquanto as apresentações de dança Nhá Maruca, o grupo de fandango batido de São Gonçalo, violeiros e grupos de capoeira movimentavam a Praça Nossa Senhora da Guia, o público circulava pelas tendas perguntando sobre nome e origem de frutas, mudas e sementes, com pausas para experimentar a produção local.

Chico Mandira, do quilombo Mandira, em Cananeia (SP), levou ostras para temperar com limão cravo, e garrafas de cataia, bebida alcoólica conhecida como o uísque caiçara. Simone de França da Rosa, do quilombo São Pedro, apresentou o mousse de maná-cubiu, fruto de origem amazônica que hoje é produzido no Vale do Ribeira. Seu Hermes, do quilombo Morro Seco, levou paçoca de carne seca, que estala no sabor do gengibre adicionado à receita.



A feira foi também ótima chance para conhecer diferentes tipos de bananas – banana-vinagre, banana-sapo, banana-maranhão – que andam sumidas das feiras e prateleiras de supermercados das grandes cidades. Um deleite de tantas variedades, que já se traduz em números.

A Cooperquivale (Cooperativa dos Agricultores Quilombolas do Vale do Ribeira) comercializa mais de 80 toneladas mensais de produtos de suas roças para os programas de governo como o Pnae (Programa Nacional de Alimentação Escolar) e o PAA (Programa Nacional de Aquisição de Alimentos).

Um número e tanto, que deve ser ainda maior se contabilizada a produção total dos quilombos da região. Um trabalho coletivo que fortalece os vínculos e reforça a identidade cultural dos quilombolas. A terra, para eles, é vida.

Números da feira

21 comunidades quilombolas do Vale do Ribeira
2 grupos agroecológicos
2 grupos Guarani do Vale (Aldeia Pakuti-ty e Aldeia Peguao-ty)
1 grupo da agricultura familiar de Pariquera-Açu
256 participantes no seminário
400 participantes da feira

Nos quilombos, apreensão pelo futuro

Os quilombos de todo o Brasil estão ameaçados em seus direitos por uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3.239 do Partido Democratas (DEM), antigo PFL, e que deveria ter sido julgada na semana que passou, mas foi adiada.

A ação quer que o Supremo Tribunal Federal (STF) declare inconstitucional o Decreto 4.887, de 2003, que regulamentou o direito à propriedade das comunidades quilombolas. Isto é, quer retirar direitos que foram garantidos pela Constituição.

Em matéria publicada nesta segunda-feira (21/08) pelo jornal Folha de S.Paulo, com dados da Conaq, ficou evidente o clima de apreensão nos quilombos. O número de mortes de lideranças quilombolas saltou de um, no ano passado, para 13 somente neste ano.

“Este é um momento de retrocesso, de perda de direitos. Mas só de uma parcela da sociedade brasileira, aquela que sempre perde, considerada minoria embora seja maioria”, resumiu o coordenador nacional da Conaq (Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas), Denildo Biko Rodrigues, em debate realizado antes da feira.

Ronaldo dos Santos, coordenador executivo da Conaq, lembrou durante o debate que a palavra quilombo, que tinha sido apagada dos dicionários, foi recuperada pela Constituição de 1988.



“No Brasil pré-republicano não éramos gente, éramos peças, que eram vendidas. Fomos escravizados, violentados, agredidos e mortos. Não éramos cidadãos. Mas lutamos e nos libertamos, nos constituímos como sociedade brasileira”, afirmou o líder quilombola.

A Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) e organizações parceiras, como o ISA, lançaram a campanha O Brasil é Quilombola! Nenhum Quilombo a menos! em defesa do decreto.

A petição divulgada pela mobilização já tem quase 85 mil assinaturas.

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