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Covid-19 avança em comunidades indígenas do Rio Negro após aumento do fluxo aldeia-cidade

Viagens são para saque de benefícios sociais em São Gabriel da Cachoeira (AM); nota técnica alerta para ondas de disseminação do novo coronavírus no Noroeste Amazônico
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Passados cerca de três meses do registro dos primeiros casos da Covid-19 em São Gabriel da Cachoeira (AM), os números na região mostram tendência de interiorização da doença. Com cerca de 45 mil habitantes, o município é conhecido por concentrar a maior população indígena do país. Cerca de 26 mil pessoas vivem nas comunidades mais afastadas. Exemplo de que a Covid-19 está atingindo os povos indígenas que vivem mais distantes dos centros urbanos é que, dos 68 casos registrados da doença na terça-feira (11/08), apenas quatro vivem em ambiente urbano, conforme informou a Secretaria Municipal de Saúde de São Gabriel (Semsa).



Especialistas apontam um quadro de incerteza sobre a pandemia no Alto Rio Negro, devido a fatores como desconhecimento sobre o vírus, baixa testagem e insuficiência de dados. Mas reforçam que o aumento do fluxo entre comunidades e ambiente urbano tende a causar aumento de casos nos territórios indígenas.

Na cidade de São Gabriel, o clima é de aparente normalidade: ruas lotadas, comércio cheio, muita gente nos bares e na praia do Rio Negro, com poucas pessoas usando máscaras. O município vinha registrando queda nas internações nas últimas semanas e não há óbitos causados pelo novo coronavírus desde 27 de julho.

Desde 9 de julho a Semsa registrava entre dois e quatro casos de internação. Na terça-feira, esse número passou para sete, havendo ainda dois pacientes transferidos para Manaus. Os casos incluem o das crianças Yanomami que foram transferidas no domingo (9) da comunidade Maiá para o Hospital de Guarnição (HGU), administrado pelo Exército. Três delas testaram positivo, sendo que a quarta repetirá o exame, pois tem poucos dias de sintomas e o pai está com Covid-19. O teste rápido é aplicado normalmente após o oitavo dia da presença de sintomas.

No comparativo dos meses de junho e julho, as comunidades apresentaram alta mais acentuada que o ambiente urbano. Em São Gabriel da Cachoeira, entre 30 de junho e 30 de julho, os casos da Covid-19 tiveram alta de 22%, passando de 2.710 para 3.321. Já no Distrito Sanitário Especial Indígena Yanomami (Dsei Yanomami), a alta foi mais acentuada nesse período: 134%, passando de 151 para 353 casos. No Dsei Alto Rio Negro, houve aumento de 107%, de 344 para 712.

Pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz – Fiocruz Amazônia, Luiza Garnelo aponta que realmente há uma tendência de interiorização dos casos da Covid-19. “Na Amazônia, há um perfil [da pandemia] que tem início pelas cidades grandes, como Manaus, Belém e Macapá, e começa a se espraiar para o interior. Esse modelo de Manaus, que vai para o interior, como uma onda, vemos se replicar nos municípios do interior. A tendência em São Gabriel é que a Covid-19 avance para as áreas rurais, em função do fluxo das pessoas”, disse.

O gestor em saúde coletiva da Secretaria Municipal de Saúde, Angelo Quintanilha analisou que atualmente a situação parece mais controlada na cidade, porém, alertou para o registro de avanço da Covid-19 em comunidades no território indígena onde ainda não havia casos. Ele reforçou que há necessidade de aumentar a testagem, inclusive para a definição de políticas públicas.

Segunda onda

Nota técnica sobre a probabilidade de disseminação da Covid-19 no Noroeste Amazônico, elaborada pelo Instituto Socioambiental (ISA) em conjunto com a Universidade Federal do Amazonas (Ufam), não descarta a possibilidade de um segundo pico de disseminação no Noroeste Amazônico quando consideradas as diferentes dinâmicas sociais e fluxos de circulação entre as localidades rurais e sedes municipais. “Desta maneira, é essencial que os órgãos gestores se mantenham atentos no acompanhamento de novos casos e nas novas demanda de atendimento hospitalar por pacientes com quadros de Síndrome Respiratória Aguda Grave”, afirma a análise.

Até 11 de agosto, segundo levantamento da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), eram 436 casos confirmados e 4 óbitos por Covid-19 na área do Dsei Yanomami, no Amazonas e Roraima. Dos 37 polos-base desse distrito, ao menos 25 (67,6%) registraram casos da doença. No Dsei-ARN – que atende a comunidades em São Gabriel da Cachoeira, Santa Isabel do Rio Negro e Barcelos -, até essa data, eram 927 casos com 12 óbitos. São 25 polos-base, com casos registrados em todos eles.

O presidente da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn), Marivelton Barroso, da etnia Baré, disse que lideranças indígenas apontam que o vírus já chegou a quase todo o território tradicional da região. Mas, de acordo com levantamentos do Dsei-ARN, cerca de 18% das 740 comunidades em sua área de atuação apresentaram casos da Covid-19. Essa discrepância, segundo Barroso, mostra que está faltando realização de testes.



A própria federação, com apoio do ISA e da campanha União Amazônia Viva, fez a doação de 4 mil testes rápidos para os Dseis ARN e Yanomami. No Território Yanomami, a aldeia mais atingida é Maturacá, com 94 casos e duas mortes, até 8 de agosto. Essa comunidade tem a maior população no território Yanomami do Amazonas, com 2.082 moradores.

No Maiá, onde as crianças também estão sendo atingidas, são 18 casos. Mas o número é certamente maior, pois as últimas confirmações ainda não foram contabilizadas. Em 30 de julho, eram 11 casos nessa comunidade. A alta acentuada pode estar ligada ao fato de um grande número de indígenas dessa comunidade ter seguido para São Gabriel no final de julho para sacar benefícios sociais.

Muitos deles ficam em um barracão em área urbana, às margens da BR-307, que não oferece condições adequadas para prevenção à Covid-19. Para amenizar esse problema, a Foirn e Dsei Yanomami tentam organizar, junto às lideranças indígenas, um fluxo das viagens dos Yanomami até a cidade, para evitar que um grande número de pessoas se dirija à cidade ao mesmo tempo. Já no Dsei Alto Rio Negro (Dsei ARN), as comunidades com maior número de casos são Iauaretê (178), seguidas de Massarabi (83), Pari-Cachoeira (63), Taracuá (56), Ilha das Flores (58), conforme levantamento de 8 de agosto.



Cautela

Conforme a pesquisadora Luiza Garnelo, da Fiocruz, uma série de fatores leva à incerteza sobre o momento atual da pandemia, sendo um deles a insuficiência da testagem. “Temos uma quantidade de teste irrisória em escala nacional, mas pior na Amazônia e no interior da Amazônia. Hoje a rotina é testar quem está sintomático apenas, não há testagem ampla da população”, lamentou. Ela explica ainda que o teste rápido, exame que vem sendo mais utilizado para detectar a Covid-19, pode dar falso negativo ou falso positivo. “Tudo isso dificulta muito uma visão clara do que está acontecendo em todos os lugares”, resumiu.

Outra questão é a falta de conhecimento geral sobre a Covid-19, o que resulta em dúvidas até sobre a ocorrência de uma segunda onda da doença. “As notificações no estado do Amazonas caíram. Ampliamos o acesso a testes, mas a gente não tem um crescimento. Tem declínio e ninguém sabe exatamente dizer o motivo, se foi a imunidade de rebanho, se vai ter segunda onda. Estamos no escuro, de fato, enquanto sociedade”, pontuou.

Nesse cenário, a pesquisadora ressalta que é necessário manter precaução e aumentar a vigilância, com ampliação da busca ativa. “A detecção precoce é questão chave na Amazônia, pois lidamos com áreas de difícil acesso”, indicou. “Deve-se ampliar a testagem de forma adequada e consistente. E monitorar os casos. A falta de transparência em relação aos casos prejudica muito”, completa.

A pesquisadora aponta que o levantamento disponibilizado pela Sesai indica um número de casos suspeitos menor que o de confirmados. Essa relação vem causando estranheza entre os especialistas. “Os casos confirmados é que têm que ser muito menor porque não tem testagem massiva no Brasil. Significa que não estão procurando ou não estão enquadrando dentro da vigilância essa questão de suspeitos”, explicou. Até a publicação desta matéria, a Sesai não havia respondido aos questionamentos sobre o número de aplicação de testes na região do Alto Rio Negro.

Conforme levantamento da Sesai de 11 de agosto, em todo o país há 18.404 casos confirmados da Covid-19 entre indígenas aldeados, com 322 óbitos. São 952 casos suspeitos. Já o levantamento da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) aponta para 23.712 casos confirmados e 658 mortes. Esse levantamento leva em conta também indígenas que vivem no ambiente urbano.

Aumento do fluxo aldeia-cidade

Os dois primeiros casos da Covid-19 foram confirmados em São Gabriel da Cachoeira, município brasileiro com maior concentração de população indígena, em 26 de abril. Em 11 de agosto, eram 3.468 casos e 49 óbitos.

Em início de maio, quando ainda tinha 54 casos e 4 óbitos, a prefeitura decretou lockdown, permitindo apenas o funcionamento do comércio essencial. Decreto municipal de 9 de julho flexibilizou de forma acentuada a reabertura do comércio e demais atividades. Nas ruas, o que se vê é um ritmo praticamente de vida normal. Em 30 de junho venceu o decreto que suspendia o trânsito entre comunidades e cidade.

Nesse cenário, há o aumento do fluxo das comunidades para a cidade, elevando o risco de contaminação pelo novo coronavírus. Nesse momento de pandemia, os indígenas têm se dirigido ao ambiente urbano principalmente para sacar benefícios sociais, fazer compras e visitar parentes que moram na cidade.



As filas em frente à casa lotérica da cidade para recebimento do auxílio emergencial vêm sendo um problema durante todo o período de crise sanitária. O Ministério Público Federal (MPF) moveu duas ações exigindo adequações à realidade indígena, pedindo que o prazo para o saque de benefícios se estenda e, além disso, que o pagamento seja feito nas comunidades. O Governo Federal não atendeu às exigências, recebeu multa diária de R$ 100 mil determinada pela Justiça e, ainda assim, não fez as alterações necessárias.

Contaminação

A nota técnica sobre a probabilidade de disseminação da Covid-19 no Noroeste Amazônico, elaborada pelo ISA e Ufam, indica uma série de fatores, além do isolamento e controle de fluxo, que pode interferir na intensidade do ritmo da contaminação pelo novo coronavírus.

Segundo a bióloga Natália Pimenta, analista de pesquisa intercultural do ISA, o estudo projeta quatro cenários de disseminação do vírus em municípios do Alto Rio Negro que variam de acordo com o nível de isolamento social e controle de fluxo entre comunidades e cidades. O resultado do estudo reforça a eficiência das medidas de intervenção no combate ao novo coronavírus: quanto maior o controle da movimentação, menor o risco de contágio, desafogando o sistema de saúde. Natália Pimenta assina o estudo juntamente com Fabricio Baccaro, da Ufam.

O modelo se baseia também na realidade local e inclui até mesmo a frequência de viagens das famílias de acordo com a comunidade onde vive. Essas informações foram compiladas a partir do Levantamento Socioambiental, realizado pelo ISA e pela Foirn em 2016 e 2017, para a elaboração dos Planos de Gestão Territorial e Ambiental (PGTAs).

Assim, o estudo leva em conta as medidas de isolamento, densidade populacional das localidades e frequência de viagens para analisar as probabilidades de contaminação pelo novo coronavírus. “As comunidades dos polos base (dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas) mais próximas do núcleo urbano têm alta probabilidade de contaminação mesmo no cenário onde adotam um isolamento social, já que os moradores dessas localidades têm uma grande frequência de viagem, muito maior do que em outras comunidades afastadas. É um padrão que a gente já esperava”, exemplificou a bióloga.

A análise mais ampla possibilita maior clareza sobre os fatores que influenciam a curva de contágio dependendo da comunidade. Dessa forma, a nota técnica pode amparar tomada de decisões pelo poder público que vão além das medidas de isolamento podendo indicar, por exemplo, em quais pontos reforçar a estrutura da saúde.

Ana Amélia Hamdan
ISA
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