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Osvaldo dos Santos, do quilombo Porto Velho, é um velho conhecido de quem frequenta as Feiras de Trocas de Sementes e Mudas do Vale do Ribeira, evento que acontece todos os anos na Praça Nossa Senhora da Guia, centro de Eldorado (SP).
Produtor de mel, rapadura, arroz, taiada (um doce à base de rapadura, farinha de mandioca e gengibre) e tantos outros alimentos da roça, ele fala sobre os produtos como ninguém. Aprendeu com os pais tudo sobre o feitio de cada um deles.
Este ano, na 12ª edição da feira, que aconteceu nos dias 16 e 17 de agosto, Osvaldo teve a companhia de sua filha, Gabriele Miranda, que estuda pedagogia na Universidade Federal do Paraná, em Curitiba (PR). A cidade fica a apenas 214 quilômetros de Eldorado, mas a distância que separa modos de vida é muito maior.
"Quando saí da comunidade percebi o quanto é importante valorizar o alimento quilombola", disse durante a mesa Sementes Tradicionais e Soberania Alimentar, que abriu a série de eventos da feira.
Edivina Maria Tiê Braz da Silva, a dona Diva do quilombo Pedro Cubas de Cima, não escondeu a satisfação de ver a jovem no centro da cena. Mas observou, com melancolia: “Como é a sua experiência na escola? Porque no meu tempo ninguém queria se sentar ao meu lado.”
"É difícil a inserção em um espaço branco e racista, em que as pessoas não sabem o que é um quilombo”, respondeu Gabriele. “Mas quero voltar para trabalhar com educação na comunidade e valorizar o jovem, formá-lo para trabalhar pelo coletivo", afirmou.
No dia seguinte, dia de feira, Gabriele esteve lado a lado com o pai, Osvaldo, a mãe Marlene e os irmãos mais novos, João Vitor e Maria Clara, na venda de produtos e troca de sementes e mudas.
Motivo de alegria para os dois, e também para a geração quilombola mais antiga, que sempre clamou pela maior presença de jovens e desta vez viu florescer um movimento com o frescor de novas ideias.
Os 70 jovens presentes no seminário eram 30% do público total. E as apresentações culturais durante a feira deram o tom da força da nova geração. O grupo Maculelê - Raízes, tradição e cultura, do Quilombo André Lopes, o Puxirão Bernardo Furquim, do Quilombo São Pedro e o fandango do Quilombo Morro Seco levaram crianças e jovens para o palco principal do dia.
Para encerrar a programação, o músico Paulinho Dafilin acompanhou canções e poemas dos quilombolas, com cantos de direito à terra e ao plantio das roças tradicionais.
A 12ª Feira de Troca de Sementes e Mudas das Comunidades Quilombolas do Vale do Ribeira foi a primeira edição do evento após o reconhecimento pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) do Sistema Agrícola Tradicional Quilombola como patrimônio imaterial do Brasil.
A feira é considerada uma ação de salvaguarda do sistema agrícola, assim como os mutirões (ou puxirões) para colheita de produtos da roça como o realizado em maio no Quilombo São Pedro.
Assista ao vídeo e veja como foi o puxirão:
“Hoje, com a roça como patrimônio, a gente sabe que a luta de nossos antepassados não foi em vão. É preciso fortalecer o trabalho em conjunto, planejar o uso do território e colocar os jovens na faculdade para que eles voltem e ajudem a fortalecer”, disse Neire Alves da Silva, do Quilombo Ivaporunduva.
“A mulher negra carrega muita coisa, mas tem que ser forte para continuar resistindo. Só o fato de manter a cultura vale todo o esforço”, continuou.
Em evento paralelo à feira, a oficina Sabores da Roça, com a coordenação de mulheres do Quilombo São Pedro e participação do movimento Slow Food Brasil e do Instituto Brasil a Gosto, foi uma demonstração de que o alimento quilombola, produto orgânico de roças tradicionais, carrega a ancestralidade das sementes e valoriza a história dos quilombos do Vale do Ribeira – bem como a resistência das mulheres.
As preparações contaram com taioba, banana pacova, mandioca, mamão verde, cará, abóbora e derivados de cana de açúcar, como melado e rapadura. Tudo veio da roça e fez reviver a força da cozinha tradicional.
“É preciso honrar a terra e honrar os saberes”, disse Claudia Mattos, cozinheira do movimento Slow Food Brasil. “Vocês estão fazendo valer seus saberes três vezes ao dia”, afirmou.
A luta pelo território e pelo alimento limpo, porém, segue entre os quilombolas. A questão das licenças para o plantio tradicional, que motivou a campanha #TáNaHoradaRoça (saiba mais) continua presente no dia a dia das comunidades.
“O modelo está espremendo a gente para voltar a ser escravo”, apontou Benedito Alves da Silva, o Ditão, do Quilombo Ivaporunduva. “Não é escravo de chicote, mas é escravo mesmo assim.”
O conhecimento tradicional quilombola é a base da coleta das sementes para restauração florestal e para a seleção de variedades agrícolas para plantio na roça. Eles reconhecem as épocas de floração e frutificação das espécies, bem como as características do terreno e as movimentações da fauna local.
Esses conhecimentos foram compartilhados em duas oficinas, uma em parceria entre a Rede de Sementes do Vale do Ribeira e a Iniciativa Verde; outra, para identificação de sementes transgênicas, em parceria entre o Associação Biodinâmica e o Instituto Socioambiental (ISA).
Uma das bases para todo o Sistema Agrícola Tradicional Quilombola é a semente ancestral, a semente crioula dos quilombolas do Vale do Ribeira.
Naiara Bittencourt, advogada da ONG Terra de Direitos, fez uma pergunta simples, mas potente à plateia do seminário. “O que é uma semente?”, anunciou. As respostas começaram a pipocar: esperança, vida, saúde, força, cultura, comunidade, resistência.
“Ninguém aqui diz que semente é mercadoria”, sublinhou Bittencourt. “Porque quando as empresas assumem o direito de propriedade intelectual sobre a semente, ela deixa de ser de livre circulação, de livre troca. A feira de trocas é uma estratégia central de resistência.”
A 12ª Feira de Trocas de Sementes e Mudas dos Quilombolas do Vale do Ribeira contou com apoio do SESC e das prefeituras de Eldorado, Iporanga e Itaóca.