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A maioria das comunidades quilombolas do Vale do Ribeira, na porção sudeste do estado de São Paulo, conseguiu receber as duas doses da vacina contra a Covid-19. Trata-se de uma conquista do movimento quilombola estadual, que atua junto ao governo paulista desde o ano passado para garantir a prioridade na imunização. Apesar do avanço, lideranças e parceiros chamam atenção para problemas como a falta de doses e de consulta e planejamento.
A situação é mais crítica em comunidades como Rio das Minas, Ex Colônia e Porto Cubatão, em Cananéia, que ainda não receberam nenhuma dose da vacina. O município, até o fim da semana passada, só tinha doses para imunizar a comunidade quilombola de Mandira. “Cananéia é o município mais atrasado com relação à vacinação”, alertou Andrew Toshio Hayama, defensor público estadual atuante no Vale do Ribeira.
Das quatro comunidades de Cananéia, apenas uma havia recebido a vacina até o fechamento da reportagem. Nesta segunda-feira (15/03), lideranças foram avisadas que a comunidade de Ex Colônia, também no município, iria receber o imunizante na quarta-feira (17). Caso se confirme, restarão duas comunidades — Rio das Minas e Porto Cubatão — sem nenhuma dose da vacina no município.
A ausência de doses para as comunidades motivou a Defensoria Pública de SP a encaminhar um ofício ao governo municipal cobrando medidas. Ainda não se sabe o motivo para as vacinas dessas comunidades não terem sido enviadas até o momento, disse Toshio. A reportagem entrou em contato com a Secretaria de Saúde estadual para saber por que as doses não foram enviadas, mas não obteve resposta.
A Defensoria Pública Estadual, a Defensoria Pública da União, o Ministério Público Federal, a Equipe de Articulação e Assessoria às Comunidades Negras do Vale do Ribeira (EAACONE) e o Instituto Socioambiental (ISA) têm atuado conjuntamente para garantir a vacinação de toda a população quilombola do Vale do Ribeira, realizando reuniões com representantes do governo do estado e dos municípios e elaborando ofícios para os órgãos responsáveis pela vacinação.
“As vacinas têm chegado à prestação, por assim dizer. Algumas comunidades receberam a primeira dose, a segunda dose. Só que na maioria das comunidades ainda faltam pessoas serem imunizadas”, contou Nilce Pontes Pereira, integrante da Coordenação Nacional das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) e moradora do Quilombo Ribeirão Grande/Barra Seca, em Barra do Turvo (SP).
Em quilombos de Eldorado, segundo Heloisa França, coordenadora estadual da Conaq, famílias que estavam em isolamento devido à ocorrência ou suspeita da Covid-19 no momento da vacinação receberam a recomendação de permanecer isoladas e, assim, perderam a aplicação da 1ª dose. Ainda não foi informada uma nova data, o que gera insegurança nas comunidades.
Em Iguape, a equipe do município só aceitou vacinar quilombolas associados e aqueles que constavam na lista preparada pela associação de moradores dos quilombos, exigindo inclusive que os quilombolas assinassem um termo de responsabilidade. “Há municípios que pretendem responsabilizar unicamente a comunidade pela lista apresentada, querendo se desobrigar de qualquer responsabilidade, caso haja qualquer erro, o que é uma prática abusiva, equivocada”, explicou Toshio.
“Faltou diálogo e entrosamento maior com as comunidades, para entender qual é a dinâmica de cada território, qual é a melhor forma de se fazer essa campanha de vacinação”, afirmou Heloisa França, que, além de coordenadora estadual da Conaq, é moradora do Quilombo São Pedro, em Eldorado.
A imunização anda a passos lentos no resto do país. A vacinação da população quilombola com mais de 18 anos e apta a receber a dose tem acontecido em poucos municípios e comunidades. São exemplos a comunidade do Abacatal, no município de Ananindeua (PA); as comunidades nos municípios de Rio de Janeiro, Búzios e Petrópolis, no estado do Rio de Janeiro; o Território Kalunga, em Cavalcante (GO); e a Comunidade Remanescente do Quilombo de Ibicuí da Armada, em Santana do Livramento (RS).
É um desafio conseguir informações sobre a vacinação nos quilombos. A Conaq mobiliza desde o ano passado uma rede de representantes em todas as regiões, que têm a tarefa de entrar em contato com lideranças locais nos diversos municípios e coletar dados sobre a incidência da Covid-19. Os dados alimentam a plataforma Quilombo sem Covid-19. Desde janeiro, com o início da vacinação, os mobilizadores também têm monitorado a vacinação.
Nas demais comunidades, quando a vacina chega, é apenas para quilombolas de idade mais avançada e para profissionais de saúde. Ou seja, não há uma real diferença, na maior parte dos estados e municípios, entre os quilombolas e a população em geral — apesar de quilombolas serem parte do grupo prioritário no Plano Nacional de Imunização do Ministério da Saúde e da confirmação dessa prioridade no julgamento da Arguição de Descumprimento de Direito Fundamental (ADPF) 742 pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em fevereiro.
A ADPF estabelece que quilombolas devem ser vacinados com prioridade por causa da maior vulnerabilidade das populações a doenças e à maior dificuldade de acesso à infraestrutura de saúde e saneamento básico. Além disso, a ação proposta pela Conaq e mais cinco partidos políticos também pede que o Estado brasileiro apresente um plano de enfrentamento à pandemia nos quilombos.
“Após a decisão do STF, o Governo Federal, em reunião realizada dia 10 de março, afirmou que iria distribuir vacinas para todas as comunidades quilombolas. Contudo, não informou quando isso seria feito, e nem mesmo em que fase da vacinação prioritária do plano de imunização as comunidades estariam. Essa postura pode ser interpretada como descumprimento da decisão do STF”, avaliou Fernando Prioste, assessor jurídico do Programa Vale do Ribeira do ISA.
O último episódio do podcast Copiô, parente, focado na vacinação das comunidades quilombolas, trouxe falas de lideranças em diferentes estados sobre a vacinação. O destaque é a entrevista com o prefeito de Cavalcante (GO), Vilmar Kalunga. Ele comentou a vitória na garantia da vacinação dos mais de 2,5 mil quilombolas do Território Kalunga, o maior do Brasil.
“Nós não estamos pedindo regalias, nós estamos solicitando um direito e as comunidades estão sim à margem, estão em locais de mais difícil acesso, em que é mais difícil ter um atendimento digno. Ser vacinado com prioridade é garantir a vida dentro dos territórios”, ressaltou Heloisa França.