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Câmara aprova política emergencial para indígenas e comunidades tradicionais na pandemia

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Resultado de votação é vitória importante de movimentos sociais, mas mudança de última hora abre brecha para a manutenção de missionários em terras de índios isolados. Lideranças indígenas protestam
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Reportagem e edição: Oswaldo Braga de Souza. Texto atualizado em 22/5/2020, às 12:52

A Câmara dos Deputados aprovou, na noite desta quinta (21), o projeto de lei (PL) 1.142/2020, que prevê ações emergenciais para povos indígenas, quilombolas e outras populações tradicionais na pandemia de Covid-19. Todos os partidos votaram a favor, com exceção do Novo. O PL segue agora ao plenário do Senado e, se não sofrer alterações, vai à sanção presidencial. Se for alterado, tem de retornar à Câmara.

O projeto prevê a criação de um “Plano Emergencial para Enfrentamento à Covid-19” para territórios indígenas e tradicionais, com garantia de acesso à água potável, distribuição de cestas básicas, materiais de higiene e limpeza, além de ações de prevenção e assistência específicas. Entre elas, lista a oferta de leitos hospitalares, compra de respiradores, contratação de profissionais de saúde, transporte de doentes e a construção de hospitais de campanha em regiões criticas. A proposta também determina que essas comunidades sejam consideradas como grupos de "alto risco" para iniciativas contra a doença.

O PL indica que o governo deve facilitar o acesso ao auxílio emergencial instituído na pandemia, a benefícios sociais e previdenciários para possibilitar o isolamento dessas comunidades em seus territórios. Prevê ainda assegurar o escoamento de sua produção agrícola e extrativista por meio de compras diretas governamentais. As Declarações de Aptidão ao Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), necessárias à participação em políticas desse tipo, poderão ser substituídas por Certidões de Atividade Rural ou outros documentos simplificados durante a crise sanitária.

A aprovação do projeto é considerada uma conquista importante do movimento social, ainda mais porque o PL reúne medidas para um conjunto abrangente de populações. De última hora, no entanto, parlamentares do governo, Centrão e partidos de direita (PL, PP, PSD, MDB, DEM, Solidariedade, PTB, Pros e Avante), principalmente da bancada evangélica, apresentaram um substitutivo, assinado pelo deputado Wellington Roberto (PL-PB), alterando vários pontos do relatório da deputada Joênia Wapichana (Rede-RR). O grupo ameaçou colocar o texto alternativo em votação e, com pelo menos 220 votos, aprová-lo. Joênia foi pressionada a fazer concessões.

A proposta governista excluía quilombolas e outras populações tradicionais do escopo da nova lei, os capítulos sobre segurança alimentar e índios isolados, a obrigatoriedade do fornecimento de água potável e a previsão de atendimento diferenciado para indígenas na zona urbana, além de retirar a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) da coordenação do plano emergencial dos povos indígenas. Na avaliação de lideranças indígenas, esse último ponto abriria caminho para que as ações fossem comandadas pela polêmica ministra Damares Alves (Família, Mulher e Direitos Humanos).

Afinal, por meio de uma emenda do DEM, foi alterado o parágrafo único do Artigo 13, que tipificava como crime, prevendo pena de dois a cinco anos de prisão e multa, o ingresso de pessoas estranhas, sem autorização, em territórios de indígenas isolados, sem contato oficial com o Estado. A nova redação abre brecha para a manutenção de missões religiosas nessas áreas, desde que “avaliadas pela equipe de saúde responsável”. Com a mudança, governo e Centrão recuaram da tentativa de votar seu substitutivo.

O tema é altamente sensível. Além do histórico de genocídio dos povos indígenas provocado por epidemias, os isolados em especial são ainda mais vulneráveis por estarem, em geral, em áreas remotas e de difícil acesso, o que torna o atendimento médico emergencial ainda mais difícil. O contágio mesmo por doenças comuns entre não índios, como gripe e sarampo, pode dizimar grupos inteiros em curto espaço de tempo.

Há mais de 30 anos, a política oficial da Fundação Nacional do Índio (Funai) é de respeitar a escolha dessas populações de fazer ou não o contato e no momento que preferirem. A exceção fica por conta de situações de risco à integridade dos índios. Daí as ações de proteção de seus territórios, inclusive de expulsão de invasores, como madeireiros ilegais, garimpeiros e missionários.

Direito de não fazer contato

“Esse ponto da redação do projeto ficou totalmente arbitrário, imoral e contrário ao direito de não fazer o contato pelo qual temos lutado. Fica muito clara a legalização das ações ilegais de muitos missionários, causando inclusive mortes”, criticou Angela Kaxuyana, da direção da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab). “Esses grupos [isolados] estão a todo momento pressionados pela ação dos missionários para aderir a uma religião que não é a deles. É inaceitável que isso continue acontecendo no século XXI, depois de todo o histórico de doenças e violações cometidas contra os povos indígenas”, completou. A Coiab divulgou uma nota de repúdio contra a alteração.

"[A mudança] não abre a possibilidade de entrada de missionários em Terras de
Indígenas Isolados. E nem legaliza essa prática. O que o item faz é prever a possibilidade
que aqueles que lá já estão permaneçam durante o período da quarentena, se autorizado
pela SESAI, que irá avaliar a segurança epidemiológica, para não contribuir com a
circulação do vírus", argumentou Joênia, em nota enviada à reportagem.

O governo de Jair Bolsonaro insiste em abrir as terras dos isolados aos fundamentalistas evangélicos. Em fevereiro, o presidente da Funai, Marcelo Augusto Xavier, nomeou como coordenador de Índios Isolados e de Recente Contato o ex-missionário Ricardo Lopes Dias. O Ministério Público Federal (MPF) pediu por duas vezes a anulação da nomeação. Afinal, também nesta quinta, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1) acatou o pedido em caráter liminar.

A questão agora é saber se o movimento indígena e parlamentares aliados conseguirão reverter no Senado a alteração feita no PL. O líder do governo na Câmara, Vitor Hugo (PSL-GO), fez questão de afirmar que não há compromisso com o texto aprovado nesta quinta. “Falamos com a Sesai, falamos com o Ministério da Saúde, e queria parabenizar [a relatora]. Sem prejuízo de novas conversas no Senado para que a gente consiga avançar ainda mais no texto”, disse.

“A proposta apresentada pelo Centrão e pelo governo demonstra como a aliança entre eles vai ser ainda mais perversa para os direitos dos povos indígenas e comunidades tradicionais no Congresso. Um projeto que tinha tudo para ser uma agenda positiva na ajuda humanitária a essas comunidades se transforma em vetor de retrocessos e discriminação”, critica a assessora do ISA Adriana Ramos. “No que diz respeito a esse governo, não se pode esperar nenhum tipo de aprimoramento em qualquer legislação relacionada ao direitos dessas populações”, conclui.

Subnotificação e índios urbanos

Como acontece com o restante dos brasileiros, a estatística oficial de casos e mortes pelo novo coronavírus é altamente subnotificada entre os índios. O número divulgado pela Sesai, na noite desta quinta, era de apenas 31 óbitos e 606 casos em todo país. Levantamento independente realizado pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) apontava, no mesmo dia, 110 mortes e 758 casos. A Sesai está considerando registros apenas na zona rural. A secretaria afirma que os indígenas que vivem nas cidades devem ser atendidos pelos serviços convencionais do Sistema Único de Saúde (SUS). A posição é criticada pelo movimento indígena e o MPF.

Tampouco o Ministério da Saúde, órgãos estaduais e municipais têm dados sistematizados da evolução da epidemia entre as comunidades urbanas. Daí a dificuldade de checá-los. Segundo o IBGE, dos 896,9 mil indígenas do país, 324,8 mil ou 36% viviam em cidades em 2010, quando foi realizado o último censo no Brasil.

Os indígenas urbanos sempre estiveram no fim da fila da assistência médica por causa das distâncias entre a periferia, onde moram, e as unidades de atendimento, além do preconceito e da ineficiência de políticas de prevenção em saúde. Agora, a situação agravou-se. Em cidades como Manaus, os índios já não conseguem atendimento e muitos estão morrendo em casa.

Nesse ponto, o projeto relatado por Joênia Wapichana afirma que a política emergencial vale para indígenas que “vivem fora das Terras Indígenas em áreas urbanas ou rurais” e proíbe que o atendimento médico seja “negado às populações indígenas por falta de documentação ou quaisquer outros motivos”. O PL também prevê, desta vez em caráter permanente, que a "Rede Sus deverá obrigatoriamente fazer o registro e notificação da declaração de cor ou raça, garantindo a identificação de todos os indígenas atendidos nos sistemas públicos de saúde".

"Por que temos uma legislação específica relacionada à saúde indígena? Porque nossa Constituição garante”, disse Joênia. “[Os índios] não perdem sua identidade quando buscam programas e benefícios sociais, como o auxílio emergencial, com uma atenção específica diferenciada”, defendeu.

A invisibilidade dos quilombolas na crise sanitária é ainda pior. Não existem dados oficiais de mortes e casos entre eles. Outro levantamento independente, da Coordenação de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), apontava 26 óbitos e 150 casos confirmados em todo o país no dia 18/5.

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