Essa é a versão antiga do site do ISA que ficou no ar até março de 2022. As informações institucionais aqui contidas podem estar desatualizadas. Acesse https://www.socioambiental.org para a versão atual.
A nomeação nesta quarta-feira (5/2) de Ricardo Lopes Dias, um pastor que já atuou junto à seita norte-americana Ethnos360, anteriormente conhecida como Missão Novas Tribos, para exercer a Coordenação de Índios Isolados e de Recente Contato da Funai (CGIIRC), coloca os povos indígenas em isolamento voluntário na iminência de serem vítimas de genocídio. No Brasil, existem 115 registros destes grupos, 28 deles confirmados. A indicação de um missionário para chefiar a CGIIRC aponta para o retorno de uma política de contato forçado que, quando vigorou no país como política de Estado, nos anos 1970, provocou a morte de milhares de índios por doenças e violência perpetradas pelos próprios agentes de órgãos públicos. Tudo isso pode voltar a acontecer com o retorno do proselitismo religioso forçado.
Os povos indígenas em isolamento voluntário são sobreviventes de massacres que aconteceram ao longo do século XX, os maiores deles durante a década de 1970, quando o Estado brasileiro, comandado pela ditadura militar, promovia as chamadas "frentes de atração", para contatar e "pacificar" as comunidades indígenas cujas terras o governo desejava ocupar. Além da violência propriamente dita — são inúmeros os relatos de chacinas e massacres, incluindo bombardeio aéreo de aldeias —, essas comunidades foram vítimas também de epidemias levadas por não indígenas em expedições oficiais de contato forçado. Algumas populações indígenas perderam 90% de seus integrantes por doenças para as quais não dispunham de anticorpos.
É o caso dos Nambikwara, cujo território distribui-se entre Mato Grosso e Rondônia. Antes do contato, a etnia contava com cerca de 10 mil indivíduos. Nove mil morreram em decorrência de epidemias de sarampo, gripe, coqueluche e gonorreia. Situação parecida foi vivida pelos Panará, no norte do Mato Grosso. Entre 1973 e 1976, 80% da população morreu em decorrência da gripe e da malária. De 400 indivíduos, restaram apenas 79. Os exemplos são inúmeros. Em 1982, missionários da Missão Novas Tribos do Brasil (MNTB), a mesma do novo coordenador da Funai, promoveram o contato forçado com os últimos remanescentes da etnia Zo'é, no norte do Pará. O contato resultou em uma epidemia, com dezenas de mortes. Os missionários acabaram expulsos do território.
Atualização em 24/02/20: Segundo a Missão Novas Tribos do Brasil, o Processo
nº 2000.39.02.0001859-0 / IPL nº 085/98 – DPF.B/SNM/PA constatou que “Pelo exposto, esta autoridade não encontrou provas suficientes para que pudesse concluir que a presença da MNTB na região teria ocasionado a morte da população Zo’é, ou seja, não existe comprovação da relação de causalidade entre a ação da MNTB e o resultado da morte dos índios Zo’é”.
O que está em jogo com a nomeação de um missionário para a coordenação de isolados da Funai
Com Amazônia sob ataque, povos isolados são os mais vulneráveis
Cerco se fecha e índios isolados da Amazônia brasileira correm risco de extermínio
Com proteção enfraquecida, registros da presença de índios isolados aumentam na América do Sul
Estancar o genocídio de comunidades inteiras foi o principal motivo para a instituição da política de não contato na Funai, a partir de 1987. Essa política, pensada por sertanistas, antropólogos e outros formuladores de políticas públicas, foi a base para a criação da CGIIRC. Ela consiste em garantir a proteção dos territórios onde vivem esses povos, impedindo a entrada de invasores e a construção de empreendimentos que os afetem. Essa é até hoje competência do órgão, estabelecida pela portaria 281/2000 da Funai.
Com a indicação do missionário para coordenar esse departamento da Funai, porém, volta a pairar a ameaça do contato forçado e, com ela, a iminência de novas tragédias.
É dever do Estado brasileiro, previsto na Constituição, garantir a sobrevivência física e cultural desses povos nas terras em que ocupam. Isso significa um território protegido onde possam ter sua própria organização social, costumes, línguas, crenças e tradições.
A aculturação forçada dos povos indígenas é uma afronta à Constituição e prática regular do fundamentalismo evangélico, inclusive da seita do coordenador nomeado, que tem na catequese a sua missão principal. Em seu artigo 129, inciso V, a Constituição destaca, entre as funções institucionais do Ministério Público Federal (MPF), a defesa judicial dos direitos e interesses das populações indígenas. Já passou da hora do Procurador Geral da República, Augusto Aras, tomar providência. Até agora, não se ouviu palavra sua sobre essa situação deplorável. A sua omissão compromete a reputação da instituição que deve defender a sociedade — e as minorias, em particular — de quaisquer arbitrariedades governamentais.
O não contato deve ser visto como uma manifestação do desejo de autodeterminação desses povos, direito garantido também pela Declaração Universal dos Direitos Humanos. A opção pelo isolamento ainda é protegida pela Convenção n° 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário, que garante aos povos indígenas direitos mínimos de salvaguardar suas culturas e identidades no contexto das sociedades que integram.
A política anti-indígena de Jair Bolsonaro extrapolou limites constitucionais e enoja o mundo todo. Destruir a política de não contato é acabar com uma estratégia que ajuda a salvar vidas há mais de 30 anos. O Brasil já viu o resultado do contato forçado, um contato de morte. Esperamos que essa tragédia não se repita de novo.