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As 200 famílias extrativistas que vivem às margens dos rios Branco e Jauaperi, nos estados de Roraima e do Amazonas, saíram vitoriosas de uma batalha que já dura 17 anos. Nesta quarta-feira (6) o Ministério do Meio Ambiente oficializou a criação da Reserva Extrativista Baixo Rio Branco Jauaperi em decreto publicado no Diário Oficial, possibilitando o fim de um ciclo de conflitos e da exploração ilegal dos recursos da região.
Além da Resex Jauaperi, o governo também publicou os decretos de criação de duas unidades de conservação na Caatinga baiana: a Área de Proteção Ambiental (APA) da Ararinha Azul e o Refúgio da Vida Silvestre (Revis ou RVS).
A Reserva Extrativista é uma categoria de Unidade de Conservação específica para o território de populações extrativistas tradicionais. Seu objetivo básico é a conservação dos meios de vida e da cultura dessas populações, que mantém a biodiversidade local e a floresta e cujo modo de vida está fundamentado na pesca e roças de baixo impacto e na coleta de castanha, copaíba e fibras.
No caso da Resex Jauaperi, as famílias estavam ameaçadas pela pesca ilegal de peixes e quelônios (tartarugas), tentativa de grilagem e de expulsão dos moradores. "A região é rica em produtos da floresta e tem muito peixe nos rios e lagos, gerando disputas entre as comunidades e os empresários de Manaus. Agora com a criação da Resex os comunitários vão ter mais força para defender os seus recursos, o seu lugar e o seu jeito de viver", afirma Ciro Campos, pesquisador do Instituto Socioambiental (ISA).
“O Baixo rio Branco é uma importante área de vida de tartarugas da Amazônia (Podocnemis expansa) e por conta disso há muitos conflitos envolvendo sua caça e comércio ilegal. Também há uma pressão forte da pesca comercial predatória sobre o rio Jauaperi que acabou gerando uma série de problemas para as comunidades que aí vivem”, explica Carlos Durigan, Diretor da WCS Brasil.
O pleito pela criação da UC se iniciou em 2001, com uma solicitação das próprias famílias que vivem na área. Ao longo desses 17 anos, o processo contou com uma sequência de disputas judiciais e com a oposição do próprio governo de Roraima (veja box). Segundo Durigan, políticos locais, sobretudo do estado de Roraima, atuaram fortemente para barrar a criação da UC, desconsiderando a vontade das comunidades.
“Chegamos a vivenciar problemas sérios de pressão política e inúmeras tentativas de intimidação e resistência que incluíram ações como a criação de uma APA Estadual incidindo sobre a área e mesmo disseminação de informações falsas de que após a criação da RESEX famílias seriam retiradas da área ou mesmo outras limitações que a criação acarretaria”, afirma o geógrafo.
O decreto publicado nesta quarta-feira estabelece uma área de 581.173 hectares, destacando-se três áreas especiais em trechos do território tradicional dos índios Waimiri Atroari: a zona de preservação, que compreende a faixa de 2 km de largura ao longo dos limites da Resex com a Terra Indígena Waimiri Atroari e onde não são permitidas a ocupação e a utilização direta ou indireta dos recursos naturais; a zona de uso restrito, cuja utilização dos recursos só é permitida após acordo com a comunidade Waimiri (área do Mahoa, 40.565 hectares); e a zona de conservação, na região do Igarapé Xipariña, com 56.747 hectares, na qual não são permitidas a ocupação e a realização de qualquer atividade de uso direto dos recursos naturais ali abrangidos, exceto quanto às atividades de recreação e turismo, desde que sejam definidas no plano de manejo (veja no mapa).
O decreto menciona ainda a possibilidade da Fundação Nacional do Índio (Funai) a continuar os estudos para a revisão dos limites da Terra Indígena Waimiri-Atroari e os levantamentos da área de ocupação dos grupos indígenas isolados nos limites da Resex . Além disso, fica garantida a vaga para um representante da Funai e para um representante da comunidade Waimiri-Atroari no Comitê Gestor da Reserva. Em 2014, a Funai constituiu um grupo de trabalho para revisão dos limites da Terra, uma vez que ela foi oficialmente reconhecida em área menor que o território original dos Waimiri Atroari.
A demora de uma definição por parte do governo federal impactou diretamente a vida das comunidades que habitam a Resex. Nesses 17 anos, as disputas por recursos e por território se intensificaram. Grandes barcos pesqueiros de Manaus invadiram o rio, praticando a pesca ilegal e reduzindo o estoque de peixes da região.
Em 2008, o presidente da Associação dos Agroextrativistas do Baixo Rio Branco-Jauaperi (Ecoex), Francisco Felix, teve a casa incendiada na comunidade Floresta. Tudo indica que o ataque foi feito por opositores da reserva extrativista. Até hoje os responsáveis pelo atentado não são conhecidos. O assassinato de um comunitário em atividade voluntária de fiscalização pelo IBAMA também pode estar relacionado à luta pela demarcação.
Para Durigan, após tantos anos de espera, é necessário resgatar o entusiasmo e engajamento das comunidades, promover novamente o movimento em torno do estabelecimento da Resex e, principalmente, iniciar o processo de construção de seu Plano de Manejo e criação de seu Conselho Gestor.
"A criação da Resex do Jauaperi é mais um passo importante para o ordenamento fundiário do médio Rio Negro, após a delimitação da Terra Indígena Jurubaxi-Téa e a criação do Sítio Ramsar", conclui Marcio Santilli, sócio-fundador do ISA.
Para o secretário de Biodiversidade do Ministério do Meio Ambiente, José Pedro de Oliveira Costa, a área tem um potencial de produção de pescado sustentável muito grande. Outra possibilidade é o ecoturismo, como complemento de renda para essas comunidades.
"A área complementa um corredor de proteção importante", afirma o secretário. Oliveira explica que, junto com TIs e outras UCs da região, a Resex compõe uma área fundamental para conter as mudanças climáticas. Segundo o secretário, o tempo médio para o processo de criação de uma UC é de nove meses.
O processo de criação das duas UC era aguardado desde julho de 2017, quando consultas públicas foram realizadas. Após as consultas, a proposta de criação das UC foi submetida à área jurídica do Ministério do Meio Ambiente, passou pela Casa Civil. O decreto presidencial instituiu oficialmente as unidades.
Atualmente existem cerca de 130 indivíduos da ararinha-azul (Cyanopsitta spixii), distribuídos em criadouros particulares do Catar, Alemanha, Espanha e Brasil. A espécie é considerada oficialmente extinta na natureza desde 2000. Objetivando o aumento dessa população em cativeiro e a recuperação do habitat da espécie para sua reintrodução, o ICMBio lançou, em 2012, o Plano de Ação Nacional (PAN) para a Conservação da Ararinha-azul (veja aqui).
A criação da APA e do RVS faz parte das estratégias de reintrodução na caatinga baiana dos primeiros indivíduos da espécie mantidos em cativeiro. A expectativa, segundo o Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Aves Silvestres (Cemave/ICMBio), é que as primeiras solturas ocorram até 2021.
A caatinga é o único bioma exclusivamente brasileiro e é um dos mais degradados pela ação do ser humano. Ele ocupa aproximadamente 11% do território nacional, sendo que cerca da metade de sua vegetação original foi desmatada. A criação das UCs nesse bioma amplia sua área de conservação. São 1.101.083 hectares em unidades de proteção integral. Com a criação das duas UCs, o Brasil passa a contabilizar nove Refúgios de Vida Silvestre e 37 Áreas de Proteção Ambiental federais.
Segundo o Decreto Nº 9.402, que cria ambas as áreas, seus respectivos subsolos integram os limites das unidades de conservação. Ficam excluídas dos limites da RVS as instalações e a faixa de servidão da linha de transmissão 500 kV Luiz Gonzaga - Sobradinho C2; e a faixa de domínio de 40 metros de cada lado da rodovia BA - 120, medida a partir do centro da faixa de rodagem.
A zona de amortecimento do Refúgio de Vida Silvestre da Ararinha Azul será a própria Área de Proteção Ambiental da Ararinha Azul. O Plano de Manejo do Refúgio de Vida Silvestre da Ararinha Azul regulamentará as atividades agropecuárias com vistas a garantir sua sustentabilidade ambiental em conformidade com os objetivos da unidade de conservação. Fica permitida a manutenção das atividades agropecuárias existentes até a publicação do Plano de Manejo.
Em 2001, moradores das comunidades de Santa Maria Velha, Vila da Cota, Remanso, Itaquera, Floresta, Samaúma e Xixuaú, em Rorainópolis(RR), solicitaram ao Ibama a criação da Reserva Extrativista Baixo Rio Branco-Jauaperi. Algum tempo depois, aderiram à proposta outras comunidades localizadas na margem esquerda do Rio Jauaperi, um dos afluentes do Rio Negro, no município de Novo Airão (AM).
O Jauaperi é um rio de águas escuras que nasce próximo à fronteira de Roraima com a Guiana na Serra do Acaraí. Corre pelo sul do estado, numa área já bastante convertida até se aproximar do baixo rio Branco e desaguar no rio Negro, marcando a divisa entre Roraima e Amazonas.
Em 2006, os procedimentos legais foram encaminhados ao Ministério do Meio Ambiente e então à Casa Civil. Com a demora na tramitação, o apoio para a criação da Resex foi tomando corpo: manifestos, ofícios e abaixo assinados da sociedade civil e de associações comunitárias extrativistas, Ministério Público. Entre 2007 e 2009, foram realizadas mobilizações em Brasília e Manaus, por meio do apoio da Rede Rio Negro, rede de ONGs formada pelo ISA, Fundação Vitória Amazônica, WCS, Foirn, Instituto de Pesquisas Ecológicas, Secoya e WWF-Brasil, que iniciou apoio mais estruturado às comunidades.
Um dos fortes oponentes do reconhecimento da Resex durante todos esses anos foi o governo estadual de Roraima. Além de anunciar a instalação de assentamentos rurais na área e em seu entorno em 2005. Relembre aqui.
Em 2006 o governo do Estado de Roraima ajuízou no Supremo Tribunal Federal ação contra o Ibama em virtude da criação da Reserva Extrativista Baixo Rio Branco-Jauaperi (veja aqui), alegando que a proposta da criação da reserva violava o pacto federativo, de autonomia conferida pela Constituição aos Estados-membros da Federação e que a União pretendia criar uma Reserva Extrativista em área já destinada à ‘reserva de igual conteúdo’ pelo governo do estado.
De fato, em 2006 o governo do estado criou, na região, a Área Proteção Ambiental Baixo Rio Branco. O argumento, entretanto, não procede. As APAs são das categorias que mais flexibilizam o uso da terra, sendo permitida a existência de terras privadas em seu interior e com regulamento que possibilita o corte raso de vegetação nativa e até mineração. Ou seja: as normas desse tipo de UCs são muito menos rigorosas do ponto de vista ambiental do que aquelas que regulam Flonas, Parques Nacionais e Rebios. O Tribunal, por unanimidade, negou provimento ao recurso de agravo e declarou extinto o processo cautelar.
A posição do Estado de Roraima só mudou depois de 2014, com as negociações para a transferência das terras da União para o Estado. A partir daí, o governo passou a apoiar a criação da Resex.
O Decreto Nº 9.401 de 05/06/2018, que cria a Resex, atesta que a zona de amortecimento da Resex será definida por meio de ato específico do Presidente do ICMBio, sendo permitidas as atividades de pesquisa e produção mineral autorizadas até então pela Agência Nacional de Mineração e licenciadas pelo órgão competente.
São permitidas obras nas áreas destinadas à Rodovia BR-431, mediante procedimento de licenciamento ambiental. Fica permitida também a operação e a manutenção da Usina Termoelétrica Vila Tanauá e de seu sistema de distribuição associado na Resex. A operação, a manutenção e a implementação de novas linhas de transmissão e de suas instalações associadas serão permitidas na zona de amortecimento da Reserva Extrativista Baixo Rio Branco-Jauaperi, nos termos do disposto no parágrafo único do art. 46 da Lei nº 9.985, de 18 de julho de 2000.
A área da Reserva Extrativista incide cerca de 66% com a APA estadual Baixo Rio Branco.