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O desenho de uma mulher indígena, com expressão forte, acompanhada dos filhos pequenos e de outras outras mulheres, ilustra a capa da cartilha “Violência Doméstica e Violência Sexual em tempos de pandemia – Redes de apoio e denúncias: Você não está sozinha!”.
O material, elaborado no contexto da pandemia da Covid-19, foi pensado para fortalecer as redes de proteção às indígenas em São Gabriel da Cachoeira, no Alto Rio Negro (AM), e informar: quem está sofrendo agressões pode e deve contar com ajuda.
Assim como no resto do país, as denúncias de violência contra mulheres do Rio Negro aumentaram durante a pandemia. São Gabriel da Cachoeira, cidade mais indígena do Brasil,viu as agressões crescerem no cenário de confinamento e isolamento social.
Frente à realidade, se verificou, portanto, a necessidade de reforçar o acesso à informação para o enfrentamento da violência contra a mulher. A cartilha foi construída a partir do diálogo com mulheres indígenas e instituições. Nela, há informações para identificar as agressões e de onde procurar ajuda. Há também orientações sobre violência contra crianças e adolescentes.
Elizângela da Silva, da etnia Baré e coordenadora do Departamento de Mulheres da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Dmirn/Foirn), ressaltou que a cartilha foi desenhada para a realidade indígena a partir de ações que já vêm sendo aplicadas na região. “É bom termos a cartilha com orientações para trabalharmos entre as escolas, comunidades e famílias. Não se trata de usar a cartilha como um simples papel, mas como ferramenta para seguir relembrando, falando, norteando nossa vida e convívio familiar”, disse.
Pesquisadora da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP/USP) e idealizadora do material, Dulce Meire Mendes Morais contou que a cartilha se soma a outras iniciativas das mulheres da região para o enfrentamento à violência doméstica. “São questões que desde antes da pandemia têm estado presentes na vida dessas mulheres”, afirmou.
Segundo ela, que pesquisa violência sexual contra as mulheres em São Gabriel da Cachoeira, o objetivo a cartilha é ser simples, acessível e adaptada para a realidade local. “É um importante informativo para reforçar as redes de apoio que as mulheres, crianças e adolescentes da cidade já têm”, explicou. Elizângela também destacou a importância das redes que vêm sendo criadas pelas mulheres, inclusive via WhatsApp. “Muitas vezes, uma discussão que começa no grupo provoca outras mensagens, enviadas no particular, onde os problemas são conversados e a gente vai apoiando umas às outras”.
A titular da Delegacia Interativa de Polícia Civil de São Gabriel da Cachoeira, delegada Grace Jardim, também fez parte da elaboração do conteúdo. Para ela, a ação ajuda a romper o ciclo de violência contra a mulher. “Eu gostei muito da linguagem usada na cartilha. Mostra de forma clara que as mulheres não estão sozinhas e orienta a como elas devem agir em caso de agressão”, comentou.
Juliana Radler, assessora do Instituto Socioambiental (ISA), explicou que, desde 2017, projetos desenvolvidos em conjunto por ISA, Foirn e a Universidade de São Paulo (USP), vêm tendo como foco ações de proteção à mulher. Em 2018, foram realizadas rodas de conversas dentro do Projeto Mulheres Indígenas, Gênero e Violência no Rio Negro. “As conversas ajudaram a entender o processo cultural, como as mulheres da região compreendem a violência, como elas agem e reagem frente a essa questão”, disse Juliana, que participou das rodas.
O coordenador do projeto, professor José Miguel Nieto Olivar, da Faculdade de Saúde Pública da USP, ajudou na elaboração da cartilha. O estudo constatou, por exemplo, que elementos da cultura local, como benzimentos e chás, são utilizados também como uma forma de apaziguar situações de conflito.
Outro ponto, constatado durante as rodas de conversa com mulheres, foi o desejo de que os homens das famílias também participassem das discussões para o combate desse problema, relatou Elizângela. “A violência acontece quando duas pessoas não se entendem. A gente nunca quer trabalhar só o individual, quer trabalhar no coletivo”, disse a coordenadora da Foirn.
A cartilha foi elaborada pelo Departamento de Mulheres da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Dmirn/Foirn), FSP-USP, Delegacia Interativa de Polícia de São Gabriel da Cachoeira, Conselho Tutelar, ISA e parceiros. Também colaboraram no projeto a coordenadora do Dmirn/Foirn, Janete Alves, da etnia Desana, Florinda Lima Oujuela, da etnia Tuyuka, Dayane Franco da Silva, presidente do Conselho Tutelar, Carla Dias, antropóloga do ISA, e Ana Amélia Hamdan, jornalista, também pelo ISA.
De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), a violência doméstica é um problema de saúde pública. Atenta à questão, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) elaborou, no início da crise, o informe "Violência Doméstica e Familiar na Covid-19". O texto indica que, durante a pandemia, o número de denúncias pode ter no Brasil. “Em situações de pandemia, tais como a da Covid-19, os indicadores de países como China, Espanha e Brasil evidenciam que os casos de violência já existentes se agravam e, ao mesmo tempo, emergem novos casos”, apontou a Fiocruz.
Segundo a delegada Grace Jardim, durante a pandemia houve aumento de flagrantes de violência doméstica e até mesmo da intensidade das agressões em São Gabriel da Cachoeira. “Passamos a ver muitas agressões físicas”, contou Grace. Ela explica que a necessidade de isolamento levou as famílias a se confinarem no mesmo espaço, o que deixou as mulheres mais vulneráveis. “Às vezes há uma ameaça e a mulher foge para a casa dos pais, foge para a casa do vizinho. Mas durante a pandemia isso não foi possível”, explicou.
Além disso, muitas vezes a vítima decide não levar a denúncia adiante, o que compromete as estatísticas. Também, por falta de um espaço de acolhimento, é coagida pelo próprio agressor a retirar a denúncia. Em situação de vulnerabilidade social e fragilidade psicológica, a mulher agredida acaba tendo que retornar para casa com o agressor, como constatam agentes de saúde e profissionais da área de segurança pública.
A questão da renda é um dos fatores principais que dificultam as denúncias, pois muitas vezes o agressor é o companheiro, além de ser o responsável pelo sustento da casa. “Em apenas um final de semana, houve três casos de mulheres que estavam grávidas dos agressores. Vieram no final semana com a denúncia, mas na segunda-feira pediram para retirar a queixa. Não retirei, porque elas estão grávidas”, relatou. Um elemento que reforça o problema da violência doméstica é o abuso de álcool, afirmou a delegada.
Ainda de acordo com Grace, muitas famílias protegem o agressor e a vítima acaba sendo revitimizada. Essa situação ocorre, inclusive, quando o alvo da violência são crianças ou adolescentes. A presença de uma delegada mulher na cidade é uma das conquistas da mobilização das indígenas. “Sendo uma delegada, há mais empatia, a mulher vai saber que a denúncia vai ter prosseguimento, que vai para a Justiça. Muitas vezes eu mesma ouço a vítima, principalmente se é criança e adolescente”, disse Grace. Parte da equipe da delegada é formada por mulheres: reforçam os trabalhos as escrivãs Keyliane Cardoso e Ranyele da Gama, além de Rosiane Xavier, do administrativo.
Para saber mais sobre esse trabalho, confira a live #CasaFloresta8 no YouTube do ISA nessa quinta-feira, dia 20 de agosto, às 18h30, com a presença das mulheres indígenas da Foirn, pesquisadoras da USP e da UFAM, e da delegada de São Gabriel da Cachoeira.
Em São Gabriel da Cachoeira, a pandemia da Covid-19 apresenta números elevados. Devido ao avanço de casos, o município chegou a decretar lockdown, com o fechamento de todo o comércio não essencial e proibição do transporte de passageiros. Em 26 de abril, a cidade registrou os dois primeiros casos da Covid-19. Até 17 de agosto, conforme boletim epidemiológico da Secretaria Municipal de Saúde, eram 3.651 casos confirmados e 50 óbitos. No comparativo de incidência por 100 mil habitantes, o município chegou a ser campeão nacional em casos. Em 6 de agosto, esse índice estava em 7.911,95. Em Manaus, na mesma data, a incidência por 100 mil habitantes era de 1.805,97.
As mulheres tiveram um papel primordial em ações preventivas e curativas. Elizângela Baré; Janete Alves, da etnia Desana, e Edneia Teles, da etnia Arapaso, estiveram à frente da campanha Rio Negro, Nós Cuidamos, desenvolvida pela Foirn com apoio do ISA. A iniciativa arrecada recursos para possibilitar que os indígenas fiquem em suas aldeias, evitando seguir ao ambiente urbano, onde correm maior risco de contágio pelo novo coronavírus.
Essas lideranças indígenas e outras mulheres também estiveram à frente do resgate das tradições, remédios e benzimentos que vêm sendo amplamente utilizados para o combate à Covid-19 no Alto Rio Negro. Além disso, elas promoveram a confecção e distribuição de máscaras. Também reforçaram as equipes de entrega de cestas básicas em longas viagens na calha do Rio Negro. E não descuidaram da comunicação: por meio de informes da Rede Wayuri de Comunicadores Indígenas, com gravações para carros de som, passando informações em sistema de radiofonia, elas deram o recado, informando sobre a prevenção e os riscos da Covid-19.
A cartilha Violência Doméstica e Violência Sexual em tempos de pandemia – Redes de apoio e denúncias: você não está sozinha! foi lançada na Maloca/Casa do Saber da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn), na sexta-feira (14/08), em evento que seguiu as normas sanitárias de prevenção à Covid-19. Além de ser distribuída em pontos estratégicos no ambiente urbano, a cartilha será encaminhada às comunidades indígenas.
Conduzido pela coordenadora do Departamento de Mulheres (Dmirn/Foirn), Elizângela Baré, o encontro contou com a presença de mulheres representando instituições e organizações da cidade, como ISA, Fundação Nacional do Índio (Funai), Polícia Civil, Polícia Militar, Guarda Municipal, Jovens Guerreiras, Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei), Secretaria Municipal de Assistência Social, Secretaria Municipal de Educação, Conselho Tutelar, Pastoral da Criança, Projeto Kuyâtai Uka suri. O presidente da Foirn, Marivelton Barroso, da etnia Baré, esteve presente no lançamento.
Durante o encontro, as mulheres falaram de suas experiências nas instituições e no dia a dia, relatando dificuldades e avanços. Formou-se, então, uma verdadeira roda de conversa, com a troca de vivências. Elizângela falou da importância de todos – homens e mulheres – fazerem a diferença dentro de suas casas, combatendo a violência.
A distribuição da cartilha está sendo conduzida pela liderança Rosilda Maria Cordeiro da Silva, da etnia Tukano. Ela também levará o material ao território indígena, realizando encontros com apoio de associações de mulheres. Os agentes do Distrito Sanitário Especial Indígena do Alto Rio Negro (Dsei ARN) também vão apoiar esse trabalho.
Interessados podem retirar a cartilha física na portaria da Foirn, em São Gabriel da Cachoeira.