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Eram sete e meia da ensolarada manhã da última sexta-feira, 22 de agosto, quando os primeiros participantes do seminário e da feira de troca de sementes e mudas do Vale do Ribeira começaram a chegar à Praça Nossa Senhora da Guia, na pacata cidade de Eldorado, e a lotar o salão paroquial.
Agricultores familiares, pesquisadores e acadêmicos, estudantes da USP, da Unesp, da Universidade Federal de São Carlos (UFscar), de escola técnicas de agricultura, do Centro Paula Souza (escola tradicional de ensino técnico de São Paulo), representantes de órgãos do governo estadual e federal como o Itesp (Instituto de Terras do Estado de S. Paulo), Fundação Florestal e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), movimentos coletivos de agroecologia, movimento negro, representantes de índios guarani M’bya da região, e coletores que participam da Rede de Sementes do Xingu (que o ISA ajudou a fundar e da qual participa) vindos de Mato Grosso e do Parque Indígena do Xingu, foram recebidos com um café da manhã especial. Preparado por um time de senhoras cozinheiras, os bolos de roda, as cucas, os biscoitos e pães caseiros variados, feitos com ingredientes das roças, encantaram os participantes. Na mesa também não faltaram as bananas orgânicas cultivadas nos quilombos.
Depois do café, começou o seminário intitulado Sementes: Soberania alimentar, cultura e geração de renda, com a participação de mais de 200 pessoas, surpreendendo e superando as expectativas dos organizadores. Já a feira, no dia seguinte, também para surpresa dos organizadores, registrou cerca de 400 pessoas entre participantes e moradores da cidade(veja quadro no final do texto).
A coordenadora do Programa Vale do Ribeira do ISA, Raquel Pasinato, fez a abertura ao lado do prefeito da cidade, Eduardo Fouquet, de Pedro Jochelevich, da Associação Biodinâmica e representante da V Feira Estadual de Sementes e dos representantes do GT Roça, que organiza a feira, Vandir Rodrigues da Silva, do quilombo de Ivaporunduva e Aurico Dias, do quilombo São Pedro. O GT Roça é o grupo que reúne as associações quilombolas, o Instituto Socioambiental, o Itesp (Instituto de Terras do Estado de São Paulo), a Eaacone (Equipe de Articulação e Assessoria às Comunidades Negras do Vale do Ribeira) e a Fundação Florestal. Raquel Pasinato destacou o crescimento do evento ao longo desses sete anos e sua importância para o Vale do Ribeira, para a agricultura familiar e para a valorização da agrobiodiversidade. “Não existe uma única forma de conhecimento. Há, sim uma diversidade de conhecimentos que precisa ser valorizada”, enfatizou.
Respeito à cultura alimentar e à diversidade da produção tradicional
No momento em que chegavam ao evento, os participantes escolhiam participar de uma das quatro oficinas temáticas que compunham o seminário: gastronomia, armazenagem de sementes, políticas públicas de aquisição de sementes, mudas e alimentos, e juventude e agricultura. Durante toda a manhã os debates nas oficinas giraram em torno dos avanços, dificuldades, desafios e da formulação de propostas.
Houve um intervalo para o almoço e em seguida os grupos continuaram trabalhando ate ás 15h30, sistematizando as principais recomendações, que no final da tarde seriam apresentadas na reunião plenária para que os grupos conhecessem as conclusões de todos.
Antes da plenária, a promotora de Justiça do Distrito Federal e sócia-fundadora do ISA, Juliana Santilli, especialista em Agrobiodiversidade e direitos de agricultores tradicionais, falou a todos sobre a questão das sementes e da soberania alimentar no Brasil. Abordou aspectos da legislação de sementes e destacou o respeito que se deve ter com a cultura alimentar e a diversidade de produção das comunidades tradicionais. (Veja aqui a apresentação da promotora.)
Demanda por capacitação para operacionalizar os programas foi destaque
Na plenária, os grupos apresentaram suas recomendações. No grupo que debateu políticas públicas de aquisição de sementes e de comercialização de produtos, a burocracia para a prestação de contas e a falta de capacitação, especialmente das prefeituras, foram algumas das dificuldades apontadas. Entre as conclusões e recomendações destacaram-se: priorizar as Unidades de Conservação de uso sustentável para os planos de manejo, e indicar nesses documentos o território que produz é livre de transgênicos; demarcar e regularizar os territórios; adequar a legislação ambiental à realidade dos pequenos produtores; envolver mais as prefeituras da região no Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e no Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae); descentralizar a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab); aumentar as possibilidades de comercialização de produtos nos mercados institucionais; estabelecer no PAA Sementes tratamento diferenciado para as sementes crioulas em relação às outras, com menos burocracia e fortalecer a produção em rede com estímulos ao agricultor.
Uma carta com reivindicações a ser encaminhada à Comissão Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (CNAPO) foi apresentada pelo grupo e aprovada pela plenária. (Leia aqui a carta na íntegra). O grupo concluiu também que é preciso provocar órgãos do governo, como o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), para que coloquem o PAA e o Pnae em suas agendas.
Uma das sugestões para sensibilizar as prefeituras foi feita pelo representante do Incra-SP, Edgard Moura, de se realizar oficinas sobre o PAA e o Pnae só com gestores municipais do Vale do Ribeira. Edgard anunciou que em setembro está programada uma oficina só sobre comercialização de produtos quilombolas.
Comercialização de produtos esbarra em exigências sanitárias
O segundo grupo a se apresentar foi o de gastronomia. Formado por mulheres quilombolas e representantes do movimento slow food e movimentos agroecológicos, o grupo preparou pratos típicos como frango caipira com raiz de taioba e ensinou técnicas antigas de preparo, que são passadas de geração para geração, como a defumação de carnes e peixes, a conservação da carne de porco na banha, a socagem do arroz no pilão, resgatando aquilo que é tradicional nas comunidades.
Também não faltaram relatos de dificuldades na comercialização de produtos porque os quilombolas não têm condições de atender à exigências sanitárias e também da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária). E emocionaram a plateia ao apresentar um cartaz com algumas frases que surgiram durante a oficina e que demonstram a importância de preservar essa culinária diretamente relacionada com o cultivo das roças: “É um trabalho muito duro, às vezes não temos nenhum tostão, mas comida nunca falta”. O grupo também ressaltou a agrofloresta como alternativa de enriquecimento das roças e da agricultura familiar.
Grupo defende a criação de banco de sementes
Já o grupo que debateu o armazenamento de sementes contou com o relato de experiências da Bionatur, cooperativa de produção de sementes formada por assentados da reforma agrária ligados ao MST; da Rede de Sementes do Xingu que reúne 350 coletores de sementes florestais formada por indígenas, agricultores familiares e viveiristas espalhados por 21 municípios de Mato Grosso; e a Kokopeli Brasil, associação sem fins lucrativos de origem francesa que se dedica a preservação e a reprodução das sementes. Os quilombolas do Vale do Ribeira também compartilharam suas experiências com os outros participantes e os palestrantes.
A discussão que se seguiu aliou a organização de bancos de sementes juntamente com iniciativas de comercialização. A tônica da conversa foi a defesa da criação de bancos de sementes e a valorização das sementes crioulas para a segurança alimentar e como fonte renda. Os participantes enfatizaram que muitas sementes importantes já se perderam ou estão se perdendo pela falta de um banco que as armazene e reproduza. Os debates contribuíram para que as comunidades quilombolas conhecessem e avaliassem algumas experiências e refletissem sobre como estruturar uma solução específica para isso.
Por fim, os integrantes do grupo que tratou de Juventude e Agricultura chamaram a atenção para a questão da identidade e da dificuldade em manter os jovens no campo. Eles têm vergonha de admitir na escola, por exemplo, que são agricultores, porque isso é motivo de chacota entre os colegas. Para o grupo, essa identidade tem de ser trabalhada com os jovens mostrando a eles que só existem pessoas nas cidades porque há gente no campo produzindo alimentos. E os participantes do grupo questionaram: Que ofertas existem para que os jovens se fixem no campo? Que políticas públicas de estímulo existem para que os jovens lá permaneçam? Um dos participantes fez questão de lembrar que nem todos têm de pegar na enxada. Que as atividades na agricultura comportam outras habilidades, administrativas por exemplo, que podem auxiliar na prestação de contas, na elaboração de projetos que captem recursos. De acordo com o grupo, se houver alternativa de geração de renda, os jovens ficam. Uma sugestão foi a de que se leve para o campo as atividades de lazer que eles encontram na cidade.
Tari Kaiabi, indígena do Parque do Xingu e coletor da Rede de Sementes do Xingu, que fazia parte desse grupo, identificou-se com tudo o que ouviu. “As dificuldades que vocês têm nós também enfrentamos”, disse. “Nossa agricultura também está passando por isso e os jovens não querem ficar nas nossas aldeias”.
Calcula-se que de 70% a 80% da comida que vai para a mesa dos brasileiros vem da pequena agricultura. Os grandes agricultores estão mais voltados para exportação, caso da produção de soja e do milho. O fortalecimento e a valorização do trabalho na roça, é bom ressaltar, é primordial para as comunidades quilombolas tanto para a segurança alimentar das famílias quanto para a manutenção das tradições culturais, pois é a base de sua organização sociocultural.
A praça foi pequena para tanta gente
No sábado, 23, um dos lados da Praça Nossa Senhora da Guia amanheceu cheio de tendas brancas que abrigavam bancadas com os mais variados tipos de sementes, mudas, produtos derivados delas, como colares e comestíveis - caso da pimenta e do mel dos índios do Xingu, das ostras do quilombo de Mandira, em Cananeia, da farinha de jatobá, de mandioca, bolos de roda e o doce de baru, que a dona Vera, coletora da Rede do Xingu, levou e oferecia sorrindo a quem parasse na banca da Rede. Sem falar dos chips de banana, dos biscoitinhos amanteigados e de muitas guloseimas em exposição que os cerca 400 visitantes que lotaram a praça experimentaram, compraram e levaram para casa.
A prática da troca de sementes e mudas em feiras de agricultura familiar vem resgatando variedades que alguns agricultores haviam perdido e tem contribuído para garantir a segurança alimentar das comunidades tradicionais. A VII Feira de Troca de Sementes e Mudas do Vale do Ribeira comprova isso. À esta edição juntou-se também a V Feira Estadual de Trocas de Sementes Crioulas.
Enquanto alguns dos visitantes se detinham nas barraquinhas, observando e conhecendo plantas e raízes, outros assistiam a jogos de capoeira, organizados pelo professor Leléco, da Associação Desportiva Cultural de Capoeira de Eldorado (Adecc). Além dos jovens capoeiristas, um grupo de indígenas Guarani M’bya da região Aldeia Takuari, em Eldorado, apresentou danças e cantos rituais e os quilombolas de Sapatu mostraram a tradicional dança da Nhá Maruca.
A VII Feira de Trocas de Sementes e Mudas das Comunidades Quilombolas do Vale do Ribeira também é uma das ações do projeto “Sistema Agrícola Quilombola: soberania alimentar, cultura e geração de renda”, realizado pelo programa Vale do Ribeira do ISA em 18 quilombos da região, com o patrocínio da Petrobras.
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carta_de_eldorado_ago_2014.pdf | 22.44 KB |