Você está na versão anterior do website do ISA

Atenção

Essa é a versão antiga do site do ISA que ficou no ar até março de 2022. As informações institucionais aqui contidas podem estar desatualizadas. Acesse https://www.socioambiental.org para a versão atual.

Baixo Rio Negro enfrenta Covid-19 com remédios tradicionais e ampliação da radiofonia

Esta notícia está associada ao Programa: 
Sete novas estações de rádio foram instaladas pela equipe da saúde indígena em comunidades estratégicas nos rio Negro, Unini e Aracá, em Barcelos (AM)
Versão para impressão

O segundo maior município brasileiro em extensão territorial, Barcelos, no Baixo Rio Negro (AM), enfrentou sérias dificuldades de comunicação durante a pandemia de Covid-19. As comunidades indígenas cumpriram as recomendações oficiais e se isolaram com a chegada do novo coronavírus. Mas, devido à carência de serviços de telecomunicações, as equipes de saúde não puderam enviar notícias ou receber informações dos moradores do interior.



“A gente se sentiu muito aflito sem ter notícias dos nossos parentes no período de isolamento, quando ninguém podia circular pelo território e o fluxo aldeia-cidade estava interrompido”, contou Maria Lourenço, do povo Baniwa. “Mariazinha”, como é conhecida, preside a Associação Indígena de Barcelos (Asiba). A organização tem 1778 associados distribuídos por 27 comunidades do município. Atualmente morando na área urbana, Mariazinha atuou na distribuição de alimentos, máscaras, kits de limpeza e higiene para as comunidades indígenas do entorno da cidade.

Indígenas da região relataram preocupação por não saber ao certo como se proteger da doença e como identificá-la. No período mais intenso do vírus, entre maio e junho, as comunidades se voltaram para dentro, para seus conhecimentos tradicionais, e usaram benzimentos, chás, banhos e defumações no tratamento contra a Covid-19.

“Todos nós pegamos a doença. Mas essa doença foi, assim, um mistério que ninguém soube de onde que veio e quem trouxe. Só sei dizer que nós adoecemos, mas ninguém precisou ir pro hospital. A gente sentiu dor de cabeça, tontura, dor no corpo, nos ouvidos, nos olhos, tosse e até falta de ar. Isso a gente sofreu. Mas, graças a Deus, agora maneirou bastante. A gente fez banhos de folhas do mato mesmo e tomamos muitos chás. Usamos muito banho e defumação em casa. Como somos indígenas, acreditamos mais em nossa cultura da cura, do remédio que nós temos, das medicinas do mato. Gente que reza também, como meu esposo, que faz trabalhos espirituais. A gente graças a Deus pegou, mas foi leve, não foi grave”, narrou a líder da comunidade indígena de Cauburis, Virgília Perez Tomás, do povo Baré. Há três anos Cauburis aguardava pela instalação de uma radiofonia e agora com a pandemia foi contemplada pela expansão da rede de rádios da Saúde Indígena.

Rede de “fonia” em expansão

Entre os dias 9 e 12 de setembro, uma equipe técnica do Distrito Sanitário Especial de Saúde Indígena do Alto Rio Negro (DSEI-ARN), acompanhada pelos presidentes da Asiba, da Foirn (Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro) e do Condisi (Conselho Distrital de Saúde Indígena), além de um representante da Fundação de Vigilância em Saúde (FVS-AM) e do Instituto Socioambiental (ISA), instalaram seis estações de radiofonia em comunidades estratégicas nos rios Negro, Aracá e Unini. Uma estação também foi instalada na sede do DSEI-ARN em Barcelos, que estava até então com a radiofonia danificada.

Assista ao vídeo:

“A radiofonia vem sendo implementada pela Foirn como um importante sistema de comunicação indígena na bacia do Rio Negro desde 1995. É o nosso principal meio de comunicação entre as 750 comunidades indígenas de Barcelos, Santa Isabel do Rio Negro e São Gabriel da Cachoeira. Com a criação do DSEI nos anos 2000, esse trabalho ficou ainda mais intenso por conta das questões de resgate na saúde”, contou o presidente da Foirn, Marivelton Barroso, do povo Baré.

De um total de 152 novas estações de radiofonia que estão sendo instaladas agora pelo DSEI-ARN, 130 já foram concluídas nos três municípios atendidos pelo distrito do Baixo ao Alto Rio Negro. Cada kit instalado nas comunidades é composto por um rádio da marca Waicon, um painel solar de 280 watts, um controlador de carga, uma bateria estacionária de 70 amperes e uma antena. Os moradores que vão operar a rádio também receberam instruções básicas de manutenção e utilização dos aparelhos. As rádios vão funcionar com três frequências: da Funai, da Foirn e do DSEI-ARN.

“Isso permite que um plano de comunicação conjunto possa ser feito, dando melhor cobertura para a população indígena do Rio Negro e suas instituições de referência. Com essa ampliação das estações, a Foirn chega a 310 estações de radiofonia entre 750 comunidades. Também é importante pensarmos na intensificação da comunicação com a ampliação dos pontos de internet em comunidades chave. É necessário poder investir também nessa universalização da internet com antenas de Gesac, além de ter a radiofonia como principal meio de comunicação no monitoramento de todo o território”, enfatiza Marivelton.



Do Unini ao Aracá

A pandemia de Covid-19 deixou claro que Barcelos precisa ter melhor infraestrutura de comunicação, principalmente para possibilitar a troca de informações entre a área urbana e o interior. O município sofre com invasões de madeireiros, garimpeiros, pescadores ilegais e caçadores, mesmo sendo um dos mais importantes roteiros turísticos do Amazonas, principalmente na pesca esportiva. A carência de infraestrutura de telecomunicações atinge até a sede da Funai no município, que está sem acesso a internet desde novembro de 2019.

A boa notícia é que, finalmente, a fibra óptica subiu o rio e chegou a Barcelos esse mês. Se espera que, nos próximos meses, serviços de internet banda larga sejam oferecidos na área urbana, onde a cobertura de telefonia móvel ainda deixa muito a desejar. Por isso, a radiofonia continua sendo tão importante neste vasto território amazônico do Baixo Rio Negro e um meio confiável de comunicação para as populações indígenas mais afetadas pela falta de infraestrutura.



Durante a viagem para instalação das rádios, que durou quatro dias devido às longas distâncias percorridas entre as comunidades, o único local do interior que tinha acesso a internet via satélite (Gesac) era a comunidade de Floresta 2, no estado de Roraima (parte do município de Caracaraí), nas margens do Rio Branco, na fronteira com o Amazonas. Nossa equipe precisou pernoitar em Floresta 2 para seguir viagem no dia seguinte até Patauá, na Reserva Extrativista (Resex) do Rio Unini, em Barcelos, onde foi instalada a rádio mais distante. Patauá é uma comunidade indígena com cerca de 25 famílias, de maioria Baré e Tikuna, que vivem da agricultura e do extrativismo da castanha e do cipó para artesanato.

“Deu um pouco de medo ficar sem comunicação na comunidade durante a pandemia. Mas, com a fonia agora tudo fica mais fácil. Você vê que na cidade sem um celularzinho a gente fica perdido. Às vezes o cara nem sabe onde o outro mora, só tem mesmo o número. Mas, com um celularzinho, você tem o número e liga pra quem quiser. Com a comunicação, você nem sabe onde o companheiro tá, mas se tem o número aí você liga e resolve os problemas. A comunicação é muito viável em todo o canto, é bom a gente se comunicar, a gente saber onde a pessoa tá, se ela tá bem de saúde, tanto na cidade, como no interior”, afirmou o agricultor do povo Baré, Pedro Ferreira de Queiroz, de 67 anos, morador de Patauá.

Pedro diz que a fonia será importante para outras comunidades do Unini que também estão isoladas, sem acesso a serviços de comunicação. Ele conta que o orelhão da comunidade oscila muito, talvez por ser antigo, e nem sempre funciona. Sobre a pandemia na Resex do Unini ele contou:

“A pandemia aqui foi meio ruim. Adoeceu um bocado de gente, mas graças a Deus não aconteceu nada grave. As pessoas se cuidaram e se precaveram direito. Todo mundo se aquietou, ficou tranquilo, não ficaram se tumultuando com ninguém. Só mesmo indo pro trabalhozinho na roça, pra pesca. Com fé em Deus vencemos muito forte essa doença. Tivemos muita sorte que aqui no rio (Unini) não morreu ninguém. E agora estabilizou, né? Ninguém ouve mais falar de doença pra cá. Aqui todo mundo tomou chá de casca de carapanaúba, casca de jatobá que é muito medicinal, esses são os paus que a gente tira. Tem o Amapá, que a gente tira o leite também, é medicinal. Às vezes a pessoa tá fraca e esse leite cura muitas doenças, como catarro crônico. Minha mulher planta muita plantinha, como jambu, hortelã, uma porção de plantinha que nem lembro direito, mas aqui tem muita planta medicinal que resolve as coisas. A gente não toma só pílula de farmácia não. Às vezes toma a pílula de farmácia, fica bom de uma coisa, mas acaba ruim da outra. Aqui no rio, as pessoas só têm morrido de velho ou quando tem algum acidente. Onde tem muita gente é que sempre tem doença”.

Já no Rio Aracá, onde foi instalada na comunidade de Terra Preta, de maioria Baré, a última das sete radiofonias, a pandemia também não fez vítimas. Sem ter notícias via televisão por estar com o receptor pifado, a comunidade venceu o novo coronavírus com chás naturais. Terra Preta fica a cerca de quatro horas da área urbana de voadeira. A moradora mais velha, de 77 anos, Ana de Nazareth Andrade, do povo Baniwa, comentou: “A comunicação é muito importante porque a gente tá aqui sem saber de coisa nenhuma, né? Então, esse rádio vai ser muito bom pra gente agora. Nós todos pegamos a doença. A gente não tinha certeza que era ela, mas a gente calculava que era pela informação do sintoma. Aí o que nós fizemos foi remédio caseiro mesmo. A gente fez chá com limão, alho, só essas coisas mesmo. Usamos boldo também. Eu senti frio, dor de cabeça e dor no corpo. Foi só isso mesmo. Muita dor no corpo. Agora passou. Perdi a vontade de comer e não sentia gosto, nem cheiro, nada. Deu fraqueza, canseira, mas só naqueles dias mesmo. Eu fiquei por aqui e nem senti medo de morrer”.

Sem nenhum acesso a informação, a comunidade também não sabe o que ocorre no cenário político. Sua cunhada, Cíntia Baré, diz que para saber sobre o que se passa em Brasília e na capital, Manaus, depende das pessoas que visitam Terra Preta e podem repassar informação diretamente, “da própria boca mesmo”. Ela se alegra pela chegada da radiofonia, que possibilitará receber os informes da Foirn e dos trabalhos do movimento indígena do Rio Negro, além de poder falar com os parentes das comunidades da região.

Além de Patauá, no Unini, e de Terra Preta, no Rio Aracá, comunidades muito distantes da área urbana de Barcelos foram contempladas também, como Cauburis, Dom Pedro II, São Luiz e Manacauaca. Todas estão no Rio Negro, próximas à sede do município. “Só temos a agradecer aos parceiros que nos apoiaram nessa reivindicação de expansão da fonia e que durante a pior parte da pandemia ajudaram os trabalhos da Asiba junto às comunidades em Barcelos. Vamos seguir adiante em defesa dos nossos direitos e da demarcação das nossas terras”, concluiu Mariazinha Baniwa, presidente da Asiba, associação de base representante dos povos indígenas de Barcelos.

Juliana Radler
ISA
Imagens: 

Comentários

O Instituto Socioambiental (ISA) estimula o debate e a troca de ideias. Os comentários aqui publicados são de responsabilidade de seus autores e não representam a opinião desta instituição. Mensagens consideradas ofensivas serão retiradas.