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Os Guarani Mbya e Guarani Nhandeva da Terra Indígena (TI) Morro dos Cavalos vivem dias e noites de tensão. Enquanto aguardam a homologação do território de 1988 hectares, em Palhoça (SC), sofrem ataques de pistoleiros, invasões e têm os bens incendiados. Lideranças denunciaram a situação e cobraram soluções, na terça (28/11), numa audiência pública no Senado (assista a audiência na íntegra no vídeo abaixo).
Para suprir a ausência de segurança por parte do Estado, os indígenas criaram um esquema de segurança próprio: reunidos em volta de uma fogueira, grupos se alternam e passam as noites acordados em vigilância. No dia 19/11, um carro passou disparando tiros contra um desses grupos. Ninguém ficou ferido e, até o fechamento da reportagem, nenhum dos pistoleiros havia sido preso.
“Depois que aconteceu toda essa violência, a aldeia está vivendo um trauma. Agora até crianças têm dificuldade para dormir. A gente não sabe o que pode acontecer daqui pra frente. A gente está num grito de socorro”, diz Elizete Antunes, cacica da aldeia Yaka Porã.
As lideranças indígenas dizem que uma campanha de difamação promovida por moradores não indígenas do município e políticos contra a demarcação está acirrando os conflitos. No dia 28/10, um protesto foi convocado na comunidade de Enseada de Brito, próxima à TI. Em áudio de Whatsapp, os organizadores chamam a demarcação de “ilegal” e convocam os moradores a “proteger nossa água e nossa comunidade”.
“Tenho certeza que vai ser revogado aquele decreto da demarcação indígena da comunidade de Enseada do Brito. É inadmissível, meus colegas! Pessoas que moram lá há mais de cem anos vão perder sua casa porque houve uma demarcação indígena e lá nunca teve índio. Está provado na CPI da Funai que, de 1988 pra trás, não haveria índio naquela comunidade. Provado!”, afirmou o vereador do município de Palhoça Nirdo Artur Luz, conhecido como Pitanta, em discurso na Câmara de Vereadores (veja vídeo abaixo).
Levantamento realizado pela Fundação Nacional do Índio (Funai), porém, mostra o oposto: os indígenas estavam na área reivindicada há décadas, inclusive em 1988, e, em nenhum momento, a TI foi abandonada ou deixou de ter a presença indígena.
A Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sobre a Funai e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), citada pelo vereador, foi instaurada por parlamentares ruralistas na Câmara Federal com a justificativa de investigar irregularidades nesses órgãos e promover alterações legislativas contrárias aos direitos dos povos indígenas. A comissão acabou perseguindo organizações, lideranças e profissionais que atuam pelas causas indígena, quilombola e dos sem terra(saiba mais).
Políticos contrários à demarcação tentam fazer valer no caso a tese do “marco temporal”, pela qual só teriam direito aos seus territórios tradicionais as comunidades indígenas que estivessem ocupando-os em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição. A tese ignora o histórico de remoções forçadas e outras violências vivenciadas por muitos povos indígenas.
TI Morro dos Cavalos (em azul)
“Está devidamente comprovado nos autos que a teoria do marco temporal não se aplica a Morro dos Cavalos”, diz Juliana de Paula Batista, advogada do ISA. Ela lembra que não existe entendimento consolidado do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o tema e que as decisões do tribunal tomadas com base na tese não são vinculantes, ou seja, não devem ser acatadas obrigatoriamente pelo Judiciário em outros casos.
“O que se percebe é um processo de desinformação proposital. Você tem uma comunidade chamada Enseada do Brito, que, pelo que a gente percebe, acha que a demarcação da Terra indígena Chegaria até ali. Isso não é verdade”, explica Lúcia Cabreira, advogada da Rede Nacional de Advogados Populares em Santa Catarina.
“Essa desinformação pode ser utilizada para criar, em relação aos povos indígenas, um tipo de enfrentamento absolutamente desnecessário”, diz o procurador Rogério Navarro, da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal (MPF).
O processo demarcatório da TI Morro dos Cavalos estende-se há 24 anos e estava só aguardando a assinatura presidencial do decreto de homologação, quando o Estado de Santa Catarina apresentou, em 2014, a Ação Civil Originária 2323, questionando a demarcação. Sem uma decisão do STF, onde o processo é relatado pelo ministro Alexandre de Moraes, a demarcação está parada (entenda a situação e veja vídeo abaixo).
“Não há dúvida que os atos de violência, para além do intuito genocida, têm o objetivo de ameaçar e intimidar os indígenas para que eles abandonem a área ou desistam da demarcação”, avalia Batista. Ela considera que os conflitos demonstram a necessidade de conclusão urgente da demarcação.
Eunice Antunes, uma das principais lideranças da TI, avalia que a demora no julgamento da ação cria um clima de esperança nos não indígenas contrários à demarcação. “Com a homologação da terra e o julgamento do processo, isso acaba. É só o que falta. Não vai ter mais para onde as pessoas correrem e dizerem que têm direito de tirar os indígenas dali”, diz.
A situação na TI Morro dos Cavalos levou a procuradora Analúcia Hartmann, do MPF em Santa Catarina, a propor, em setembro, uma ação civil pública contra a Funai e a União. Nela, exigia dos réus, entre outros pontos, a conclusão da demarcação e a adoção de medidas para garantir a segurança dos indígenas e a integridade do território.
A Advocacia Geral da União (AGU) argumentou que a 6ª Vara Federal de Florianópolis — para a qual a ação foi enviada inicialmente — não tinha competência para julgar a matéria. O processo foi encaminhado para apreciação do STF, onde foi recebido por Alexandre de Moraes. O ministro, por sua vez, suspendeu-o sob o argumento de que a ação teria que esperar o julgamento, pelo Supremo, da ACO 2323.
Hartmann diz que está trabalhando com as Polícias Federal, Rodoviária e Militar na busca de soluções que garantam a segurança dos indígenas e a eficácia das investigações dos atentados.