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Estamos juntos com nossos parceiros indígenas do Rio Negro na luta contra a malária

Em editorial, o Instituto Socioambiental expressa preocupação com a explosão da doença na região e com a situação de emergência em que se encontra São Gabriel da Cachoeira, e informa como está se mobilizando ao lado de outras instituições para buscar soluções para o problema
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No dia 19 de maio noticiamos que São Gabriel da Cachoeira (AM), conhecido como o município mais indígena do Brasil, lidera o ranking nacional de casos de malária em 2018. E o que é mais grave: houve um aumento de 3.550% em relação a 2017 da forma mais letal da doença, a malária Falciparum, registrando 1.314 casos de janeiro a abril deste ano. A situação alarmante foi denunciada ao Brasil pela Folha de S. Paulo, em reportagem publicada pelo correspondente para a Amazônia, Fabiano Maisonnave, no dia 3 de maio. Ele estava em São Gabriel da Cachoeira a convite do ISA para a reinauguração da Maloca de Itacoatiara e da Casa da Pimenta Canadá, no Rio Ayari, quando o município decretou estado de emergência para receber atenção de outras esferas públicas, uma vez que a situação da doença havia fugido do controle da Saúde municipal.

Somos parceiros dos povos indígenas do Rio Negro há mais de 20 anos, mantendo uma sede e equipe residente em São Gabriel. O ISA está extremamente preocupado com a epidemia de malária na região e, por isso, vem se mobilizando com outras instituições locais, como a Foirn (Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro), a Marinha, o Exército e o Ifam (Instituto Federal do Amazonas) na operação de emergência comandada pela Fundação de Vigilância em Saúde (FVS) do Estado do Amazonas. Acompanhamos as reuniões semanais na sala de comando e controle da operação, onde são divulgados os boletins epidemiológicos e passadas orientações de como a comunidade e as instituições podem colaborar no combate à epidemia. Neste aspecto, parabenizamos a equipe da FVS pela rápida e competente ação implantada no município, que resultou em um diagnóstico e um plano de trabalho com recomendações a serem seguidas pela Saúde Municipal.

Imediatamente, destinamos nossos esforços à comunicação do problema, engajando a Rede de Comunicadores Indígenas do Rio Negro, composta por 18 jovens indígenas em um trabalho desenvolvido pelo ISA com a Foirn, para a realização de uma campanha de conscientização da população. "A luta contra a malária é de todos nós" foi produzida pelos comunicadores da Rede junto com a equipe da FVS e distribuída via áudio de whatsAPP, rádios AM e FM, além da rede de radiofonia que leva informação às comunidades mais distantes nas Terras Indígenas, fora da área urbana. Áudios gravados nas línguas indígenas co-oficiais (Baniwa, Nheengatu, Tukano e Yanomami) também estão sendo produzidos pelos comunicadores. Antes dessa operação educativa e informativa, a população de São Gabriel da Cachoeira não tinha ideia de que enfrentava uma epidemia grave da doença.

FVS aponta falhas no diagnóstico, prevenção e combate

A malária é uma doença endêmica em toda a Amazônia. Nesta região o serviço de saúde já dispõe, há muito, das informações e recursos necessários para enfrentar o problema. As equipes atuam principalmente no diagnóstico e tratamento dos pacientes e em ações de controle dos mosquitos, entre outras ações também importantes como educação em saúde e pesquisa. Normalmente estas medidas são suficientes para manter o número de casos sob controle e evitar explosões como a que se verifica hoje em São Gabriel da Cachoeira. Ao que tudo indica, os recursos necessários não estavam disponíveis em São Gabriel onde a malária explodiu, prejudicando a detecção do problema e a oportuna resposta do serviço de saúde.

O diagnóstico elaborado pela FVS apontou falhas sérias no combate à malária no município. Nas seis supervisões realizadas pela equipe às Unidades Básicas de Saúde (UBS), foram verificadas condições críticas tanto na parte laboratorial no controle dos mosquitos; materiais, expediente e limpeza insuficientes; microscópios e outros equipamentos precisando de limpeza e manutenção; funcionários sobrecarregados; inadequada conservação de medicamentos antimaláricos; Unidades Básicas de Saúde funcionando com horário reduzido em locais de alto risco; ações de controle de mosquitos realizadas sem avaliação entomológica; carros e motos paradas por falta de manutenção.

Em relação aos casos de malária Falciparum, a FVS identificou "falta de monitoramento" dos casos e estabeleceu na operação um fluxograma para controle diário das ocorrências. Com pouco pessoal atuando, falta de qualificação dos profissionais e gestão ineficiente, o Sistema de Informação de Vigilância Epidemiológica (Sivep), do Ministério da Saúde, também não vinha sendo notificado adequadamente. Faltavam dados sobre os casos, assim como informações demográficas no cadastro de localidades.

Na cidade, risco de contaminação é alto

Alguns especialistas relacionam também o aumento da malária nas Terras Indígenas da Bacia do Rio Negro com a vinda das pessoas à cidade e o fluxo cada vez mais intenso entre área urbana e floresta. Um exemplo dessa situação, já alertada pelo ISA há quatro anos, ocorre com os povos de recente contato, como os Hupdah, Yuhupdeh e Yanomami. Famílias inteiras percorrem longas distâncias para sacar benefícios sociais (como Bolsa Família, auxílio maternidade e aposentadoria) e acabam retornando doentes aos seus territórios. Não existe estrutura adequada para receber essas populações em São Gabriel e muitos acampam em áreas de alto risco de contaminação, como o Parauari. A localidade registra o maior número de casos de malária em todo o município, com 624 ocorrências, das quais 200 de Falciparum, segundo o último boletim epidemiológico da FVS, de 25/5.

O ISA visitou neste sábado (26/5) a rua Dagoberto Pinder, no bairro Tiago Montalvo, onde a FVS apontou o maior registro de casos de malária em São Gabriel. A rua é um retrato do crescimento desordenado do município. Não existe fornecimento de água, a coleta de lixo é precária e não há calçamento na via. Os moradores coletam água da chuva para tomar banho e cozinhar e muitos dizem que já "perderam as contas de quantas malárias tiveram". Na Dagoberto Pinder, praticamente todos os moradores são indígenas e muitos não estavam informados da gravidade da situação e da importância de seguir o tratamento corretamente. Uma moradora da etnia Arapaso, que está construindo sua casa na rua para morar com o marido e seus seis filhos, diz temer pegar malária, doença que nunca contraiu morando na sua comunidade de origem, na Terra Indígena Alto Rio Negro, no Alto Uaupés. A família se mudou para a cidade para que os filhos possam ter acesso a uma melhor educação, segundo a nova moradora.

A expansão desordenada do município salta aos olhos, com novos ramais e bairros indo em direção à floresta e avançando junto a igarapés, sem qualquer planejamento urbano ou infraestrutura. Na época de chuva como agora, as ruas de terra ficam completamente alagadas e as poças acumulam água junto às residências que são construídas sem fiscalização e controle. O IBGE aponta que apenas 11% do município possui esgotamento sanitário adequado e a urbanização de vias públicas abrange somente 5,8% da área.

Controle insuficiente contribui para a explosão da doença

As deficiências das ações de controle certamente contribuíram para a explosão da doença, mas não explicam a dimensão do problema. Também é bastante conhecida a relação entre a ocupação de novas áreas de floresta e o aumento dos casos de malária, conforme verificado em várias regiões da Amazônia ao longo do tempo. Nestas áreas de floresta recentemente derrubadas as populações do mosquito tendem a aumentar, beneficiando-se da maior disponibilidade de sangue para a produção de ovos. Além disso também encontram um maior número de pessoas carregando o parasita no sangue, o que aumenta a transmissão para outras pessoas.

É preciso considerar que na última década a população do município de São Gabriel passou a se deslocar com mais frequência para a sede, em busca de serviços de saúde, educação e benefícios sociais. São Gabriel foi um dos municípios que mais cresceu no Censo/2010, e continuou crescendo em ritmo acelerado nos últimos anos. A maior parte dessa nova população se estabeleceu em ruas abertas recentemente sob áreas de floresta na periferia da cidade, em estreito contato com o vetor da doença, e sem o serviço de controle de mosquitos funcionando devidamente, nem os serviços de diagnóstico e tratamento. Somados todos estes fatores, foram dadas as condições para a explosão da malária no município.

Tanques de piscicultura precisam ser detalhadamente avaliados

Foi também mencionado o problema de tanques de piscicultura abandonados ou mal conservados no município, que acabam sendo foco de malária. A FVS identificou 220 tanques na área urbana e periurbana de São Gabriel, pertencentes a proprietários particulares. A Fundação orientou a Secretaria Municipal de Meio Ambiente a identificar esses criadouros e fazer um trabalho de fiscalização e limpeza. O próximo passo, segundo a FVS, é acionar a Vigilância Sanitária para multar quem se negue a colaborar com os trabalhos de manejo e limpeza dos locais. Alguns desses tanques inativos, inclusive, deverão ser aterrados pela Secretaria Municipal de Obras.

A reportagem divulgada no último dia 24 pelo portal G1 Amazonas sobre a piscicultura em São Gabriel da Cachoeira como colaboradora para o aumento da malária, focou os tanques implantados pelo ISA no distrito de Iauaretê, na Terra Indígena Alto Rio Negro, entre 2001 e 2004, onde a epidemia não é tão grave quanto na sede municipal. Diferente de tanques artesanais, feitos sem consultoria especializada, os 31 tanques apoiados pelo ISA no distrito contaram com a formação de indígenas para serem técnicos de piscicultura e fazerem a manutenção dos espaços. As estações também contam com um sistema de drenagem para evitar que a água parada vire foco de mosquito. Desde 2008, os tanques que o ISA ajudou a desenvolver para garantir a segurança alimentar diante da escassez de peixe na região, são administrados pelos próprios indígenas.

Vale ressaltar que tanques de piscicultura estão amplamente distribuídos por toda a Amazônia sem produzir explosão nos casos de malária. E no caso de São Gabriel há informações que são mais de mil tanques de piscicultura, que deveriam ser avaliados um a um para a melhor compreensão do seu papel nesta crise de saúde.

Malária tem relação direta com fatores socioambientais

Lamentavelmente, a reportagem do G1 Amazonas deixou de assinalar informações essenciais sobre o problema da malária em São Gabriel, deixando de informar aspectos levantados pela Fundação de Vigilância em Saúde fundamentais ao entendimento justo do tema. Nos próximos dias, o ISA irá a Iauaretê para verificar as condições dos tanques administrados pelas comunidades oriundos do projeto de piscicultura desenvolvido pelo Instituto até 2006. Ratificamos que como parceiros dos povos indígenas do Rio Negro, estamos juntos na luta contra essa epidemia. O ISA continuará acompanhando as ações de combate à malária no Alto Rio Negro.

Por fim, acreditamos que a malária é um problema de saúde diretamente relacionado aos fatores socioambientais. Em um momento de retração de investimentos públicos, de ataque aos direitos humanos e ambientais, não surpreende a escalada da doença nas regiões mais longínquas e, normalmente, negligenciadas pelo Estado. A malária aumentou em 50% em 2017 em relação a 2016 em todo o Brasil, chegando a 194 mil casos, 99% deles na Amazônia. Em matéria publicada pela BBC sobre o aumento da doença no Brasil, o epidemiologista e professor da Universidade Nacional de Brasília, Pedro Tauil, afirmou: "A malária atinge uma população rural, que tem pouca capacidade de reivindicação política. Dengue, zika, chikungunya atingem população urbana, que reivindica mais. Então, houve a troca de um pelo outro (nas políticas públicas)", afirmou o especialista.

A crise da malária em São Gabriel é uma situação complexa que não deve ser tratada como um caso isolado em um município em particular, mas como um sinal da falência do serviço de saúde pública em toda a região. Levando em conta a complexidade do problema, seu enfrentamento deveria envolver também outras instâncias governamentais, além do serviço de saúde, e mobilizar amplamente as comunidades afetadas e a sociedade civil como um todo.

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