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A terceira entrevista da série que resgata a discussão sobre os direitos territoriais indígenas no texto da Constituição traz os comentários de mais dois constituintes: o deputado federal e atual ministro do Meio Ambiente, José Sarney Filho (PV-MA), e a senadora Lídice da Mata (PSB-BA). Eles reafirmam que os direitos indígenas não podem ser limitados por um “marco temporal”, conforme defende a tese ruralista de que somente as comunidades que estivessem na posse de suas terras na data de promulgação da Constituição (5/10/1988) teriam direito a elas.
Os dois parlamentares também avaliam que os ataques a esses direitos, aos de populações tradicionais, assentados de reforma agrária e de todos os brasileiros ao meio ambiente equilibrado representam uma afronta à democracia.
A primeira entrevista da série foi publicada, no final de dezembro, com dois ex-presidentes – FHC e Lula – e com a ex-senadora e ex-ministra do Meio Ambiente Marina Silva. A segunda foi publicada em janeiro, com os constituintes José Carlos Sabóia, Fabio Feldmann e Luís Carlos Sigmaringa Seixas.
Ministro Sarney Filho
ISA- Como foi o debate sobre o capítulo dos índios na Constituição?
SF- Após duas décadas de autoritarismo, o Brasil clamava pelo pleno estabelecimento dos direitos sociais, tanto individuais como coletivos. E a Assembleia Constituinte refletia esse clamor, que vinha do conjunto da sociedade. As forças retrógradas, é lógico, continuavam presentes, mas havia uma compreensão comum de que precisávamos avançar.
Os índios foram muito atuantes no Congresso durante a elaboração da Constituição e tiveram uma grande conquista. O artigo 231 selou um pacto social de resgate da dignidade indígena, com o amplo reconhecimento dos direitos culturais, como povo tradicional, e, muito especialmente, o reconhecimento do direito à terra ancestral.
ISA – Houve intenção dos constituintes em estabelecer um limite temporal à vigência dos direitos territoriais dos índios?
SF – A Constituição é inequívoca ao determinar o direito dos índios à posse das terras que tradicionalmente ocupam, sem qualquer referência a limite temporal. A inexistência de tal referência, por si só, demonstra que não houve intenção de limitar a vigência dos direitos. Tanto é assim que o parágrafo 1º do artigo 231, que define o que são terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, elenca aquelas “por eles habitadas em caráter permanente” como uma dentre outras definições válidas. Os discursos e as posições discriminatórias sempre existiram, mas, naquele momento, a intenção era de estabelecer um direito pleno.
ISA – Como o Sr. vê o aumento das reações à oficialização de terras indígenas, quilombos, unidades de conservação e assentamentos da reforma agrária? Como concluir o resgate histórico dos direitos das populações indígenas e tradicionais no atual contexto?
SF – Sou deputado e tenho um profundo respeito pelo parlamento. Lamento, porém, o fato de termos hoje um grupo muito forte que enxerga as necessidades socioambientais como entraves à produção e ao desenvolvimento. Em alguns casos, isso tem um teor ideológico, decorrente de um preconceito muito arraigado. Pensam: tudo o que é bom para os índios, os quilombolas, os assentados e o meio ambiente representa uma ameaça. A aprovação da PEC [Proposta de Emenda à Constituição] 215 e de outros projetos que retiram direitos socioambientais seria um retrocesso histórico enorme.
Temos de continuar lutando para mostrar que a produção depende do equilíbrio ambiental. Se a Amazônia continuar a ser devastada e perder sua capacidade de produzir os “rios voadores” que fornecem a água de que necessita o agronegócio, a maior parte do PIB do país ficará comprometida. Isso para usar um argumento que atinge a lógica capitalista, pois o equilíbrio é desejável por definição. E os indígenas, quando bem estabelecidos em suas terras, são importantes provedores desse equilíbrio, prestando serviços ecossistêmicos, preservando as matas, as águas, os animais. São os verdadeiros guardiões do meio ambiente.
ISA – Como foi o debate sobre o capítulo dos índios na Constituição?
LM – Podemos dizer que foi um debate muito complexo e, em alguns momentos, tenso, por tratar de questões econômicas contrárias a interesses de mineradoras, políticos, setores militares, madeireiras e latifundiários. O foco das tensões tinha como pano de fundo as riquezas do subsolo e a própria demarcação das terras. O debate resultou na instalação da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito que tinha o propósito de investigar o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), a partir de denúncias publicadas na imprensa, mas o que acabou sendo revelado foi que havia o interesse das mineradoras no uso do subsolo das terras indígenas. Vale ressaltar a permanente mobilização e a presença das populações indígenas e suas lideranças no Congresso, sem dúvida, determinante na aprovação do capitulo do índio.
ISA – Houve intenção dos constituintes em estabelecer um limite temporal à vigência dos direitos territoriais dos índios?
LM – Acredito que não. Se tivesse havido, o próprio capítulo teria expressado tal preocupação com "limites temporais", o que não ocorreu.
ISA – Como vê o aumento das reações à oficialização de terras indígenas, quilombos, unidades de conservação e assentamentos da reforma agrária? Como concluir o resgate histórico dos direitos das populações tradicionais e indígenas no atual contexto político?
LM – Vejo com muita preocupação esse incremento na oposição à efetivação de direitos constitucionais relacionados à justiça fundiária em nosso país. Tal oposição configura uma ameaça à própria democracia no Brasil. Não haverá democracia sem direitos humanos respeitados. O direito à terra e o cumprimento de sua função social são essenciais à plenitude dos direitos humanos fundamentais e à democracia. O mesmo se aplica à conservação ambiental. No âmbito internacional, há crescente consenso sobre essas questões. Não há país desenvolvido que não tenha assegurado direitos claros, inclusive territoriais, às suas minorias étnicas, e que não tenha estabelecido políticas firmes de conservação ambiental. O Brasil nada ganha em negar direitos fundiários aos povos indígenas e quilombolas e ao se contrapor aos clamores de justiça no campo. Ao contrário, perde bastante. Perde mais à medida que também declina de realizar uma política de conservação ambiental efetiva.
O contexto atual, neste começo de 2017, caracteriza-se por um fortalecimento político das posições conservadoras tradicionais, vinculadas à exclusão, à negação de direitos aos mais pobres e à predação ilimitada dos recursos naturais. No entanto, consideramos possível resistir aos retrocessos, já que medidas de exceção e de desmonte de avanços não contam com apoio popular, mesmo entre setores que apoiaram a ascensão dos ideais direitistas. Podemos acreditar que a denúncia e a mobilização da sociedade em torno dessas ameaças surtirão efeito e barrarão os retrocessos almejados pelas forças reacionárias.