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Governo faz entrega simbólica de terra aos Xavante em meio a luto na aldeia por morte de crianças

Apesar dos graves problemas que os Xavante da Marãiwatséde vêm enfrentando em relação à saúde, comitiva governamental visita Terra Indígena para comemorar a desintrusão, que aconteceu em janeiro último, depois de quase 50 anos de ocupação ilegal
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A aldeia deveria estar em festa, mas é tempo de luto em Marãiwatséde. Localizada no nordeste do Estado de Mato Grosso, a Terra Indígena foi definitivamente devolvida aos Xavante em janeiro deste ano, após processo de desintrusão determinado pela Justiça em 2012 – motivo de alegria para os mais de 800 indígenas que agora reconquistaram os 167 mil hectares da área. Os dias, porém, têm sido de apreensão. A saúde na aldeia anda em baixa e só neste início de ano três crianças já morreram.

Os quadros clínicos variam principalmente entre vômito, diarreia e desnutrição. De acordo com a técnica de enfermagem Sandra Pinheiro, 184 indígenas, de 0 a 5 anos, estão desnutridos em Marãiwatséde, o que corresponde a aproximadamente 30% das crianças da aldeia.

Em meio a este cenário, na última sexta-feira (5), uma comitiva governamental – composta pelo ministro chefe da Secretaria Geral da Presidência da República Gilberto Carvalho; pelo secretário nacional de Articulação Social, Paulo Maldos; pelo secretário nacional de Saúde Indígena (Sesai), Antônio Alves; pela procuradora do Ministério Público Federal de Mato Grosso (MPF/MT), Márcia Brandão Zollinger; pelo assessor especial do Ministério da Justiça (MJ), Marcelo Veiga; e pelos diretores da Funai de Promoção ao Desenvolvimento Sustentável (DPDS/Funai), Maria Augusta Assirati, e de Proteção Territorial (DPT/Funai), Aluísio Azanha – realizou uma cerimônia simbólica de "entrega da terra" aos Xavante. A desintrusão da TI, levada a cabo pela Secretaria Geral da Presidência da República, foi um dos poucos atos positivos do governo Dilma em relação aos povos indígenas.

"Obrigado por nos permitir esse momento de alegria, de confraternização. De poder devolver as terras que são legítimas de vocês", disse o secretário Especial de Saúde Indígena, Antônio Alves, em discurso que também destacou a saúde das crianças da aldeia, destoando do luto dos Xavante nos últimos tempos.

Polo Base na TI Maraiwãtsede

Doenças diarreicas e respiratórias, agravadas por quadros de desnutrição, são hoje as principais causas de morte de crianças nas aldeias brasileiras, segundo o I Inquérito Nacional de Saúde e Nutrição Indígena. O estudo, realizado pela Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz (ESPN/Fiocruz), aponta que os indicadores da saúde indígena são até três vezes piores que a média nacional. As análises mostram ainda que uma a cada três crianças indígenas, de 0 a 5 anos, apresenta um quadro grave de desnutrição.

Obesidade de um lado, desnutrição de outro

"A princípio, criança indígena mama até começar a andar, pelo menos. Agora a grande ocorrência de desnutrição se dá no desmame, porque há uma mudança drástica nos hábitos alimentares dos povos indígenas. Entre os Xavante isso é ainda mais evidente, pois eles tiveram seu território todo recortado em ilhas e praticamente não há caça mais. O consumo de arroz, refrigerante, biscoitos aumentou muito. Então, você tem de um lado a obesidade nos adultos e de outro a desnutrição nas crianças", explica o médico sanitarista Douglas Rodrigues, coordenador do Projeto Xingu e chefe da unidade de Saúde e Meio Ambiente do Departamento de Medicina Preventiva da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

De acordo com artigo publicado pelos pesquisadores do estudo sobre saúde indígena na revista BMC Public Health, as disparidades entre os indicadores estão relacionadas à falta de acesso aos serviços básicos, sobretudo, às más condições sanitárias em que vivem a maioria das populações indígenas e à falta de acesso à água potável.

A água em Marãiwatséde é um caso a parte. Os córregos próximos à aldeia, usados por crianças, adultos e idosos para banho, para lavar roupa e para consumo estão poluídos e há suspeita ainda de contaminação por agrotóxicos, pulverizados pelas fazendas vizinhas à Terra Indígena. Dos dois poços artesianos existentes, apenas um abastece os indígenas – e nem sempre tem água.

"A questão da água está diretamente ligada aos problemas de saúde aqui. De manhã as pessoas tomam água do poço. De tarde, não tem mais água, os índios tomam água do córrego. E quando tomam água do córrego, aumentam muito os casos de diarreia", conta Sandra.

Água contaminada

Apesar de a água ser um fator importante para o aumento dos casos de diarreia na aldeia, Rodrigues alerta que nos casos infantis, geralmente, elas são virais e sua evolução é ainda mais rápida quando a criança está desnutrida.

"A gente leva pro hospital, mas depois de uns dias eles mandam a gente de volta. Aí a doença continua e foi assim que as crianças morreram", relata Daduwari, filho do cacique Damião Paridzané e vereador de Bom Jesus do Araguaia.

O tratamento, muitas vezes trivial nos centros urbanos, vira um problema nas aldeias. Rodrigues lembra que o soro caseiro resolve a desidratação, mas nesses casos, precisa ser administrado de forma lenta pela equipe de saúde.

Enquanto isso, os quadros se agravam. "Precisamos de uma solução para o problema da saúde. Deste jeito está muito ruim. Saúde é só política. Nós somos usados e jogados. Hoje o vento está contaminado. Quem acabou com a floresta? Foi fazendeiro grande. Hoje as crianças estão fracas e magras. Eu cresci gordo, sadio e alto. Mas hoje acabaram com a natureza que é a nossa defesa. Eu quero posto de saúde e poço de água aqui. Já sofremos muito", reclama o cacique Damião, que desde a desintrusão perdeu dois netos.

Para Luiz Soares, coordenador do Distrito Sanitário Especial Indígena Xavante (DSEI Xavante), estrutura ligada à Sesai, o número de casos de diarreia nas populações indígenas se resume a uma "questão cultural". Apesar de entender a gravidade da situação, Soares afirma que o consumo de água contaminada é uma opção dos indígenas. "Muitas vezes, o agente indígena de saneamento se esquece de ligar a bomba e a população fica sem água. E eles acham melhor tomar água do córrego, mesmo que ela não seja boa, limpa, porque é da natureza. Isso é da cultura deles", afirma.

Agrotóxicos são os vilões

A Sesai analisou a qualidade da água dos poços e córregos de Marãiwatséde após denúncias sobre pulverização de agrotóxicos por avião nas proximidades da Terra Indígena, rodeada por plantações de soja. "O exame da água do poço artesiano foi positivo, vocês podem continuar utilizando, pois a água é de qualidade. Mas a água do rio, do riacho, não é de boa qualidade, portanto é uma água que está contaminada. Estão fazendo uma investigação para saber se tem agrotóxico ou não, mas tem uma bactéria lá, chamada coliforme, que pode causar diarreia", alertou Antônio Alves durante a cerimônia do dia 5 de abril.

Mato Grosso é o maior consumidor brasileiro de agrotóxicos porque é o maior produtor de soja, milho e gado; seguido de São Paulo, Paraná, Rio Grande do Sul, Goiás, Tocantins e Minas Gerais.

A situação é tão grave no Brasil que, além de serem encontrados nos alimentos, na água, no solo e no ar, os agrotóxicos foram detectados, inclusive, no leite materno em Lucas do Rio Verde (MT) alguns anos atrás. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), para cada caso de intoxicação por agrotóxico registrado, 50 outros acontecem, mas não são catalogados. A OMS também revela que cerca de 200 mil pessoas morrem anualmente pela ingestão de agrotóxicos e outras três milhões sofrem intoxicações agudas.

"Mas agrotóxico é outro problema. Não vai dar diarreia", aponta Rodrigues. Câncer, descontrole da tireoide, do sistema neurológico em geral, surdez, diminuição da acuidade visual e até mesmo Mal de Parkinson são alguns possíveis problemas de saúde causados pela ingestão de agrotóxicos.

Uma Instrução Normativa do Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa) – a IN n. 2, de 2008 – permite a pulverização de agrotóxicos por avião a, no mínimo, 500 metros de distância das nascentes de águas, onde moram populações e em que há criação de animais. Isso, na maioria das vezes, não é respeitado, como o relatado em Marãiwatséde.

Daduwari conta que as fazendas ficam muito próximas à TI e o uso contínuo de veneno para combater as pragas nas plantações impactam diretamente a saúde da comunidade. "Todas as fazendas perto da aldeia usam agrotóxico. Elas ficam a 10, 13, 30 quilômetros da aldeia. Aí a gente começa a ter febre, dor de cabeça. A gente respira isso, bebe isso, aí passa mal".

Denúncias e reivindicações antigas

Desde 2004, os indígenas e os profissionais de saúde reivindicam, em vão, melhorias na assistência dos serviços públicos em Marãiwatséde. E não só lá. A precariedade do atendimento à saúde indígena parece um problema sem solução, a julgar ´pelas denúncias recorrentes feitas por diversos povos indígenas como os Yanomami, por exemplo. (veja especial que o ISA oproduziu em 2006 sobre a questão).

Em maio de 2012, os Xavante denunciaram ao Ministério Público Federal em Mato Grosso (MPF-MT) que as unidades de saúde dos municípios mais próximos à aldeia, como São Félix do Araguaia, Alto Boa Vista, Bom Jesus do Araguaia, Ribeirão Cascalheira, Canarana e Água Boa frequentemente boicotam o atendimento aos indígenas. Denúncia reforçada recentemente pelas técnicas de enfermagem em carta enviada ao MPF.

"Só conseguimos vaga de internação para os Xavante em Água Boa. Outro dia tive que pedir uma ambulância para a prefeitura de Bom Jesus do Araguaia e como resposta a Secretaria Municipal de Saúde me disse que seria ‘a primeira e a última vez que mandaria uma ambulância’, pois o município não recebe nenhum recurso para cuidar de índio. Os índios são discriminados e nós, como profissionais de saúde, também", relata Lucia Nunes, técnica de enfermagem que trabalha no Polo Base Marãiwatséde.

Catorze anos após a criação de um modelo específico de atendimento aos indígenas dentro do Sistema Único de Saúde (SUS), a situação permanece precária não só para os índios que imploram por atendimento digno, mas para os profissionais que se aventuram nas aldeias.

A falta de equipamentos básicos para atendimento aos índios no Polo Base de Marãiwatséde, a falta de remédios e de transporte também constam na lista das enfermeiras e indígenas ao MPF, Sesai e à Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República.

Na carta, protocolada este ano, as enfermeiras relatam a falta de condições em que são obrigadas a trabalhar e a negligência das autoridades competentes – uma vez que o assunto, segundo elas, já foi encaminhado aos responsáveis. De acordo com o documento, o posto de saúde serve tanto para atendimento aos indígenas como para acomodação da equipe médica. Não possui forro, nem instalações adequadas para armazenamento de utensílios médicos. A carta diz ainda que há uma fossa estourada. (Leia aqui)

"Vou com frequência a Marãiwatséde e nunca vi fossa aberta. Se isso acontece, repasso a responsabilidade aos profissionais de saúde que atendem lá. Eles têm autonomia para resolver essas questões. Isso não é motivo para uma crise no atendimento à saúde", diz o coordenador do DSEI Xavante.

Em seu discurso na aldeia, durante o festejo de "entrega da terra", o secretário de Saúde Indígena, Antônio Alves prometeu resolver algumas questões. Afirmou que o projeto de ampliação e reforma do posto de saúde está pronto e que a Sesai irá construir alojamento para os profissionais, além de destinar mais um veículo para remoção dos doentes na aldeia.

Christiane Peres
ISA
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