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Quilombolas do Piauí e do Tocantins se mobilizaram para realizar, por conta própria, o Cadastro Ambiental Rural (CAR) de suas comunidades. A decisão foi tomada coletivamente em resposta à lentidão do Estado brasileiro em garantir o acesso ao CAR e ao desrespeito à relação das comunidades com o território, que levava ao cadastramento dos territórios coletivos no Sistema Nacional do CAR (Sicar) seguindo a lógica de imóveis privados.
Comunidades tradicionais têm o direito, por lei, de obter apoio do poder público na realização do cadastro. O registro no Sicar é requisito para acesso a políticas públicas, como programas de aquisição de alimentos e crédito rural. De acordo com as lideranças quilombolas envolvidas no trabalho e ouvidas pela reportagem, esse foi o principal incentivo para as comunidades buscarem o cadastramento tanto no Piauí quanto no Tocantins.
Oito anos após criação, Cadastro Ambiental Rural (CAR) ainda viola direitos quilombolas
“As famílias conversavam com a coordenação [quilombola] do estado perguntando o que fazer para realizar o CAR. Como a gente sabe lidar com as ferramentas — GPS, construção de mapas, cartografia básica etc — e tem o conhecimento das necessidades dos quilombos, começamos a fazer o CAR pelos quilombolas”, explicou Francisco das Chagas Sousa, membro da Coordenação Estadual das Comunidades Quilombolas do Piauí (Cecoq/PI) e da Coordenação Nacional das Comunidades Rurais Quilombolas (Conaq).
O trabalho de cadastramento próprio no Piauí foi iniciado em 2016, a partir de diálogos do movimento estadual com as comunidades do semiárido. Até o final de 2017, haviam sido feitos 20 CAR de quilombos, todos de forma coletiva e por equipes compostas por técnicos quilombolas. No estado, há 160 comunidades em processo de titulação. A Cecoq e a Conaq conseguiram fechar, no começo de 2018, um termo de cooperação técnica com o governo do estado para que a Secretaria de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Semar) realizasse o restante dos cadastros.
Chagas contou que o processo de cadastro das 20 comunidades do semiárido “foi digno de um filme”. O movimento estadual bancou os equipamentos e o transporte para as comunidades, muitas de difícil acesso, além de contratar do próprio bolso os técnicos para realizar o trabalho. Em alguns casos, eles precisaram deixar o carro e seguir para as comunidades na garupa de motos, pois não era possível avançar. As comunidades apoiaram com a alimentação e a acolhida dos técnicos quilombolas no trabalho de campo, ajudando também em muitos casos nos custos do transporte.
Segundo Nilson José dos Santos, técnico quilombola responsável pelo mapeamento dos territórios para lançamento no Sicar, as equipes visitaram diversas vezes as comunidades antes de começar o trabalho de fato. Mesmo após a etapa de explicações, os profissionais retornaram aos territórios a cada nova dúvida que surgia sobre o preenchimento do CAR.
Alcindo Patrício, membro da Coordenação Estadual das Comunidades Quilombolas do Tocantins (Coeqto), destacou que outro incentivo para a regularização fundiária é o fato de estarem em uma região com muita pressão de fazendeiros e grandes proprietários rurais. A preocupação das comunidades em garantir que seus territórios estejam registrados no sistema, não só o de fazendeiros, em alguns casos dentro dos territórios tradicionais, estimulou o cadastro.
Segundo Milene Maia, assessora do Instituto Socioambiental (ISA), “a compreensão das comunidades do uso e ocupação do território é pautada pela relação de conservação dos recursos naturais, por meio do manejo e práticas tradicionais e não pelo uso indiscriminado, como é feito na maioria dos demais imóveis”. Ela ressaltou a necessidade de garantir um CAR de acordo com os direitos de Povos e Comunidades Tradicionais, seguindo normas como a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), e preceitos como autodeterminação, autoidentificação e pluralismo jurídico.
Maia também lembrou da parceria entre o Grupo Ambientalista da Bahia (Gambá) e quilombos do recôncavo baiano para a implementação do CAR, que ocorreu de forma participativa com as comunidades. “Isso demonstra a importância de parcerias entre o movimento quilombola e organizações da sociedade civil para efetivar o CAR quando os governos não apoiam, de forma efetiva e ampla, a implementação do CAR Quilombola”, concluiu.
Um dos principais pontos da discussão nos dois estados foi a diferença entre o CAR individual, focando apenas nos imóveis rurais de cada família, e o coletivo, que abrange a área total da comunidade e é compartilhado por todas as famílias residentes. “É importante debater e discutir o CAR coletivo, [exaltar] seu objetivo da unificação, do fortalecimento para a luta e todo o histórico”, considerou Chagas.
Alcindo Patrício relatou que a Secretaria do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Semarh) do Tocantins começou a fazer o CAR das comunidades na modalidade individual. Diante da situação, a Coeqto se articulou para reunir os recursos e fazer o cadastro coletivo dos territórios, também por técnicos quilombolas e dialogando com as comunidades.
“A gente não tinha nenhuma proposta do estado para fazer o CAR do jeito que teria que ser feito, coletivo. Quando teve o recurso, a gente começou a fazer em parceria com as comunidades”, explicou Patrício. Os técnicos da coordenação estadual foram a campo discutir o processo e mapear as comunidades. Com os dados em mãos, enviaram à Semarh para inserção no sistema estadual.
Uma das dificuldades foi a falta de adaptação do sistema estadual à realidade dos territórios tradicionais. A Semarh, num primeiro momento, inseriu as comunidades como imóveis individuais e, após protesto da Coeqto, teve de adaptar o sistema estadual para permitir a inclusão como territórios coletivos, a exemplo do modelo federal, do Serviço Florestal Brasileiro.
As adaptações no sistema estadual devem estar finalizadas no final de fevereiro. A Coeqto conseguiu realizar 15 cadastros entre 2018 e 2019 e planeja finalizar os cadastros dos 16 territórios quilombolas restantes no estado até o final deste ano, seguindo as medidas de segurança para evitar a disseminação do coronavírus.
As experiências nos dois estados foram destaque na oficina Confluências de Saberes sobre o CAR Quilombola, realizada pela Conaq em parceria com o ISA e o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM) no final de janeiro. Mais de 60 representantes de comunidades quilombolas, do poder público e de organizações da sociedade civil participaram. A oficina ressaltou o protagonismo dos quilombolas e o interesse do poder público em conhecer melhor as especificidades dos territórios quilombolas.
Assista ao #CasaFloresta19: Chega de invisibilidade quilombola!
Além disso, para apoiar a discussão sobre o CAR das comunidades quilombolas e o trabalho na prática, foi produzido o Guia de Orientações para Inscrição, Análise e Validação do CAR em Território Quilombola e o Relatório Técnico do Guia. O guia teve apoio do Observatório do Código Florestal (OCF).
O CAR é o principal instrumento do Código Florestal (lei nº 12.651/12) e consiste em um registro eletrônico obrigatório para imóveis rurais no Brasil. Ele integra informações georreferenciadas com o objetivo de viabilizar a regularização ambiental e garantir, entre outras questões, o controle e monitoramento do desmatamento. No CAR, se faz o registro das áreas desmatadas, da Reserva Legal (RL), das Áreas Preservação Permanente (APPs), das áreas de Uso Consolidado, das de Uso Restrito e das que devem ser ambientalmente recuperadas.