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O Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC) consolidou as regras que possibilitaram a criação e consolidação de UCs em todo o país. Esse sistema, que completa 20 anos, está sob intenso ataque em 2020. Desmatamento, grilagem, desregulamentação legal e falta de fiscalização ameaçam as florestas e ecossistemas que deveriam estar sob proteção do Estado. Atualmente há 329 unidades de conservação federais no Brasil, sendo que 145 localizam-se na Amazônia legal, veja esse e outros recortes aqui. Consideradas as demais instâncias - estadual e municipal, incluindo reservas particulares - o MMA aponta a existência de 2446 unidades de conservação no país.
Os dados do Prodes do ano passado já indicavam um aumento expressivo do desmatamento decorrente de discursos e medidas do governo Bolsonaro e de políticos bolsonaristas, o que foi apelidado de “efeito Bolsonaro”. O Prodes é o programa do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) que calcula a taxa anual oficial do desmatamento na Amazônia. Este ano, dados preliminares de outro sistema do Inpe, de Detecção de Desmatamento em Tempo Real (Deter), mostram que o processo de destruição se intensificou. Durante o período de agosto de 2019 a julho de 2020, 149 UCs apresentaram alertas de desmatamento e degradação na Amazônia legal, totalizando 190.883 hectares, o equivalente a 190 mil campos de futebol. Os alertas envolvem desmatamento, degradação, mineração e exploração madeireira. Mais da metade das UCs afetadas (53%) são estaduais e o restante é de áreas federais.
Analisado o número de UCs mais impactadas pelos alertas de desmatamento por grupo de manejo, 76% são unidades de uso sustentável e 24% de proteção integral. As áreas de proteção integral são aquelas com uso bem restrito dos recursos naturais, como os parques nacionais. As de uso sustentável permitem o uso parcial desses recursos, a exemplo da exploração florestal. As categorias que mais sofreram desmatamento são as Resex (22,5%) seguidas pelas Flonas (18,5%) e APAs (11,3%). Em extensão de área desmatada, os alertas se concentraram especialmente nas unidades de uso sustentável, representando 93% do desmatamento na Amazônia Legal.
Dentre as 149 UCs que apresentaram alertas de desmatamento e degradação entre 2019 e 2020, 41 (29,2%) delas localizam-se no Pará e outras 42 (28,5%) no Amazonas. Quando comparamos as 20 unidades com mais alertas do sistema Deter entre 2019 e 2020, 16 já constavam entre as mais desmatadas entre 2018 e 2019 pelo sistema Prodes, ou seja, um indicativo de uma dinâmica persistente de desmatamento e invasão territorial. Treze delas localizam-se no Pará e cinco em Rondônia.
No Pará, as UCs mais afetadas concentram-se nos municípios de Altamira, São Félix do Xingu, Novo Progresso, Itaituba e Trairão, todos sob influência da rodovia BR-163 (Cuiabá-Santarém), que já compõe uma fronteira regional de desmatamento há algum tempo. Altamira já teve quase 28% de seu território desmatado e São Félix do Xingu, Novo Progresso, Itaituba e Trairão, 74%, 31,3%, 32,1% e 13,2%, respectivamente, conforme dados do Prodes 2019. Há anos essa região vem sendo palco de atividades ilegais e expropriação de patrimônio público, como roubo de madeira, grilagem de terras públicas e garimpo.
Muito dessa destruição é reflexo direto de discursos e medidas políticas, indicando uma correlação positiva entre o discurso de incentivo à ilegalidade e desmantelamento das políticas e órgãos - incluindo reestruturações promovidas nas instituições federais responsáveis pela gestão das unidades de conservação (ICMBio) e da fiscalização ambiental (Ibama) feitas pelo atual governo - e do aumento das pressões no chão. A pressão é alta, especialmente em contexto de pandemia, em que o impacto sobre os povos tradicionais é ainda mais drástico. Os povos da floresta, já historicamente pressionados e marginalizados, ficam mais uma vez vulneráveis e sofrem com os impactos negativos da pandemia e da negligência do Estado. Acesse detalhes sobre a vulnerabilidade ao novo coronavírus enfrentada pelas populações que residem nas unidades de conservação do país.
As medidas de desmonte das políticas de gestão das UCs envolvem menções de assédio e perseguição de servidores, nomeação de caráter político em detrimento de perfis técnicos, baixa execução orçamentária, fragilização ou anulação de práticas de sucesso. Esses órgãos são responsáveis pela concepção e operacionalização da fiscalização, que levou à diminuição histórica do desmatamento e desmobilização da logística de redes criminosas. Ainda, em maio de 2019, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, já anunciava o intuito de revisar todas as UCs federais, argumentando que sua criação não havia respeitado critérios técnicos satisfatórios. O plano estratégico do Conselho Nacional da Amazônia Legal revelado pela imprensa, na semana passada, traz igualmente entre suas diretrizes a revisão de áreas protegidas, como UCs e Terras Indígenas.
Desde a primeira estrutura proposta para o MMA pelo governo Bolsonaro, em 2019, houve o esvaziamento da capacidade do Ministério em formular e conduzir políticas. Embora a reestruturação de ministérios seja uma prerrogativa do poder executivo, ela deve almejar a eficiência e estar em concordância com as funções da estrutura pública e atribuições dos órgãos envolvidos e garantir uma atuação administrativa eficiente. Em setembro, passou a vigorar a segunda estrutura proposta pelo atual governo para o MMA, que aumentou a concentração de poder na pasta, criando instâncias que assumem atribuições do ICMBio, e remanejou cargos entre MMA e Ministério da Economia. Os remanejamentos envolvem permuta entre cargos exclusivos de servidores efetivos e cargos que também podem ser ocupados por quem vem de fora do serviço público, permitindo um maior aparelhamento de indicados sem nenhuma experiência na área ambiental.
Em outubro, foi criado um Grupo de Trabalho para avaliar fusão de ICMBio e IBAMA. A associação dos servidores da área ambiental federal, a Ascema Nacional, denunciou o fato do colegiado ser composto por policiais militares e indicados políticos ligados à bancada ruralista sem conhecimento da temática ambiental e que tais ações enfraquecem e deslegitimam os órgãos de Meio Ambiente. A exemplo do que já ocorreu no Ibama e ICMBio, nesta semana, o MMA tornou pública sua agenda para revisão e a consolidação dos atos normativos no âmbito do Ministério, conforme disposto no Decreto nº 10.139/2019.
Outra intensa pressão que atingiu as UCs foram as queimadas. Os alertas de queimadas detectados pelo DETER registraram, entre janeiro de 2019 a setembro de 2020, 54 UCs (25 federais e 29 estaduais) impactadas pelas queimadas, totalizando 136.098 hectares destruídos. O ano de 2019 registrou recordes de queimadas: a Amazônia Legal terminou o ano com 129.089 focos de calor, um aumento de 39% em comparação com o ano de 2018. Com dados apenas até 28 de outubro deste ano, o Inpe registrou 135.987 focos de incêndio na região, 25% mais do que o registrado durante o mesmo período de 2019. Enquanto autoridades davam declarações públicas e divulgavam em suas redes que não há queimadas na Amazônia, os meses de setembro e outubro passados apresentavam aumentos de 55% e 85%, respectivamente, nos focos de queimadas em comparação com os mesmos meses de 2019.
A sociedade acompanhou um longo episódio político que teve como foco a atuação do PrevFogo e das brigadas de incêndio, as quais passaram pela suspensão da ação e retorno de todas as brigadas do Ibama para as suas respectivas bases por supostas limitações orçamentárias. Em seguida, o Ministério da Economia informou que remanejaria R$ 60 milhões para o MMA para que as brigadas continuassem suas ações. (https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2020-10/economia-repas...). Neste ano, segundo o Ibama, o Prevfogo contou com 76 brigadas de prevenção e combate a incêndios florestais, entre brigadas indígenas, de assentamentos e quilombolas. Até 14/10, o ICMBio contratou tardiamente um total 1.736 brigadistas para atuarem em 138 UCs. Desde o início do ano, a sociedade civil já vinha alertando que o aumento do desmatamento, que já bateu recorde em 2019, traria intensificação das queimadas na estação seca.
Há ainda a frente de desmonte é a redução de funcionários e de orçamento dos órgãos ambientais. Em suas últimas reestruturações, os órgãos passaram a ter cada vez mais cargos comissionados e menos concursados, ficando mais vulneráveis ao aparelhamento, já que os comissionados são preenchidos por indicação.
Em julho deste ano, o próprio vice-presidente Hamilton Mourão apontava que havia menos de 50% do efetivo no Ibama e ICMBio. O último concurso público para provimento de servidores efetivos realizado pelo ICMBio ocorreu em 2014 e não houve aprovação para provimento de novas vagas até o momento. De acordo com uma consulta realizada pelo ISA via Lei de Acesso à Informação, o número de funcionários permanentes do ICMBio em 2020 é 80% do que era em 2008, ou seja 1.432 servidores. Neste ano, o número de aposentados foi de 696, e nos últimos cinco anos, de 2016 para cá, foram 2.819 aposentados. Além das aposentadorias, transferências, afastamentos e óbitos ocorridos ao longo desses anos no ICMBio, é importante evidenciar também o significativo aumento de volume de trabalho que ocorreu nos últimos anos.
Após a criação do ICMBio, foram criadas mais 47 UCs federais que somaram cerca de 1 milhão de km² ao sistema.
O orçamento desidratado também é outro dado alarmante. Em 2020, segundo o Observatório do Clima, até 31/08 de 2020, o MMA liquidou somente R$ 105.410,00 nas ações orçamentárias “finalísticas” ou 0,4% do total. É um valor ínfimo, inaceitável para um ministério. Entre as ações consideradas, apenas uma passa de 5% na execução: Redução da Vulnerabilidade aos Efeitos da Desertificação, com 6,3% de execução até 16/10, de um valor autorizado de R$ 122.035,00. Em 2019, a execução já havia sido em média 11,1%, um valor considerado muito baixo até pela Controladoria Geral da União.
Segundo o Projeto de Lei Orçamentária Anual 2021 (PLN 28/2020), em comparação realizada pelo ISA a partir dos dados disponível no Sistema Integrado de Planejamento e Orçamento, a previsão de redução orçamentária é ainda mais drástica, o que, somado à tendência de inexecução orçamentária, nos traz um cenário calamitoso. A ação de administração direta do MMA para 2021 possui R$ 159.248.000,00 segundo o PL, uma redução de 50,5% em comparação com 2020, sendo que de 2019 para 2020 a redução já havia sido de 59,9%. No que tange ao Ibama, a diminuição proposta é de 30%, passando para R$ 1.137.671.428,00 em 2021. Para ação de apoio à Criação, Gestão e Implementação das Unidades de Conservação Federais, está prevista uma redução aproximada de 30%, permanecendo aproximadamente R$ 75 milhões em 2021.
Além disso, há R$ 21 milhões condicionados, que dependerão de aprovação de Medida Provisória. Segundo o PLOA, todos os programas finalísticos do MMA e órgãos vinculados apresentam queda em 2021. A ação de Pesquisa e Conservação de Espécies e do Patrimônio Espeleológico também teria uma diminuição de mais de 75%. Segundo dados apresentados por Tiago Almeida, consultor de orçamento e fiscalização financeira da Câmara, em evento virtual da Frente Parlamentar Ambientalista em 28/10, as despesas discricionárias do ICMBio diminuíram mais de 40%, de 2019 para 2021, e, considerado 2020/21, há uma redução de mais de 11%, ou mais de R$ 23 milhões.
Conforme já denunciado pelos servidores em coletiva virtual da Ascema, a Reforma Administrativa proposta pelo governo tende a comprometer ainda mais o papel dos órgãos, pois fazer fiscalização, licenciamento, auditoria ambiental, regulação de agrotóxico sem estabilidade é algo impensável. A atuação dos servidores envolve enfrentamento de madeireiros ilegais, garimpos, fiscalização de agrotóxicos, dentre outros.
Assim, após o SNUC ter contribuído para que o Brasil alcançasse resultados internacionalmente reconhecidos e sem precedentes na destinação de áreas protegidas, redução do desmatamento e reconhecimento dos direitos das populações tradicionais, especialmente entre o período de 2004 a 2012, completa seus 20 anos sob desabamento. A expansão e consolidação das áreas protegidas tem significativas implicações para a proteção da biodiversidade, manutenção de processos ecossistêmicos e mitigação da mudança climática, além de outros atributos indispensáveis para o setor agropecuário, como a disponibilidade e fertilidade dos solos, polinização, controle de pragas e doenças, processos que inclusive evitam a emergência de doenças infecciosas, como a Covid-19. O desmantelamento do SNUC via sucateamento dos órgãos e desestruturação do arcabouço legal compromete a existência de uma sociedade minimamente saudável e soberana.