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Um ataque incomum na Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau (RO) tirou a vida de um dos maiores sertanistas brasileiros, Rieli Franciscato, em setembro de 2020. A flechada que atingiu Rieli foi disparada por um indígena isolado que habita o território. Na classificação da Fundação Nacional do Índio (Funai), um registro confirmado, comprovado por expedições e documentação.
O episódio não é costumeiro e sinaliza para uma situação limite dentro da floresta. É difícil saber o que acontece na mata fechada. Mas especialistas afirmam que a flecha não era para Franciscato, defensor dos povos indígenas há mais de 30 anos. E sim consequência de um conflito, possivelmente deflagrado pelo processo de invasão que ocorre na TI
Na região da Linha 6 da TI Uru-Eu-Wau-Wau, três garimpeiros ilegais foram vistos deixando a mata alguns dias antes, segundo relato de moradores.
“Ao que tudo indica, os isolados estavam em clima de guerra, de revide”, comentou Fabrício Amorim, que colaborou como consultor ad hoc da Comissão Nacional de Direitos Humanos (CNDH), e que esteve no local onde Franciscato morreu apurando as circunstâncias exatas. “Muita invasão, altos índices de desmatamento. Quando se trata de isolados, as circunstâncias são quase sempre muito invisíveis. Possivelmente eles devem estar muito pressionados dentro da TI”, diz.
Ele destaca que o ataque foi em uma área tensa, com muitas denúncias de invasão. Durante a pandemia, entre março e novembro, a terra indígena já registrou 286 hectares desmatados, segundo levantamento do Instituto Socioambiental (ISA).
A vistoria feita por Amorim foi um pedido do Ministério Público Federal, que queria ter informações imparciais sobre a área. Amorim reforça a tese de que os indígenas estão ameaçados dentro da floresta e, por isso, agiram com violência no episódio. Segundo ele, Rieli Franciscato não tinha intenção de adentrar a floresta para uma expedição, e fazia apenas uma vistoria rápida nas bordas da floresta, no início da TI, quando foi atingido.
Um episódio similar aconteceu em meados do ano na Terra Indígena Araribóia (MA). Um indígena guajajara, povo de contato antigo que habita o território, foi flechado por um isolado Awá Guajá. A flecha quebrou a clavícula do indígena, que foi levado ao hospital e sobreviveu.
Segundo o grupo Guardiões da Floresta, composto por indígenas guajajara que protegem seu próprio território de invasões, essa flechada também foi resultado de um cenário tenso dessa floresta. “Mesmo com o compartilhamento intenso do território, com os Awá e os Guajajara caçando um do lado do outro, nunca aconteceu algo do tipo”, afirma Carlos Travassos, assessor técnico dos Guardiões da Floresta.
A área tradicionalmente ocupada pelos isolados Awá Guajá foi palco de invasões de madeireiros cerca de um mês antes do episódio, no final de abril. Os invasores chegaram a romper barreiras sanitárias instaladas pelos Guajajara por conta da Covid-19, e entraram em conflito com os guardiões. Estes, ao final, conseguiram expulsá-los, mas o estrago já estava feito.
Segundo Travassos, os Guardiões da Floresta relacionam o ataque dos isolados com as invasões dos madeireiros. É possível que, assim como na Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau, tenha ocorrido algum episódio de violência dentro da mata, deixando os isolados em alerta. “Os Awá se aproximaram da aldeia guajajara (desabitada) porque a região deles não estava tranquila”, explica Travassos. Na Araribóia, foram 292 hectares desmatados de março a novembro, nos meses da pandemia, segundo monitoramento do ISA.
Abaixo, uma animação produzida pelo ISA mostra um panorama das principais ameaças que pairam sobre os povos indígenas isolados na Amazônia.
A falta de fiscalização e o desmonte das políticas ambientais fez crescer o desmatamento e as invasões em Terras Indígenass, inclusive naquelas com a presença de povos isolados. A pandemia não parou esse processo, pelo contrário: a "boiada'' do ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles, que reduziu a proteção ambiental e medidas da própria Funai, aumentou a pressão sobre territórios.
Monitoramento do ISA em 15 TIs com registro da presença de povos isolados indica que, apenas em novembro, 48 hectares foram desmatados na TI Uru-Eu-Wau-Wau.
Na região norte da TI há um conflito histórico num assentamento chamado Burareiro, instalado pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) na década de 1980. Além disso, há uma quadrilha de grileiros que atuam roubando e vendendo terras públicas, e que já foi flagrada em operações da Polícia Federal. Junto com as invasões, vem a violência. Em abril deste ano, Ari Uru-Eu-Wau-Wau foi brutalmente assassinado em conflito com grileiros.
Na TI Piripkura, onde vivem os dois últimos indígenas da etnia Piripkura, a situação piora a cada mês. Em novembro, foram 456 hectares derrubados. Uma enorme área desmatada vem crescendo desde julho e já destruiu 1.113 hectares de floresta.
O território, que garante o modo de vida dos indígenas Tamandua e Baita, agora tem uma grande clareira em seu interior. É possível que a derrubada esteja relacionada a uma Instrução Normativa da Funai e a um projeto de lei que tramita na Assembleia Legislativa do Mato Grosso que libera a regularização fundiária para propriedades irregulares em TIs que não foram homologadas.Ou seja, onde o processo de demarcação ainda está inconcluso. É o caso da TI Piripkura, delimitada por uma Portaria da Funai.
Também há uma mudança nas condições ambientais e climáticas locais, decorrentes do desmatamento e dos incêndios florestais, que promovem aquecimento global, ressecamento da floresta e dificultam ainda mais a vida dos isolados. Em 2020, a região da TI Uru-Eu-Wau-Wau atravessou uma seca histórica de 90 dias. O clima árido impulsionou as queimadas, que atingiram uma porção do território de perambulação/ocupação dos isolados. Dados da Agência Espacial Americana (Nasa) e apurados pelo ISA indicam 4.185 hectares de floresta queimados entre agosto e setembro apenas nesta área.
Além disso, as invasões limitaram a área de floresta onde eles podem circular. Roberto Ossak, da Comissão Pastoral da Terra de Rondônia (CPT), que participou de algumas expedições na área com o próprio Rieli, acredita que essa combinação pode ter levado os isolados a andar mais perto das bordas do território em busca de recursos. Isso porque, segundo ele, a oferta de recursos naturais se reduziu no centro da TI nos últimos anos.
Segundo Ossak, esse cenário pode explicar as aparições cada vez mais frequentes de isolados deste grupo. Em junho de 2020, por exemplo, um grupo de isolados apareceu próximo à casa de uma moradora, deixou um pedaço de carne e pegou uma galinha e um machado. Rieli Franciscato descreveu como uma aparição normal, em busca de ferramentas.
Duas equipes da Funai foram até a área para tranquilizar e apaziguar os moradores, com o intuito de evitar conflitos entre os sitiantes e os indígenas. Outro trabalho importante é o de conscientização dos moradores sobre como agir nessas aparições. Depois deste episódio, Franciscato participou de uma expedição na mata para monitorar esse grupo de isolados. A grande preocupação, na época, era evitar que os indígenas fossem contaminados pelo novo coronavírus ao se aproximar de sitiantes ou moradores das cercanias, ou mesmo pegar uma ferramenta que estivesse contaminada com o vírus.
O grupo de isolados que apareceu em junho tinha cerca de 15 pessoas, segundo relatos de moradores, e contava com a presença de idosos e crianças. Provavelmente, um grupo diferente do que flechou Franciscato em setembro. Esse grupo, chamado de Uraparaquara, e identificado como “isolados do Cautário” pela Funai, é um grupo grande, com mais de cem pessoas.
A estimativa é baseada nos rastros que eles deixam na floresta após suas migrações, onde o grupo todo sai andando junto deixando “pegadas” na floresta porque cutucam as árvores para pegar mel, coletar frutas etc. Franciscato acreditava ser um grupo nômade, que circula por toda a extensão sul da Terra Indígena. Durante a seca, permanecem na bacia do rio Cautário, onde há mais recursos.
O Ministério Público Federal apura a situação dos isolados na TI. Recomenda que a Funai prepare, com urgência, um plano de contingência para a área, ações de fiscalização, reforço de recursos humanos, e a reabertura da Base de Proteção Etnoambiental do Cautário. A base fica em um local estratégico dentro da terra indígena, mas está inativa devido à falta de recursos humanos para trabalhar lá. Ainda, as barreiras sanitárias previstas no plano de enfrentamento da Covid19 (objeto da ADPF 709) ainda não foram implementadas
A Funai afirma que disponibilizou três equipes para a área, uma fixa na base de proteção, e outras duas circulando pelo entorno para fiscalização e conscientização dos moradores.
Na TI Araribóia, o cenário de deterioração é ainda mais drástico. Mesmo com a atuação constante dos Guardiões da Floresta, o território é palco de invasões. Além disso, o roubo de madeira ano após ano gerou um processo de degradação ambiental. Uma floresta mais pobre, com menos árvores, menor diversidade, mais ressecada e propensa a incêndios. Estudo do ISA em parceria com Joint Research Centre, da Comissão Europeia, mostra que 38% da floresta está comprometida pela degradação.
Outro ponto é que tributários importantes dos rios que passam pela TI Araribóia ficaram fora da demarcação do território. Os tributários são os rios que abastecem os rios principais. O resultado é que muitas nascentes acabaram sendo desmatadas e virando açudes de fazendeiros, grandes poços artesianos onde os bois bebem água. Esse processo assorea as nascentes. A consequência é que os rios na TI Araribóia estão secos. “Existe uma dificuldade de se obter água corrente, o que assusta os especialistas que vão fazer expedição no mato”, comenta Travassos. Os Awá Guajá, entretanto, tem suas próprias técnicas de conseguir água de cacimbas e raízes e sobrevivem, num modo de vida cada vez mais árido.
Para Travassos, além de paralisar a exploração de madeira dentro do território, seria necessário investir na manutenção e recuperação das florestas nessas áreas de cabeceira para poder reconstituir o ecossistema como um todo. “Os assentamentos estabelecidos no entorno da TI foram vendidos e acabaram se tornando grandes fazendas”, explica.
Segundo o último boletim do ISA, o desmatamento na TI Araribóia arrefeceu em novembro. Segundo Travassos, isso é fruto do trabalho dos Guardiões da Floresta, que fazem expedições ao longo de todo o limite da terra indígena. Mesmo assim, 24 hectares foram desmatados em novembro. Durante a pandemia, entre março a novembro, a TI já acumulou 292 hectares em desmatamentos.
Outro território que acendeu um alerta para especialistas é a Terra Indígena Vale do Javari (AM), que tem maior número de registros de isolados. São ao todo 16 registros, 10 confirmados e seis em estudo.
Historicamente, o território é palco de invasões de garimpeiros, caçadores e pescadores ilegais. Em março, a União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja) se manifestou a respeito do aumento de grupo de missionários religiosos no território . A Covid-19 chega nesse contexto, trazendo ainda mais temor.
No Vale do Javari, indígenas com contato regular com populações não- indígenas compartilham o território com grupos em isolamento. Segundo o Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei) local já foram registrados 729 casos da doença entre indígenas contatados da região.
Entre dezembro de 2018 e outubro de 2019, a Base Ituí-Itaquaí da Frente de Proteção Etnoambiental Vale do Javari da Funai foi atacada oito vezes a tiros por invasores. Em 6 de setembro de 2019, o servidor da Funai Maxciel Pereira dos Santos foi assassinado a tiros em Tabatinga (AM), suspeita-se que, possivelmente, em retaliação a ações de fiscalização que vinham sendo realizadas pelo órgão para coibir atividades ilegais na TI Vale do Javari.
A ação dos invasores se articula à rede de comércio de pescado, carnes de caça e quelônios da tríplice fronteira Brasil-Peru-Colômbia. Além disso, a atuação de garimpeiros têm colocado em risco os Kanamari, os Tyohom Dyapa, de recente contato, e grupos isolados. Cerca de 300 balsas de garimpo operam na região habitada por esses povos.
Em outra região, na beira do rio Itaquaí, caçadores e pescadores ilegais esperam o cair da noite para agir. Pescam pirarucu, capturam tracajás e animais de caça como anta, caititu e queixada. Outras espécies também são alvos dos pescadores, como o tambaqui, pacu e filhotes de aruanã (comercializado como peixe ornamental). Em janeiro de 2017, uma atividade de fiscalização conjunta da Funai e Polícia Militar apreendeu 700 quelônios e 150 kg de pirarucu em três canoas, além de seis espingardas. Em setembro de 2018, em outra atividade realizada no rio Itaquaí, foram apreendidas em uma única canoa 389 tracajás e oito tartarugas.
Na região do rio Ituí, isolados têm se aproximado de aldeias Marubo. O risco é enorme porque há muitos Marubo contaminados pela Covid-19. Em julho de 2020, a Organização das Aldeias Marubo do Rio Ituí (Oami) alertou novamente a Funai e a Procuradoria da República em Tabatinga sobre a aproximação de isolados à uma de suas aldeias. O documento destaca os riscos para estes indígenas, as reiteradas comunicações feitas pelos Marubo à Funai sobre essa situação e a urgência para que sejam tomadas medidas efetivas para sua proteção.
Cita, ainda, a contaminação da população das 19 aldeias no rio Ituí por Covid-19 (mais de 200 casos, segundo o documento), a falta de transparência do Distrito Sanitário Especial Indígena Vale do Javari (DSEI-VJ/Sesai) sobre a quantidade de testes aplicados e casos confirmados, a presença de invasores no período de desova de quelônios e a falta de ações de fiscalização por parte da Base Ituí-Itaquaí da Funai – mesmo contando com apoio da Força de Segurança Nacional.
A região compreendida pelo médio rio Javari e médio e baixo Curuçá, habitada pelos Kanamari, Matsés, Marubo e isolados, é uma das mais vulneráveis às invasões de pescadores e caçadores da Terra Indígena Vale do Javari. As invasões ocorrem ao longo de todo o ano e em todos os lagos utilizados pelos indígenas nesta região. Os invasores buscam o piracuru, quelônios, e animais de caça. O pirarucu é o que tem mais valor.
A vulnerabilidade dos povos indígenas isolados já era um fator de muita preocupação antes da pandemia da Covid-19. “As ações do atual governo federal, tais como a baixa execução orçamentária dos órgãos indigenistas e de combate ao desmatamento, as alterações nas normas infralegais, a completa paralisação dos processos de demarcação de terras indígenas, e principalmente a falta de diálogo com as organizações indígenas, indicam que está em curso um desmonte das políticas e legislações jamais visto”, afirma Antonio Oviedo, pesquisador do ISA. Tal cenário tem se agravado pelo avanço da Covid-19 nas terras indígenas na Amazônia, especialmente naquelas onde vivem povos indígenas isolados.
“Uma ação efetiva do Estado brasileiro para a proteção dos povos isolados deveria ser pautada pelo que está escrito na Constituição Federal de 1988 e pelo fortalecimento dos mecanismos de gestão das políticas públicas de proteção desses grupos isolados. Nesse sentido, é urgente que o Estado brasileiro avance na demarcação e extrusão de invasores desses territórios, reforce a fiscalização ambiental e o funcionamento das Frentes e Bases de Proteção”, complementa.
*Informações obtidas a partir de relatório de Conrado Octavo, com dados do Centro de Trabalho Indigenista (CTI), em cooperação entre ISA e CTI