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“Não estudei na cidade para aprender a desenhar, eu estudava só na floresta, onde eu caçava no mato. Eu desenhava nas árvores, nas praias, desenhava nos coqueiros e nas folhas novas, com carvão. Eu descascava a árvore e fazia os desenhos nos troncos”, conta o artista Joseca Yanomami, ao comentar as evidências deixadas na floresta de suas primeiras ilustrações, ainda na adolescência.
Agora, as obras de Joseca e de outros dois artistas Yanomami, Ehuana Yaira Yanomami e Kalepi Amarildo Isaac Sanöma, estão sendo apreciadas a milhares de quilômetros de distância da Terra Yanomami, em Xangai, na China. A cidade foi escolhida para sediar a continuidade da mostra “Árvores”, exposta pela primeira vez em 2019, em Paris. A visitação da etapa chinesa começou em 9 de julho e segue até 10 de outubro de 2021.
A exposição, promovida pela Fundação Cartier para Arte Contemporânea e realizada pelo museu chinês Central de Arte, apresenta mais de 200 obras de quase 30 artistas da China e de países latino-americanos, europeus e asiáticos. O evento celebra as árvores como fonte de inspiração para a sociedade humana. Pinturas, fotografias, vídeos, desenhos e instalações reúnem os testemunhos, tanto artísticos como científicos, daqueles capazes de olhar o mundo vegetal em suas diferentes manifestações.
“Desenho os parentes, os animais, árvores, os passarinhos, araras, macacos, antas, peixes”, conta Joseca. “Quando eu aprendi a desenhar eu ouvia os pajés cantando e eu gravava na minha cabeça para desenhar depois. Eu desenho os espíritos. E quando eu sonho, eu estudo muito, penso muito e faço muitos desenhos do meu sonho. Eu sonho com vários animais, espíritos, doenças, inimigos, sonho de chuvas, araras, caçador”, relata.
O artista, nascido na década de 1970 na região do Demini, Terra Indígena Yanomami, localizada entre os estados do Amazonas e Roraima, se tornou o primeiro estudioso de línguas e professor da comunidade Watorikɨ, no início dos anos 1990. No começo dos anos 2000, Joseca foi o primeiro Yanomami a trabalhar na área da saúde. Nessa época, ele também começou a esculpir animais notáveis em madeira e a desenhar.
Essa não é a primeira vez que seus trabalhos participam de uma importante exposição. As obras estrearam na França, na Fundação Cartier para Arte Contemporânea na exposição Yanomami intitulada “Espírito da Floresta, Histórias para ver: mostrar e contar”, em 2003 - na ocasião, Joseca viajou com o líder e xamã Yanomami Davi Kopenawa e seu filho, Dário Kopenawa para a abertura. Em 2009, o artista participou da exposição de 30 anos da Fundação Cartier, em 2012 na mostra “História para ver” e em 2019, quando a exposição "Árvores" foi inaugurada em Paris.
Desde 2014, o artista também ilustra vários livros sobre as tradições de seu povo publicados pela Hutukara Associação Yanomami. Em 2020, uma intervenção artística no Congresso Nacional com desenhos de Joseca, marcou o encerramento da campanha #ForaGarimpoForaCovid, com a entrega de uma petição de mais de 400 mil assinaturas a deputados federais e outras autoridades. Os desenhos ilustram meticulosamente entidades, lugares e eventos evocados pelos mitos e cantos xamânicos que ele ouviu desde a infância, mas também por cenas da vida cotidiana na floresta.
Uma obra artística da primeira mulher Yanomami a escrever um livro em sua própria língua, Ehuana Yaira Yanomami, também faz parte da exposição “Árvores”, em Xangai. “Na hora que eu faço os meus desenhos eu penso em fazer uma mulher. Primeiro, eu penso quando estou na floresta, depois, eu sonho”, explica a artista em sua língua materna.
Ehuana Yaira, de 37 anos, é professora, artista, artesã, pesquisadora e liderança feminina na comunidade Watorikɨ, onde nasceu e cresceu, mesma aldeia de Davi. Formada na década de 1990 na escola da comunidade, foi a primeira mulher da região a ocupar o cargo de professora.
Em 2010, ela participou de uma pesquisa sobre o conhecimento das mulheres Yanomami, conduzida por anciãs de Watorikɨ. Ao longo de suas investigações, Ehuana Yaira se familiarizou com o uso de computadores e a edição de textos e ilustrações para publicações escolares locais. Assim, ela começou a desenvolver o amor pelo desenho e pela representação das atividades, conhecimentos e rituais femininos.
Em 2017, em parceria com a antropóloga Ana Maria Machado, lançou seu primeiro livro “Yɨpɨmuwi thëã oni: Palavras escritas sobre menstruação”. Em 2019, Ehuana foi uma das pesquisadoras do projeto "Línguas Yanomami: diversidade e vitalidade". A liderança também contribuiu com uma investigação sobre as plantas medicinais usadas pelos Yanomami, um conhecimento de domínio feminino.
Nesse processo de pesquisa sobre as plantas medicinais Ehuana produziu seus primeiros desenhos.
Os trabalhos artísticos foram publicados no livro "Hwërɨmamotima thë pë ã oni: Manual dos remédios tradicionais yanomami".
Suas ilustrações retratam cenas do cotidiano, como a coleta de alimentos, a pesca e o cuidado com os filhos, e também vivências como partos e a primeira menstruação, algo que torna seu trabalho singular.
A artista yanomami apresentou seus desenhos pela primeira vez na primeira edição da exposição “Árvores”, em 2019.
Ela é a protagonista do curta-metragem “Um filme para Ehuana”, dirigido por Louise Botkay em 2018, e uma das atrizes do filme “A Última Floresta”, do cineasta Luiz Bolognesi, lançado neste ano.
“Primeiro eu treino, faço os rascunhos e desenho. Faço uma mulher e depois desenho uma árvore grande. Também faço desenho das casas, das frutas, do beiju, da macaxeira”, conta Ehuana.
Kalepi Amarildo Isaac Sanöma nasceu em 1995, na comunidade de Katimani, na região de Auaris, localizada perto da fronteira do Brasil com a Venezuela. Na região, vivem os falantes da língua Sanöma, subgrupo linguístico da família Yanomami. Hoje Kalepi vive em Kolulu, às margens do rio Asikamau, na mesma região.
Ele foi alfabetizado em sua língua e em português na escola indígena local, “Öpa Sali”. Foi nesse ambiente educacional que logo começou a participar de projetos de pesquisa e publicações sobre o conhecimento tradicional Sanöma, conduzidos pelos mais velhos de sua comunidade. Com essa experiência, se interessou pelo desenho e pela pintura.
Kalepi tira sua inspiração da observação da floresta, especialmente as relações entre plantas e animais. O artista também é responsável por desenvolver projetos econômicos sustentáveis em nome de sua comunidade, como o de cultivos de cogumelo.
Ele faz parte de uma nova geração que se move entre o conhecimento indígena e não-indígena para capacitar seu povo e é um modelo para os mais jovens de seu grupo.
O jovem desenha situações da floresta, principalmente paisagens e cenas típicas, como uma anta bebendo água num igarapé, macacos comendo frutas das árvores e porcos atravessando o mato.
Ele cuida para que a cena representada respeite os ambientes que os animais frequentam e as árvores e plantas que ocorrem nesses ambientes.
Nessas cenas, além de um belo traço e cores vivas, Kalepi representa as relações ecológicas que existem na floresta: nunca um pássaro estará comendo uma fruta que não costuma comer, nunca haverá árvores e plantas que não convivam realmente na floresta nessa paisagem.
O artista se preocupa em ilustrar de forma fiel a floresta. Para isso, além do repertório próprio como participante do "povo da floresta", conversa com os mais velhos, os pata tö, da sua própria rede de parentesco que é muito ampla e extensa na comunidade.
As obras de Joseca, Ehuana e Kalepi foram levadas para a exposição pelo antropólogo francês Bruce Albert, que atua em defesa do povo Yanomami desde 1975. Bruce Albert foi co-curador de duas exposições para a Fundação Cartier para Arte Contemporânea: a “Espírito da Floresta”, em 2003 e “Árvores”, em 2019. Ele ressalta que atualmente “os artistas Yanomami são expostos em museus e galerias de arte contemporânea de Paris a Nova York, de São Paulo até Xangai”.
“A arte contemporânea dos Yanomami mostra ao mundo a beleza da reflexão metafísica e do conhecimento da floresta deste povo singular. Trata-se, portanto, de uma ferramenta potente na defesa dos seus direitos territoriais e culturais reconhecidos pela Constituição brasileira e, infelizmente, gravemente desrespeitados pelo atual presidente do Brasil, inepto e feroz inimigo dos povos indígenas”, diz o antropólogo.
A maior terra indígena do Brasil, com quase 10 milhões de hectares e uma população de 27 mil habitantes, está invadida por cerca de 20 mil garimpeiros em busca da extração do ouro ilegal.
Desde o dia 10 de maio os conflitos se intensificaram na região do Palimiú, situada no rio Uraricoera, com tiros de armas pesadas e bombas. O ataque resultou em um indígena ferido com uma bala de raspão na cabeça e duas crianças que morreram afogadas ao tentarem se refugiar na floresta com medo dos conflitos.
Em 2020, em meio à pandemia, o garimpo ilegal avançou 30% na Terra Yanomami, segundo relatório da Hutukara. Somente no rio Uraricoera, concentra-se 52% da área devastada. Nos primeiros meses deste ano já foram contabilizados o desmatamento de cerca de 200 campos de futebol.