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A reportagem do ISA confirmou, ontem (3), o primeiro caso de um indígena que pode ter morrido por Covid-19 no país. Deu positivo o teste de uma senhora de 87 anos, da etnia Borari, falecida no dia 19/3, em Alter do Chão, município de Santarém (PA). A divulgação do caso causou polêmica, entre outros motivos porque nem a Secretaria de Saúde Pública do Pará (Sespa) nem a prefeitura informaram que se tratava de uma indígena (saiba mais).
Na quarta (1) à noite, o secretário de Saúde Indígena, Robson Santos da Silva, informou que ainda estava tomando pé da situação. Ele ressalvou, no entanto, que a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) está contabilizando os casos suspeitos, confirmados e de mortes pelo novo coronavírus apenas de indígenas que vivem na zona rural e que os que vivem nas cidades serão atendidos pelos serviços convencionais do Sistema Único de Saúde (SUS).
A questão é controversa. Organizações indígenas e o Ministério Público Federal (MPF) defendem que todos os indígenas devem ser atendidos pela Sesai, independente do local de moradia. A posição consta de recomendação divulgada, ontem, pelo MPF. Esses atores apontam que a Constituição não prevê a diferenciação entre índios “aldeados” e “não aldeados”, muitos menos em relação à assistência à saúde. Segundo o IBGE, dos 896,9 mil indígenas do país, 324,8 mil ou 36% viviam em zona urbana em 2010, quando foi realizado o último Censo no Brasil.
Em entrevista ao ISA concedida hoje, Silva confirmou o que disse anteriormente. Ele garante, porém, que os índios de áreas urbanas não ficarão sem atendimento. “Em nenhum momento a Sesai está abandonando os indígenas. Só que a Sesai tem uma área geográfica para atuar,” diz. Também assegurou que não há restrição da parte do órgão à assistência em territórios ainda em processo de regularização e de indígenas moradores da zona rural, mas fora de terras reconhecidas.
Confira a entrevista abaixo.
ISA - Qual o tratamento da Sesai em relação aos indígenas que vivem nas cidades em meio à epidemia de Covid-19?
Robson Santos da Silva - Nos pautamos no estrito cumprimento da legislação e também estamos atentos a todas as recomendações do MPF, que são muito bem-vindas. As populações dependem de uma boa governança. Então, esses são nossos dois parâmetros de trabalho. Toda a estrutura da Sesai está voltada para as Terras Indígenas (TIs). A Sesai faz a atenção primária e ela foi criada para atender as TIs. Os nossos polos, as nossas equipes multidisciplinares estão vocacionados para essas áreas. Não temos estruturas e polos para o atendimento no âmbito de capitais e cidades. O SUS é tripartite. A partir do momento que um indígena não está em TI, ele continua, sim, a ser assistido, pelos demais órgãos do Ministério da Saúde, aqueles, por exemplo, que fazem atenção primária, e estados e municípios.
ISA - Os casos suspeitos, confirmados e as mortes de indígenas que vivem nas cidades por Covid-19 serão computados pela Sesai?
RSS - A contabilização indígena pela Sesai será em TIs. A contabilização de indígenas que não estão em TIs será feita pela [assistência] tripartite do SUS. Em nenhum momento a Sesai está abandonando os indígenas. Só que a Sesai tem uma área geográfica para atuar. Nós estamos atentos às recomendações do Ministério Público. E os Distritos [Sanitários Especiais Indígenas-DSEIs] estão atentos, prestando, na medida do possível, o atendimento, fazendo a articulação com estados e municípios, para que essas pessoas em centros urbanos - seja ele pequeno, médio ou grande - possam ter um atendimento diferenciado. Mas isso cabe aos estados e municípios.
Quando o indígena é aldeado e ele vem para a cidade, para o núcleo urbano, fazer o tratamento, a Sesai se responsabiliza por essa pessoa. Nos casos em que a pessoa mora na cidade, estuda, trabalha, aí [o responsável] é o SUS normal. No caso de um indígena que vem para a cidade para um tratamento, com uma emergência, seja o coronavírus ou outro tipo de coisa, a Sesai continua acompanhando.
ISA - Haverá algum protocolo específico da Sesai com o SUS para notificar e contabilizar os casos e mortes por Covid-19 dos índios que vivem nas cidades?
RSS - Isso já está sendo feito. Tanto que tivemos o caso da senhora [em Alter do Chão, no Pará] que faleceu e ela está sendo contabilizada como indígena na conta, nos parâmetros do SUS.
ISA - Mas tanto a Secretaria de Saúde estadual quanto o município não divulgaram que ela era indígena.
RSS - Todos somos iguais perante a Constituição. Não vejo porque seja preciso divulgar que alguém é indígena.
ISA - Justamente para haver a contabilização dos casos suspeitos, confirmados ou de mortes de indígenas.
RSS - Mas aí você está dividindo a sociedade. Imagina: a pessoa que faleceu... É caucasiano, é branco... Não pode. Seria uma discriminação. Não vejo porque fazer isso, sinceramente.
ISA - O MPF divulgou uma recomendação para que os índios da cidade sejam considerados e atendidos pela Sesai. Pretende responder a recomendação? Qual sua posição em relação a ela?
RSS - Sempre que o MPF faz uma recomendação levamos muito a sério. As recomendações do MPF são fundamentais, importantíssimas. Em muitas correções de rumo, as recomendações do MPF nos auxiliam. Agora, quanto a isso, tenho limitações de lei, de decreto. Estamos acionando os DSEIs para que, dentro de suas possibilidades - considerando que estamos vocacionados para as TIs e que nossas estruturas de pessoal, material e físicas estão vocacionados e dentro de TIs - os apoiadores de saúde possam, sim, prestar um apoio, atender essas pessoas e auxiliá-las no que for possível. Mas nossa prioridade é o indígena “aldeado”, acompanhando ele dentro da aldeia e se ele tiver de sair e retornar.
Vou dar um exemplo: estamos com um problema de um senhor, que a mãe mora na cidade e está internada, e nós estamos apoiando. A equipe da Sesai está lá. A senhora mora há um tempo na cidade, mas ele mora na aldeia. Ontem, ele já fez uma visita. A assistente social já acompanhou. A enfermeira está acompanhando. Estamos fazendo. Mas não tenho como deslocar a estrutura, que está vocacionada para dentro do território, e puxar para a cidade. Não tenho apoio, fundamentação para isso.
Agora, as recomendações do Ministério Público já estamos olhando e verificando, para fazer da melhor forma possível para atender.
ISA - Qual é o tratamento que a Sesai está dando para indígenas que estão em TIs cujo processo de reconhecimento não foi concluído ou a indígenas que estão fora de TIs, mas ainda sim na zona rural?
RSS - Estamos num momento que requer ação humanitária. Jamais vamos negar atendimento, se formos solicitados. Ninguém deixará de ser atendido por burocracia. Seria um absurdo fazermos isso. Já estamos fazendo [atendimento]. Por exemplo, no Rio Grande do Sul, há populações que estão na beira de estrada, sem água. Nós estamos apoiando. Então, nossa prioridade é a TI. Mas o grupo que pede ajuda estamos apoiando. Não negaremos nunca. Nem que a gente acione o município, faça uma barreira sanitária, peça um apoio. Estamos em articulação com estados e municípios. Seria desumano [não atender]. Não fazemos isso.
ISA - Há um plano do governo para distribuir cestas básicas nas TIs. A Sesai vai participar dessa ação? Como garantir que quem vai fazer essa distribuição não seja um agente de contaminação?
RSS - A Sesai tem uma penetração muito grande. Ela é que está mais dentro das TIs. Nós vamos participar de qualquer ação que possa levar um benefício. Lembrando que a Sesai faz vigilância alimentar. Segurança alimentar está a cargo do Ministério da Cidadania. Há um grupo de trabalho coordenado pelo Ministério da Cidadania e Casa Civil. Nesse grupo, está integrado o Ministério da Agricultura, Sesai, Funai [Fundação Nacional do Índio] e outros órgãos. Tivemos reuniões todos esses dias. Hoje, temos mais uma, às 5h.
Essa ação inclusive já está sendo operacionalizada. As ações estão bem adiantadas. Já estamos na fase de montagem das cestas para distribuição. A Sesai vai participar, sim, dando apoio, de olho na higienização desses alimentos, quais alimentos serão entregues, porque não é qualquer alimento que pode entrar em qualquer lugar. Existem dietas alimentares específicas desses povos. Fazemos parte do grupo de trabalho e estamos apoiando na parte de vigilância e higienização, mas vamos apoiar, na medida do que for demandado, a distribuição.
ISA - Há um protocolo específico já definido para impedir que essa distribuição seja um vetor de contaminação?
RSS - Esse protocolo já foi emitido.
ISA - Em muitos territórios, agora ainda mais com a crise sanitária e econômica, faltam produtos de higiene pessoal. Haverá distribuição de produtos de higiene pessoal também?
RSS - Entendo que o material de higiene pessoal é saúde. Mas não vamos distribuir neste momento, não. Não está prevista esta distribuição. Se houver uma necessidade específica… Para falar a verdade, essa é uma pauta que não refletimos muito sobre isso. Inclusive vou até colocar isso em pauta hoje. Vou sugerir que isso seja incluído nas cestas. Não posso garantir que será possível.
ISA - Como será a distribuição dos equipamentos de segurança para os profissionais de saúde nos Dseis?
RSS - A dificuldade de [obter] equipamentos e insumos é uma realidade mundial. Agora, máscaras e luvas já estamos distribuindo. Já saíram dos correios e devem estar chegando, juntamente com os testes. Os testes saíram num lote de 6,4 mil, nessa primeira leva. Depois, virão mais levas. O objetivo é principalmente permitir que os profissionais de saúde façam os testes antes de entrar em área. Já fazem, mas vamos regularizar o mais rápido possível.
Em relação aos equipamentos, tanto o ministério quanto a Sesai e os municípios fizeram suas compras. O que estamos esperando é chegar. Estamos distribuindo na medida em que chega. Não falta dinheiro nem ação. O que falta é produto no mercado.