Você está na versão anterior do website do ISA

Atenção

Essa é a versão antiga do site do ISA que ficou no ar até março de 2022. As informações institucionais aqui contidas podem estar desatualizadas. Acesse https://www.socioambiental.org para a versão atual.

ICMBio quer retirada de Pataxó da Terra Indígena Comexatiba, no sul da Bahia

Esta notícia está associada ao Programa: 
Ação de reintegração de posse, que pode acontecer até sexta, dia 18, foi movida pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) em 2006 e quer reaver área de sobreposição da Terra Indígena com o Parque Nacional do Descobrimento. Decreto de ampliação do Parque prevê gestão compartilhada em casos que envolvam Terra Indígena
Versão para impressão

Quase dois meses depois de uma operação de reintegração de posse na aldeia Cahy, nesta semana os Pataxó da Terra Indígena Comexatiba, em Prado (BA) correm o risco de voltar a ser expulsos de porções de seu território. Dessa vez, os alvos são as seis aldeias sobrepostas a 19% da área do Parque Nacional do Descobrimento (PND), Unidade de Conservação de proteção integral (saiba mais).

A ação de reintegração está prevista para acontecer até sexta, 18 de março, e foi anunciada em Brasília (DF), durante uma audiência do grupo de caciques Pataxó com o presidente do ICMBio, Cláudio Maretti. Segundo Kahú Pataxó, da Federação Indígena da Nação Pataxó e Tupinambá do Sul da Bahia, em fevereiro os caciques tentaram retomar o diálogo acerca da sobreposição com o órgão ambiental do governo, mas não tiveram abertura. Agora, com a ameaça de execução da ação, o caso foi tema de uma reunião emergencial na última sexta-feira (11), entre o Ministério da Justiça e o ICMBio.

Renato Sales, diretor de Ações Socioambientais e Consolidação Territorial do ICMBio, conta que as tratativas tentam firmar um acordo para que os Pataxó saiam da área sem o uso de forças policiais. É o que também afirma Maretti, presidente do ICMBio: "Nós propusemos à comunidade indígena que se eles acatassem a decisão judicial e saíssem da área de sobreposição, nós nos comprometeríamos a não implementar, nessa área específica, qualquer atividade, estrutura, que possa comprometer a eventualidade futura daquilo ser reconhecido como Terra Indígena".

Eles sustentam, contudo, que o órgão não abrirá mão da reintegração de posse. "A decisão de reintegração de posse é da Justiça. Foi a Justiça que assim decidiu e [é] a Justiça que está reivindicando a possibilidade de força policial. Nós, até o último momento, estamos propondo que façamos todos os esforços possíveis para uma retirada pacífica", afirma Maretti. O Parque, criado em 1999, foi ampliado em 2012, com um decreto que prevê dupla afetação - uma forma de gestão compartilhada - em caso de sobreposição com Terra Indígena (confira).

Veja a localização no mapa abaixo.

Dupla afetação?

As reintegrações de posse contra os Pataxó de Comexatiba são fruto de uma ação judicial movida pelo ICMBio há dez anos e que transitou em julgado em 2015, logo após o órgão ter decidido abandonar as tratativas com a Fundação Nacional do Índio (Funai) na Câmara de Conciliação e Arbitragem da Advocacia-Geral da União da Secretaria Geral da Presidência da República. A Funai havia apelado ao Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) que aguardasse a publicação do relatório de identificação da TI Comexatiba para julgar a ação, mas o ICMBio pediu a retomada do julgamento e ganhou, meses antes da identificação da terra (leia a decisão).

A decisão apoiou-se no Estatuto do Índio para sustentar que a identificação da terra pela Funai não seria suficiente para que a TI Comexatiba fosse reconhecida como tradicionalmente indígena. Maretti repete o argumento: “Ela ainda não é uma Terra Indígena. Na medida em que essa definição técnica da Funai se transformar numa TI homologada, então aí sim teremos todas as condições de proceder com a possibilidade de uma gestão compartilhada” (leia aqui o relatório de identificação da Funai).

O TRF-1 também leva em conta uma manifestação do presidente do ICMBio afirmando que as tratativas de conciliação não seriam continuadas porque entendia que a preservação do Parque Nacional tornava ambientalmente inviável qualquer forma de ocupação humana – em clara contradição com propostas de gestão compartilhada já apoiadas pelo órgão. Apesar de esperada para 2013, a identificação da TI pela Funai só aconteceu em julho de 2015 e, com o relatório em mãos, a Fundação ainda voltou à Justiça para pedir que o ICMBio fizesse a gestão compartilhada da área sobreposta, mas o TRF1 extinguiu a ação no começo deste ano.

Para o jurista e professor de direito ambiental Carlos Marés, da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC/PR), o ICMBio e o TRF1 estão equivocados. Ele esclarece que para ser considerada indígena, segundo a Constituição de 1988, a terra não precisa do decreto de homologação: “É um direito que vem da origem. Portanto, a demarcação, ou o reconhecimento público, é apenas o reconhecimento de um direito preexistente”, explica. “A não ser que o Estado diga que os índios não existem e portanto não têm território”, provoca o professor.

Já para João Pedro Gonçalves, o presidente da Funai que identificou a TI Comexatiba, é preciso trabalhar com a dupla afetação. “Nós já temos normas que garantem a gestão compartilhada. A Política Nacional de Gestão Ambiental em Terras Indígenas (PNGATI) está aí, então precisamos fazer isso e não tirar dos povos indígenas esse direito de fazer a gestão e de viver em territórios que as instituições de governo pleiteiam. Acho que nós precisamos superar e estamos buscando esse entendimento”, avalia. Segundo ele, um levantamento feito por ICMBio e Funai revela 64 áreas de sobreposição entre TIs e UCs no País.


Professores do meio ambiente

Mandỹ Pataxó, da aldeia Alegria Nova, é um dos caciques que participou da audiência com Claudio Maretti. Apesar de indignado, Mandỹ não vê novidade na postura do ICMBio: “Toda vida a gente teve problema. A forma que eles lidam com a gente é caluniando e querendo desconstruir a imagem nossa. Eu acredito que nós somos os verdadeiros professores do meio ambiente. Nós colocamos um cocar na cabeça e mostramos que nós temos equilíbrio. Já eles, não”. Ele denuncia o órgão por ter impedido judicialmente a circulação de veículos de transporte escolar nas aldeias sobrepostas ao Parque.

A antropóloga da Funai Leila Burger Sotto-Maior, coordenadora do grupo de trabalho de identificação de Comexatiba, acompanhou as negociações na Câmara de Conciliação da AGU por nove anos e conta que já houve momentos de abertura com ICMBio, mas que a pressão contrária à Terra Indígena sempre existiu. "Em 2014, em uma reunião na sede em Brasília, um representante de alto escalão do ICMBio rasgou o Decreto nº 7747/2012, que diz respeito à PNGATI, na frente de todos os presentes, dizendo que o instrumento não existe e que era bobagem tentar insistir naquilo. Para ele, a única forma era desafetar o Parque ou os índios saírem de lá. O processo de Comexatiba sempre foi mais conturbado e menos aceito pelo ICMBio do que o de Barra Velha, mas não saberia dizer a razão real - já que a sobreposição é só em cerca aproximadamente de 19% de uma área que já é de capoeira", rememora.

Já para José Augusto Laranjeiras Sampaio, da Associação Nacional de Ação Indigenista (ANAÍ), a posição do órgão pode ter a ver com as negociações da sobreposição da TI Barra Velha: “As dificuldades do ICMBio são por conta da expectativa tácita que eles tinham de que, tendo cedido à sobreposição com o [Parque Nacional] Monte Pascoal, os Pataxó não reivindicariam Descobrimento. E eles reivindicam com toda legitimidade”, avalia o antropólogo.

O Plano de Manejo do Parque Nacional do Descobrimento, datado de 2014, sustenta em vários momentos que a ocupação Pataxó em Comexatiba seria recente e que o modo de vida nas aldeias Pequi, Tibá, Barra do Cahy, Alegria Nova e Monte Dourado gera pressões sobre os recursos da UC, com atividades como a caça, o uso do fogo e da lenha e o extrativismo de subsistência. Mas as pesquisas para o relatório de identificação dizem o contrário: as retomadas foram feitas sobre lugares de moradia e de esconderijo dos Pataxó entre as décadas de 1930 e 1980, onde os técnicos, entre eles agentes ambientais do próprio ICMBio, encontraram antigas roças, moradias e paisagens produzidas pela presença indígena. Além disso, segundo Sotto-Maior, mesmo tendo aberto roçados após as retomadas, muitas áreas foram recompostas a partir da ocupação Pataxó.

“O problema é que os Pataxó só são enxergados depois da retomada das áreas do Parque em 2003. Não se leva em conta, em hipótese alguma, o histórico de conflitos e esbulho por qual eles passaram nas décadas de 1960, 1970 e 1980”, critica a antropóloga, lembrando a atuação da indústria madeireira Brasil-Holanda (Bralanda) e os impactos atuais da monocultura de eucalipto, da abertura de grandes pastagens e de empreendimentos turísticos na região. “Se os indígenas caçam ou pescam é para comer, é para sobreviver. Se ao invés de acusá-los por todos os crimes ambientais que acontecem no Parque - que em grande medida são realizados por outros para incriminá-los -, houvesse um trabalho de gestão com investimento em atividades sustentáveis, os Pataxó, que já são os maiores defensores do Parque, trabalhariam em prol de sua recuperação”, avalia.

Tatiane Klein e Victor Pires
ISA
Arquivos: 
AnexoTamanho
Ícone de PDF relatorio_funai.pdf9.36 MB

Comentários

O Instituto Socioambiental (ISA) estimula o debate e a troca de ideias. Os comentários aqui publicados são de responsabilidade de seus autores e não representam a opinião desta instituição. Mensagens consideradas ofensivas serão retiradas.