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O corte de 96% no orçamento do Censo Demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) pode trazer impactos graves para políticas públicas destinadas a indígenas, quilombolas e outros povos e comunidades tradicionais no Brasil.
A redução, definida pela Comissão Mista Orçamentária (CMO) do Congresso Nacional no final de março, deixou somente R$ 71 milhões de um orçamento de R$ 2 bilhões. Com isso, não é possível realizar o levantamento, o que resulta na ausência de dados para a construção e gestão de políticas públicas e para a garantia de direitos das populações.
O último Censo foi realizado em 2010. A pesquisa deve ser feita, no mínimo, a cada dez anos, obrigatoriedade estabelecida pela lei 8.184/1991, mas foi adiada em 2020 devido à pandemia de Covid-19. As informações coletadas e divulgadas no Censo formam a base para a formulação de políticas públicas, além de servirem de parâmetro para o repasse de recursos federais para os municípios e para a identificação de áreas de investimento prioritário, para citar alguns exemplos.
O orçamento inicial definido pelo IBGE para o Censo 2020 totalizava R$ 3,4 bilhões. O governo de Jair Bolsonaro (sem partido) pressionou para que esse valor fosse reduzido para R$ 2 bilhões. O corte de aproximadamente 30% em 2019 já traria prejuízos importantes para a execução do levantamento. Com o valor aprovado pelo Congresso Nacional, a pesquisa se inviabiliza.
“Nós ficamos muito preocupados, porque nunca houve o levantamento situacional das comunidades quilombolas, quantitativo nem qualitativo. A política do atual governo é não valorizar e não visibilizar a população quilombola nesse país”, criticou Antônio João Mendes, representante da Coordenação Nacional das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) no grupo de trabalho criado pelo IBGE para planejar o levantamento dos dados da população quilombola no Censo 2021.
Pela primeira vez, o Censo traria a contagem dos quilombolas. O grupo criado para elaborar o levantamento das comunidades tinha participação da Conaq, da Fundação Cultural Palmares (FCP), do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), do Fundo de Populações das Nações Unidas (UNFPA) e do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.
O IBGE definiu, a partir de informações repassadas pela Fundação Palmares, setores censitários com a presença de territórios quilombolas delimitados oficialmente, seja pelo Incra ou órgãos estaduais de terras, além de comunidades quilombolas cadastradas na Base Territorial do IBGE a partir de diferentes fontes. Os setores censitários são a menor unidade territorial utilizada para a coleta e organização dos dados do Censo. Naqueles que correspondem a territórios quilombolas, o questionário traria perguntas voltadas às características demográficas da população e ao registro de informações sobre as comunidades.
“O direcionamento de recursos para as políticas públicas se dá com a utilização dos dados demográficos. Os povos indígenas foram totalmente prejudicados no plano nacional de vacinação, em que foi subestimada a população indígena”, lembrou Dinaman Tuxá, coordenador executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). "O Censo iria agregar números reais para a aplicação não só do plano nacional de vacinação, mas de toda e qualquer política pública".
Apib e Conaq afirmam que o cálculo oficial de indígenas e quilombolas aptos a receber o imunizante, segundo o Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação contra a Covid-19 do governo federal, subestima essas populações.
Marta Azevedo, ex-presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai) e integrante do Conselho de Gestão Estratégia do Programa Rio Negro do ISA, estima que existam hoje cerca de 1,3 milhão de indígenas no Brasil. No último Censo, foram contabilizados 896,9 mil. “É um governo que não quer deixar transparente as políticas públicas, o planejamento e a avaliação dessas políticas públicas. A transparência é uma pedra fundante da democracia”, considerou.
O Censo de 2010 foi o primeiro a incluir a questão sobre pertencimento étnico-racial indígena no questionário básico. Também foi o primeiro ano em que indígenas puderam declarar sua etnia e as línguas faladas em suas residências. Essas perguntas se mantêm no Censo Demográfico planejado para 2020, adiado para 2021 e agora em situação indefinida. Além disso, várias questões logísticas, como o acesso às comunidades, seriam melhor enfrentadas na edição deste ano, a partir da experiência da última pesquisa.
Para a nova edição do Censo também foram planejadas inovações importantes em relação ao recenseamento da população indígena. “O Censo tinha programado uma nova abordagem para tentar mapear indígenas que estão na cidade, o que sempre foi um desafio”, explicou Tiago Moreira dos Santos, analista de Pesquisa Socioambiental do ISA. Ele participou de reuniões junto ao IBGE para a preparação do novo Censo.
“O projeto do Censo está sendo atacado de muitas maneiras nessa gestão. Não existe uma conscientização global do governo de que é preciso ter estatística, ter Censo e valorizar o IBGE, de que é preciso conhecer para planejar”, avaliou Dione de Oliveira, diretora do Sindicato Nacional dos Trabalhadores do IBGE (ASSIBGE). “A gente precisa ter uma defesa pública do IBGE, que produz informações fundamentais para o conhecimento da realidade e para a possibilidade de gerar alternativas para sair da crise, para acabar com diferenças abissais de renda, de raça, de gênero no país”.