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No último dia 29 de junho, um grupo de sete indígenas em isolamento voluntário entrou em contato com os índios Ashaninka que vivem na Aldeia Simpatia, na TI Kampa e Isolados do Rio Envira (AC). Conhecidos como isolados do Xinane, mas cuja autodenominação provável é Chitonawa, estão localizados na região do Paralelo 10. Próximo dali funcionava a Base Xinane da Frente de Proteção Etnoambiental do Envira, mas em 2011, foi abandonada pelos sertanistas após uma invasão por narcotraficantes peruanos. Assista ao vídeo gravado pela Funai no momento do contato.
O resultado desse contato foi a contaminação do grupo por infecção respiratória aguda. Por essa razão, o médico sanitarista da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Douglas Rodrigues foi chamado à região pelo Ministério da Saúde e pela Coordenação Geral de Índios Isolados e de Recente Contato da Funai (CGIIRC/Funai) para prestar atendimento médico.
Em seu relatório, o médico reitera que a falta de estrutura no local, especialmente a falta de comunicação, insumos e equipamentos adequados, dificuldades superadas pelo empenho e pela qualidade da equipe, poderia ter comprometido o sucesso da ação. Além disso, alerta para a emergência de novas epidemias por doenças como o sarampo: “Tanto a Funai como a Sesai devem estar preparadas para novos contatos, eventualmente com grupos maiores, que possivelmente ocorrerão a partir desse e poderão, inclusive, acontecer em curto espaço de tempo”, escreveu Rodrigues. Ele acredita que o episódio de contaminação por conta do contato, intensamente noticiado pela imprensa, pode representar uma mudança importante na forma como são realizadas as ações de proteção a povos em isolamento voluntário e de recente contato.
A preocupação com a ocorrência de epidemias é fruto também da inexistência de planos de contingência para reduzir danos em situações de contato com grupos de isolados e surtos de doenças em grupos de recente contato. Em 2013, Rodrigues fez uma consultoria para a Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA) , em que sistematizou todas as referências e ameaças a isolados, apresentando propostas.
Encaminhado à Funai e ao Ministério da Saúde, o relatório informa que na Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) não havia, até aquele momento qualquer orientação ou norma técnica referente à assistência à saúde aos grupos de recente contato e que eles estavam sob a responsabilidade dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEI) cujos territórios sanitários incluem diversas aldeias. “Não existem equipes de referência especialmente dedicadas a esses grupos, à exceção dos Zo’é, no Estado do Pará, ligados ao DSEI Guamá-Tocantins”, diz o relatório.
A discussão sobre a atenção à saúde de isolados estava paralisada desde que Arthur Chioro assumiu o Ministério da Saúde, no início deste ano. Foi retomada agora por conta do contato com os isolados do Xinane. Uma reunião de pactuação entre Funai e Ministério da Saúde, realizada em 21 de julho passado, assumiu o compromisso de discutir uma portaria interministerial para a definição e implementação desses planos de contingência (Saiba mais).
Confira a entrevista realizada por Tatiane Klein
ISA – O sr. foi convidado pela Funai e pelo Ministério da Saúde para realizar ações de saúde no contato com os Isolados do Xinane. Como foi?
Douglas Rodrigues – O primeiro contato desse grupo foi com os Ashaninka na Aldeia Simpatia [TI Kampa e Isolados do Envira], que é a última aldeia subindo o Envira, a partir de Feijó (AC). Esse grupo de isolados já estava mapeado pela Funai desde 2006. O [José Carlos] Meirelles fala desse pessoal de longa data. Então eles desceram. São índios de mata, não têm canoa nem nada, vieram pelo mato, fizeram uma balsa de algodoeiro em um determinado momento e apareceram numa praia, um pouco acima da Aldeia. Nessa época de rio baixo, é bastante comum que grupos de isolados rondem essa aldeia Ashaninka para coletar alguma coisa – um terçadinho, uma panela que “dá sopa”. Aí eles tinham feito esse contato. Os Ashaninka avisaram a Funai que foi para lá, porque a base da Frente de Proteção Etnoambiental do Xinane está desativada desde 2011 e opera a partir de Feijó.
ISA – Quando ocorreu a infecção por gripe?
DR – Eles fizeram esse contato e sumiram. Dali uns dias aparecem de novo [na aldeia]. Aí o pessoal da Funai já estava lá, conversando com os Ashaninka. Eles acabaram levando umas panelas, tomaram uma caiçuma [bebida fermentada tradicional] com o Ashaninka e ali houve o contágio por gripe, pelo que eu pude perceber. Isso foi lá pelo dia 29 de junho. Eles já tinham aparecido no final do dia 16, fizeram umas incursões na aldeia, levaram algumas coisas, os Ashaninka foram atrás deles. Eles só reapareceram no dia 29 e aí sim interagiram..
ISA – Quantos eram?
DR – Eram quatro rapazes, que depois, no final, eram sete: cinco rapazes – tinha até um garotinho de catorze anos – e duas moças. Eram possivelmente dois casais sem filhos, bem jovenzinhos, e dois rapazinhos acompanhando. Eles reapareceram e alguém percebeu que tinham tosse – que é um primeiro sinal de contágio Eu fui para lá no dia 6 [de julho]. Eles haviam aparecido pela última vez uns dois dias antes e tinham relatado existência de tosse. Chegando na aldeia, os índios não estavam mais lá , na Aldeia Simpatia, os Ashaninka estavam entre assustados e muito interessados nessa coisa do contato. Aí nos reunimos e houve uma decisão de sairmos atrás dos indígenas. (Veja o mapa).
ISA – Quem foi nesse grupo?
DR – Saí eu mais o pessoal da Frente de Proteção – os indigenistas da Funai –, dois mateiros que conhecem bem a região e dois tradutores Jaminawa. Ao que tudo indica, são de um subgrupo Jaminawa chamado Chitonawa, da família linguística Pano. Eles se entenderam com mais facilidade, por exemplo, do que a tradutora, que falava Wajãpi, quando fui no contato dos Zo'é. O fato é que a gente saiu atrás, passamos o dia, batemos o igarapé, vendo rastros, mas não os achamos. Chegamos no Xinane à noite e dormimos lá. Ficaram dois sertanistas e o pessoal do Distrito Especial de Saúde Indígena na Aldeia Simpatia, porque o pessoal da Sesai não foi autorizado a subir, e os índios foram na aldeia de novo. E a gente procurando eles no rio ... Parece que a rapaziada ficou assustadíssima, o médico que estava lá percebeu que eles estavam com febre, não conseguiu examiná-los, tentou dar remédio, mas eles foram embora.
ISA – Como vocês ficaram sabendo disso?
DR – A gente ficou sabendo disso no Xinane, onde dormimos. Estávamos isolados, sem rádio, sem telefone satelital. Sem nada. Quando a gente estava arrumando as coisas para sair – a gente ia um pouco mais para cima, ver se achava eles perto do Igarapé Xinane, onde ficam as malocas –, o Arthur Meirelles, indigenista, chega de barco e conta que os índios tinham aparecido lá, que tinha dado uma confusão e que [os isolados] tinham ido para o mato. Aí nós descemos e encontramos com eles na praia. Encontramos três rapazes numa praia no Envira. Nós estávamos entre o Xinane e a [aldeia] Simpatia, mas mais perto da Simpatia do que do Xinane. Possivelmente no dia anterior eles tiveram aquela confusão aqui, entraram no mato e aí voltaram para cá. A gente parou, os intérpretes começaram a falar, o pessoal acenou e eles vieram. Estavam realmente febris, aspecto de gripe ou outra infecção respiratória aguda. E aí, com muito cuidado, depois de conversar um pouco conseguimos chegar perto. Aí dei remédio para um, baixou a febre, e o outro achou bom, já quis tomar. E conseguimos convencê-los a pegar o resto do grupo, que estava na mata, para a gente ir para a base Xinane.
ISA – Qual era o objetivo de levá-los para a base?
DR – Eram dois objetivos. O primeiro era tratá-los, para que não morressem; segundo, segurá-los o tempo suficiente para que quando eles retornassem não contagiassem as pessoas do grupo maior – que também não sabemos se existe, porque um sobrevoo feito em 2012 não localizou as referências de isolados iniciais, só suas capoeiras. Pode ter acontecido de tudo aqui: eles mudaram de aldeia ou até pode ser o que restou de um ataque dos narcotraficantes ou madeireiros, por exemplo. A gente não conseguiu identificar isso, mas é uma possibilidade. Então, a gente subiu para o Xinane e a base estava muito ruim, abandonada, mas os mateiros logo deram jeito. Pegaram partes de uma casa, passaram para a outra, e ali ficamos, então, do final do dia 7, início do dia 8, até o dia 12 – quando já estavam há três dias sem febre e eu já tinha tranquilidade para liberá-los, porque uma pessoa doente pode transmitir a infecção respiratória até dois dias após cessar a febre.
ISA – Qual era a situação epidemiológica desses índios no momento do contato?
DR – Clinicamente não era um quadro de gripe, mas por ser um quadro de infecção respiratória aguda (IRA), eles tinham sibilos pulmonares, roncos. Há acúmulo de catarro que pode infeccionar e virar pneumonia. A pneumonia não tem jeito: pegou, se não tomar antibiótico, a mortalidade é altíssima. Eu levei dois tipos de antibióticos: um oral e um injetável, mas não precisamos usá-los. Dois estavam com conjuntivitite, uma menina e um rapaz. A menina, chamada Tosku, estava com uma conjuntivite importante, com os olhos fechados, e foi a última pessoa de que eu consegui chegar perto. O marido não deixava e ela tinha medo. Mas aí acho que o quadro acabou se agravando, deixaram que eu manipulasse e depois de muita lavagem, ela começou a melhorar. Ali foi o momento de ganhar a confiança. O antibiótico que eu costumo levar, a azitromicina, serve tanto para uma bactéria que pode causar as formas mais comuns de pneumonia, mas também é bom para tracoma, bastante comum entre os índios na Amazônia. E o tracoma se manifesta de formas diferentes, dependendo dos hábitos higiênicos e o contágio é pelo contato. Ela pode ter pego isso dos Ashaninka, e não ter passado isso para o grupo, mas pode ser que seja algo que tenha lá. Os Hüpda, do Rio Negro, por exemplo, todos têm e seis tiveram cegueira até o ano em que eu os acompanhei.
ISA – Quando eles foram liberados?
DR – Ficamos mais alguns dias com eles no Xinane, alguns ainda tinham resquícios de tosse, porque a tosse fica mesmo. Eles [estavam] doidos para ir embora. Lá pelo terceiro, quarto dia, eles estavam já bem melhores e resolveram ir caçar e trouxeram, jabuti, jacutinga, macaco. A gente estava o tempo inteiro preocupado, porque não tinha nada para dar [de comer]. E eles já conheciam gripe, possivelmente. Porque um dos rapazes, o mais ruinzinho, ficava em uma cantoria que o Almírio Jaminawa [um dos tradutores] traduzia como: “Eu vou morrer. Eu cheguei perto dos outros, peguei a doença dos outros, e agora eu vou morrer. Essa doença do catarro”. E é possível, porque eles tinham uma carabina que não foi dos Ashaninka que eles pegaram. Tanto os Mashco Piro quanto os Chitonawa têm uma época em que vão perambular e, para além da coleta tradicional, também estão coletando coisas de branco.
ISA – A equipe já conseguiu referências sobre o restante do grupo?
DR – Os tradutores conseguiram levantar 13 nomes do que seriam cabeças de famílias. Seriam pelo menos 50 ou 60 pessoas. Ao mesmo tempo, eles também contaram que foram atacados por tiros e que botaram fogo em suas malocas. Mas aí foram embora, prometendo que, dentro de uma lua, vão voltar com o resto do pessoal.