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“À meia-noite, mais ou menos todo final de semana, vem um caminhão. Eu vi esse caminhão que passou com madeira dentro da nossa terra. Não tem área do kuben ali”, conta Mokrãn Xikrin, se referindo às invasões e retirada de madeira, em especial de castanheiras, na Terra Indígena (TI) Trincheira Bacajá, no Pará. Da aldeia Krenkro, os Xikrin já conseguem ouvir o barulho de motosserras, dos tratores avançando sobre seu território e vêem a fumaça do desmatamento em áreas próximas às aldeias.
Na Terra Indígena vizinha, a TI Apyterewa, os relatos são similares: “cada vez mais estão desmatando a floresta. Tem garimpo, tem muito mais garimpo ilegal”, diz Xakarovara Parakanã, que também alerta para a aproximação dos invasores nas aldeias.
O avanço do desmatamento, grilagem e mineração ilegal colocou as TIs Apyterewa e Trincheira Bacajá no topo do ranking das mais desmatadas na Amazônia em 2019, feito que pode ser superado neste ano, já que somam 1.625 e 780 hectares derrubados entre janeiro e agosto, respectivamente.
Em ambas Terras Indígenas, um fato chama atenção: o desmatamento explodiu após o cancelamento, ainda não justificado, das ações de fiscalização do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), que vinham combatendo com sucesso o desmatamento dentro destas TIs até maio deste ano.
De 3 hectares desmatados em maio na Trincheira Bacajá, o desmatamento pulou para 411 hectares em agosto, um aumento de 12.980%. Já na Apyterewa, o desmatamento aumentou em 393% no mês seguinte à suspensão das operações, e continuou crescendo: entre julho e agosto foram desmatados 1,2 mil hectares, quase três vezes a mais do que o total desmatado entre janeiro e junho. Os dados são do Sirad X, sistema de monitoramento da Rede Xingu +.
Em maio, o governo suspendeu a atuação do Ibama e autorizou a atuação das Forças Armadas, na Garantia da Lei e da Ordem (GLO) para o combate ao desmatamento ilegal e a focos de incêndio na Amazônia Legal. A chamada operação Verde Brasil 2 foi instaurada no dia 11 de maio.
“Mesmo com a presença do Exército, as taxas de desmatamento voltaram a subir após um período de relativa baixa, resultado do trabalho do Ibama”, comenta John Razen, advogado do ISA. Ele lembra que em março e abril de 2020, as TIs Apyterewa e Trincheira Bacajá tiveram redução de 40% e 49%, respectivamente, em relação ao mesmo período de 2019. “A pergunta que fica é: qual a efetividade dessas ações nos territórios?”
Em nota, a assessoria da 23ª Brigada de Infantaria de Selva, responsável pelas TIs Apyterewa e Trincheira Bacajá, afirmou que desde o início da Operação Verde Brasil 2, em 11 de maio, foram realizadas ações contínuas nas áreas. Foram apreendidos, segundo o texto, combustíveis, motosserras, esteiras para separação de minérios, geradores, tratores e uma escavadeira, dentre outros materiais que “comprovadamente, eram utilizados para a prática de delitos ambientais”. Apesar disso, entre maio e agosto o desmatamento associado às invasões ilegais não parou de aumentar tanto nas TIs Apyterewa e Trincheira Bacajá.
Junto com as TIs Apyterewa e Trincheira Bacajá, outras duas áreas contribuíram para o aumento do desmatamento entre Terras Indígenas na bacia do Xingu: A TI Cachoeira Seca e Kayapó. Apenas entre julho e agosto, mais de 3 mil hectares foram desmatados nas TIs da bacia, um aumento de 296% em relação aos dois meses anteriores.
Cerca de 20% da Terra Indígena Apyterewa está sob a inteira posse dos indígenas, em estimativa da Fundação Nacional do Índio (Funai). A região, morada do povo Parakanã, sofre fortes pressões de invasores, desmatamento e mais recentemente, da mineração ilegal. No ano passado, a Apyterewa atingiu o segundo lugar no ranking das TIs mais desmatadas na Amazônia.
Localizada na área de influência da Hidrelétrica de Belo Monte, um plano de proteção territorial, que inclui a retirada dos ocupantes ilegais, deveria ter sido implementado em 2011, antes da instalação da usina.
Na contramão da desintrusão, no entanto, está em curso um processo de grilagem na região. Reportagem da Folha de S. Paulo revelou um esquema pelo qual novos invasores são instalados no interior da TI em lotes vendidos, leiloados ou mesmo doados de forma irregular por redes criminosas. O ponto de apoio logístico é a Vila Renascer, povoado que surgiu em 2016 no interior da TI, exatamente 11 anos após sua homologação.
Fonte: imagens Planet/MapBiomas
“Sem floresta a gente não vive. Estamos lutando há muito tempo contra o desmatamento, invasões e garimpo ilegal na nossa terra. Isso está prejudicando a todos nós, a nossa cultura, a nossa história. Nossos anciãos ficam muito preocupados, como é que nossos filhos e nossos netos vão saber a história do povo Parakanã? Como que, sem a floresta, vamos contar a nossa história?”, contou Xakarovara.
Mais recentemente, o garimpo ilegal se consolidou como um fator de atração para os invasores. Ainda que os primeiros registros da atividade sejam de 1974, desde a homologação da TI, em 2007, não houve mais sinais de mineração. No ano passado, no entanto, foram detectados dois garimpos ativos. Ao todo já foram detectados 174 hectares desmatados para a atividade ilegal.
“Cada vez mais estão desmatando a floresta, tem muito mais garimpo ilegal. A gente pode ficar contaminado com o mercúrio que eles estão usando no garimpo, isso que preocupa também, a nós, o povo Parakanã”, comentou.
As invasões têm se aproximado das aldeias no extremo sudoeste da área, onde é possível visualizar ramais de acesso clandestino à TI Trincheira-Bacajá. É também na TI Apyterewa que se inicia uma estrada ilegal, de aproximadamente 40 quilômetros, reativada e expandida em 2019. Esse ramal corta a TI Arawete Igarapé Ipixuna, dando acesso a TI Trincheira Bacajá.
Ali, o desmatamento detectado entre julho e agosto aumentou sete vezes em relação aos primeiros cinco meses do ano. São ao menos três frentes de invasão ativas, cada vez mais próximas das aldeias. “Esse desmatamento acelerado nessa frente de invasão revela a determinação dos invasores em ocupar e explorar os recursos florestais da TI Trincheira Bacajá”, diz o texto da denúncia feita pela Associação Bebô Xikrin do Bacajá (Abex).
As invasões na TI Trincheira Bacajá não são novidade mas se agravaram no ano passado. Em agosto de 2019, a pressão sobre o território e indígenas chegou no limite quando, por meio de mensagens de áudio, um grupo de 300 invasores ameaçou “caçar” os indígenas. [Saiba mais]
“Os invasores que não respeitam nada estão queimando nossa floresta. Os bichos da floresta estão queimando com ela. Quantos jabotis já foram queimados? Quantas antas já foram queimadas? Quantos tatus já foram queimados? Precisamos fazer isso parar. Precisamos tirar a invasão de nossa terra. Ela é nossa e nós sabemos cuidar dela. Ela é de nossas crianças Nós sabemos respeitar ela”, afirmou Tedjere Xikrin, cacique antigo da aldeia RapKô, um dos epicentros das invasões em 2019. “Estão roubando a floresta, esse nosso conhecimento. Porque fazem isso? Deixem disso!”, continuou.
“A expectativa de regularização das terras griladas é um fator importante na atração de invasores, e se sustenta nos discursos de autoridades públicas que têm se mostrado favoráveis à redução de territórios indígenas, assim como à ineficácia das ações de combate ao desmatamento em curso”, aponta Razen, do ISA.
O pedido da retirada dos invasores da Trincheira Bacajá é uma das medidas emergenciais solicitadas na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) apresentada pela Apib ao Supremo Tribunal Federal (STF), em junho. Esse tipo de ação busca evitar ou reparar dano a algum princípio básico da Constituição fruto de ato ou omissão do Estado. Ainda assim, as atividades ilegais na área continuam. [Saiba mais]
Fonte: imagens Planet/MapBiomas
O acirramento dos conflitos coloca em risco a integridade dos indígenas e potencializa avanço do novo coronavírus no território. Já são ao menos 9 mortes e 1.265 casos na TI Kayapó, 82 na TI Cachoeira Seca e 307 casos e uma morte na TI Trincheira Bacajá, a de Beptok Xikrin, o cacique Onça. Ainda não foram confirmados casos na TI Apyterewa.
É justamente na região sul do território Xikrin, onde as invasões estão cada vez mais próximas das aldeias, onde há o maior índice de contágio. “Os primeiros casos da doença apareceram em uma das aldeias próximas da região da invasão: foram notificados três casos positivos no final do mês de abril”, diz o texto da carta da Associação Bebô Xikrin do Bacajá (Abex). Em agosto, a mesma aldeia já contava com mais de 50 casos, taxa que subiu para 110 em setembro, segundo o Dsei Altamira.
Ainda que a taxa de desmatamento em Unidades de Conservação no Xingu tenha diminuído 17% em relação ao bimestre anterior, os números são assustadores: foram desmatados 9,1 mil hectares no período, o equivalente ao tamanho da cidade de Niterói, no Rio de Janeiro (RJ).
Duas das UCs mais desmatadas, a Floresta Nacional de Altamira e a Reserva Biológica (Rebio) Nascentes da Serra do Cachimbo, estão na zona de influência da Br-163. Na Rebio, Unidade de Proteção Integral, o desmatamento dobrou em relação aos dois meses anteriores, com 800 ha desmatados em apenas dois meses. As grandes áreas abertas revelam processos de invasão e grilagem na região.
Mais ao norte, na Reserva Extrativista Riozinho do Anfrísio, 134 hectares foram desmatados no período, 110% a mais do detectado no bimestre anterior. Roubo de madeira, garimpo ilegal e grilagem preocupam ribeirinhos e seus parceiros.
Fonte: imagens Planet/MapBiomas
Em setembro foram detectados mais de 78 mil focos de calor na bacia do Xingu, um aumento de 94% em relação ao mesmo mês de 2019. No Pará, esse aumento foi de 163%, já no Mato Grosso, 38%.
Os dados são do 20º boletim Sirad X, o sistema de monitoramento de desmatamento da Rede Xingu +, uma articulação de indígenas, ribeirinhos e seus parceiros que vivem ou atuam na bacia do Xingu.
Anexo | Tamanho |
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Carta Abex | 1.12 MB |
Nota 23 BIS | 65.01 KB |
Boletim Sirad X nº20 | 5.19 MB |