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Quem chega em Barcelos nesses dias, seja por via aérea ou fluvial, fica intrigado ao ver tantas árvores secas e sem folhas, mortas mesmo. De avião, no voo sobre as ilhas na frente da cidade, observa-se em algumas delas uma floresta totalmente seca e, ao contornar por trás da cidade antes de aterrissar, um grande número de árvores sem folhas pontua a mata de terra firme. Estamos falando de uma das regiões mais preservadas da Amazônia, distante das principais frentes de desmatamento, estradas ou grande obras. No entanto, os efeitos da gradual destruição desse bioma, associados a câmbios climáticos mais amplos, parecem já estar atingindo essa região.
O começo desse ano foi marcado por uma longa e intensa estação seca (2015-16), como há décadas não se via na região de Barcelos, Médio Rio Negro, segundo maior município do país em extensão territorial. Embora o nível do rio tenha atingido níveis muito baixos, mais grave foram os incêndios florestais sem precedentes que se espalharam tanto nos igapós como em terra firme, queimando extensas áreas e, em vários casos, ameaçando atingir comunidades. Famílias perderam suas roças, seu principal meio de subsistência. A pesca sofreu impacto significativo, com cardumes morrendo à medida que o rio secava – presos em águas rasas e aquecidas, e também dizimados pela pesca oportunista excessiva.
“O impacto foi muito extenso, a maioria dos parentes que tem roça sofreu as consequências, a maioria ficou sem nada. Viraram pedintes, porque não têm alternativas em outras atividades que lhes provêm uma renda” – explica Clarindo Chagas Campos, liderança da Associação Indígena de Barcelos (Asiba), ligada à rede de organizações e coordenações que formam a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn).
O Sr. Clarindo, indígena tariano do Alto Rio Negro que migrou para Barcelos há vinte anos, relata em detalhes sua situação, que mostra bem o que se passa. “Onde eu trabalho, de um lado tem uma terra arenosa, terra preta que dá bem no tempo normal, abacaxi, banana, plantamos quase mil pés de banana, muita banana. Vendemos muita banana, pessoal comprava no porto mesmo, na rua, acabava! Vendemos farinha também. Estava indo bem. Aí do outro lado do rio encontrei uma terra bonita e abri três quadras de roça – agora vamos produzir mesmo, vamos torrar farinha, melhorar nossa casa - pensávamos. Nós fizemos novamente, plantamos novamente, plantamos uns 700 a 800 pés de banana, no ano retrasado. Daí o verão chegou quando as bananas começavam a carregar e as manivas estavam ainda novas, verdes... o verão chegou e começaram já a secar, definhar, morreram minhas pimentas, as bananeiras ficaram molezinhas e foram quebrando tudinho. Bom, até lá não tinha tanto problema ainda, dava para salvar.”
O sr. Clarindo lembra que, na sequência, precisou fazer uma viagem e ao subir o rio, percebeu um incêndio para o lado de suas roças, com muita fumaça escura subindo. Só retornou alguns dias depois, e como ainda havia fumaça do incêndio, apressou-se para ir checar o que acontecia, perguntando-se como estariam suas roças.
"Peguei rabeta (canoa com motor fluvial) e subi, são duas horas, fica no paraná abaixo do Rio Quiuini. Aí cheguei lá e vi minha roça queimando, mas não pude salvar porque a fumaça, e o calor do sol, e o fogo, e o chão não deixavam aproximar. Fiquei olhando, aquela fumaça não deixava eu me aproximar. Aquela fumaceira era total. Bom, deixei queimar – acabou tudo! Sobrou ainda alguma coisa, mas aí vieram as lagartas e acabaram de acabar com o restinho. Aí tem a outra roça de cima, que era madura, com a qual a gente torrava farinha para o nosso sustento. Depois de tudo isso, noutro dia minha esposa chamou para ir lá arrancar mandioca para fazer farinha. – Bora, eu disse. Chegando lá eu vi mandioca toda arrancada, jogada. Fui olhando... os porcos tinham comido. O resto o verão assou, assou mesmo. Os porcos comeram a maior parte, porque a queimada veio enxotando eles, o lugar que sobrou para eles foi esse. Aí fazer o que? Já tinham comido mesmo... O resto da maniva estava igual isopor, quando a gente bota para ralar, ela cai seco, igual pedaço de isopor.”
A queima de roças e capoeiras que produzem frutos se estendeu por várias comunidades. Algumas sentiram, como jamais acontecera antes, o fogo ameaçar casas e roças familiares. Os moradores, incluindo as crianças, da comunidade Cauboris, a jusante da cidade de Barcelos, precisaram carregar água para impedir que o fogo chegasse em suas roças e casas. Por sorte, contam com uma moto-bomba e não foi preciso descer o barranco para buscar água no rio – mas o esforço foi grande e não conseguiram evitar a queimada de seus patauazais e capoeiras. Para impedir a passagem do fogo e salvar as roças foi preciso fazer aceiro em torno delas .
Outro efeito da seca é a falta de mudas de mandioca, perdidas com as queimadas e as pragas de lagartas e gafanhotos que se sucederam. Em certa medida, esse problema é contornado com a colaboração entre parentes e vizinhos, que oferecem mudas e sementes para aqueles mais atingidos pelo fogo e pela seca. Muito se perguntam como adaptar suas práticas de manejo das roças em condições climáticas distintas do que estão acostumados.
Os incêndios que aconteceram no verão passado começaram com pequenas fogueiras, geralmente feitas para cozinhar peixe na beira do rio, ou em coivaras para limpeza das roças. Fazer fogo com tais finalidades é uma prática comum, jamais com as consequências desastrosas que se assistiu nesse ano. Com o forte verão, esses pequenos fogos, mal apagados, foram suficientes para desencadear vastos incêndios florestais fora de controle.
“Tem gente que vai fazer assado aí pelas beiras do rio e não presta atenção no lugar onde vai fazer o fogo. Se tem a possibilidade de o fogo penetrar na terra. Nós prestamos atenção onde fazemos nosso fogo. Se tiver algo embaixo, a gente varre tudinho. Depois apaga o fogo e aquilo acabou ali. Mas tem gente que não presta atenção, faz de qualquer jeito e o fogo reanima. De uma faísca pode ser gerado um incêndio”, afirma Pedro Joaquim, do Rio Caurés,
Com secas extremas se tornando mais frequentes – fenômeno geralmente associado às consequências das mudanças climáticas na Amazônia –, os riscos para a floresta aumentam e as comunidades estão mais atentas, não só em relação às suas próprias práticas, mas também daqueles que acessam essas áreas, como pescadores comerciais e barcos com turistas da pesca esportiva – muito comuns na região.
João Leandro de Bacabau, no Rio Aracá, diz que em muitos e muitos lagos acabaram-se os peixes. “As palmeiras, os jauarizeiros na beira da praia agora que estão se recuperando, porque não tinha mais nada.” Ainda segundo ele, no ano passado, em Eslebão (comunidade a montante, no mesmo Rio Aracá) não tinha pegado fogo, mas nesse ano, três dias depois de ter tido um incêndio em Bacabau, fizeram uma coivara e o fogo saiu do controle. “Lá pegou fogo até na casa. Lamentaram isso aí, antes não pegava fogo, hoje em dia qualquer foguinho pode sair do controle.”
Ele conta que os incêndios atingiram também outra região. “O que aconteceu aqui foi pouco. Na semana passada estive em Daracuá para pegar uma piaba (peixe ornamental) do sr José, e lá você quase não vê mais floresta em pé não! Lá é tudo queimado assim... some de vista! De lá até o igarapé Baruri, tudo tá queimado! Os igarapés e paranás estão tudo com os paus caídos, queimados. Eu perguntei - parente, como aconteceu isso? Ele respondeu – parente, nós vínhamos pra cá, os pescadores de Barcelos, e fazia fogo por aqui (para cozinhar), quando via o fogo já alastrava.”
A estiagem na região de Barcelos começou em outubro de 2015 e se estendeu até fevereiro desse ano. Nos igapós dos rios Aracá, Caurés e do próprio Negro os incêndios se propagaram na espessa camada de raízes, folhas e matéria orgânica, regionalmente chamada de bucha, que sustenta a vegetação, e não apagaram por três meses. Os bichos-de-casco, sobretudo os cabeçudos (quelônios), que desovam e permanecem nos igapós no verão foram amplamente atingidos.
Segundo Antônio Santana (51 anos), liderança da comunidade São Roque, situada no Rio Caurés, que desemboca mais a jusante da cidade de Barcelos, “o fogo fica na bucha, por baixo da terra. E vai queimando pela bucha e lá na frente ele boia... aí já vai ficando destruído tudo. No final das contas, eu acho que morreu muitas coisas. Porque os bichinhos na época de verão ficam nos buracos, naquelas ocas... assou tudo.” Queimadas pelas raízes, as árvores tombavam e o estrondo delas caindo podia ser ouvido das comunidades. “O barulheiro de pau caindo era grande. Parecia que estavam derrubando [a floresta].”
Ainda segundo Santana, “os peixes não tinham para onde ir... Foi a época que [os pescadores de fora] aproveitaram. Foi aí que sentimos uma diferença muito grande. Foi uma diferença de 100% - porque mesmo quando o rio encheu, saía para pescar, mas não tinha o peixe. Ficou devagar. Para onde a gente costumava ir pescar, era só queimada. Atingiu os igarapés. Queimou onde a gente tirava as iscas para pescar, o daracubi, queimou tudo. Aí desapareceu tudo.” Ele e outros pescadores, que tem nessa atividade seu principal meio de subsistência, relatam que os efeitos na pesca ainda são sentidos, meses depois de findado o verão.
“No igapó (onde há mais alimentos para os peixes) queimado os peixes vão embora, e foi isso que aconteceu. E quando o rio encheu não tinha mais o peixe. E daí começou a diferença. Porque a gente preservava isso bem, não consentia muitos pescadores de fora. Aí nesse verão, como foi muito grande, eles aproveitaram, entraram com rabetinha, canoas que pegavam até 6 mil quilos, e aproveitavam porque os peixes estavam ilhados. Tinha noite que a gente ia e focava com a lanterna nesses lagos e a gente só via as olhadas [de peixe] e depois dessa paulada que eles deram [sobrepesca no verão], você num ouvia mais nem bater um tucunaré”, diz Santana.
A extensão dos incêndios florestais na região de Barcelos e seus impactos nas atividades de subsistência e na fauna ainda estão sendo avaliados. Além das conversas com os moradores das comunidades, está sendo feito um trabalho de geoprocessamento visando dimensionar sua abrangência, incluindo regiões pouco habitadas. O Laboratório de Geoprocessamento do ISA, a partir de dados do Inpe de focos de fogo que são monitorados diariamente (https://queimadas.dgi.inpe.br/queimadas), identificou que houve um incremento considerável nesse ano em comparação com os anos anteriores: em 2014 foram 178, em 2015 foram 196 e em 2016, até outubro, foram 14.321.
Clique aqui e visualize no mapa os focos de incêndio nesse período.
Entretanto para uma melhor avaliação de todos os focos e extensão dos impactos será necessário uma análise conjunta das imagens de satélite atuais e de anos anteriores com os dados de focos de calor e os relatos dos moradores.
“O resultado da quentura desse ano para mim é resultado dessas mudanças climáticas” – avalia Pedro Raimundo, morador do Rio Caurés. Não foi só na região de Barcelos que esse longo e intenso verão gerou incêndios e prejuízos diversos para as comunidades. Em Roraima aconteceu o mesmo, com o Rio Branco atingindo seu nível mais baixo em Boa Vista, desde que tiveram início os registros. No Médio e Alto Rio Negro, os municípios de Santa Isabel do Rio Negro e São Gabriel da Cachoeira também foram atingidos, com problemas de desabastecimento de mercadorias vindas de Manaus por via fluvial, e incêndios em menor escala. Todos decretaram estado de calamidade pública.
“A natureza não é a mesma” – argumenta o sr.Clarindo. “Existia um tempo em que nossos ancestrais faziam seus rituais, para que a energia da natureza segurasse essa mudança, para não existir mudança, tanto no verão, quanto no inverno, como na floração das árvores frutíferas, tempo de dar frutas, tudo era controlado, ajudado por esses rituais, e funcionava mesmo. No tempo das piracemas, acompanhando as constelações, purificava o ambiente com esses rituais. Isso funciona!”
E lamenta. "Depois que essa cultura foi reprovada pelos missionários, e foi visto como uma coisa má, diabólica... muitos morreram de depressão, tristes por esse acontecimento... e levaram isso com eles. Então toda essa preparação, essa defesa, que nossos ancestrais colocaram, pouco a pouco vai perdendo poder, vai perdendo efeito, vamos dizer assim. Daí vem essa nova fase, que as pessoas estão matando sua própria mãe. Estamos massacrando a nossa própria mãe, a mãe terra. Ela dá tudo para nós, dá água, dá vida, dá ar... tudo quanto a gente precisa para sobreviver, pra viver bem, a terra dá! Mas a humanidade, pela ambição que tem de ganhar muito dinheiro, vai matando e destruindo. O planeta é um ser vivo, a natureza é viva.”
No Rio Caurés algumas famílias já foram para a cidade depois de perderem suas roças e sentirem as dificuldades na pesca.
O Instituto Socioambiental, a Foirn, organizações e comunidades indígenas estão iniciando o monitoramento ambiental e climático da Bacia do Rio Negro a partir de pesquisadores indígenas - moradores de comunidades dos municípios de Barcelos, Santa Isabel do Rio Negro e São Gabriel da Cachoeira – em conjunto com pesquisadores-assessores do próprio ISA e outros colaboradores, constituindo uma equipe interdisciplinar e intercultural. Serão realizados observações e registros diários sobre o tempo, os ciclos de vida, as práticas de manejo e outros temas abrangendo o calendário socioeconômico das comunidades. Oficinas de organização e análise dos dados envolvendo a equipe de pesquisa e conhecedores mais velhos serão realizadas regularmente para a descrição dos ciclos anuais. Um dos objetivos desse projeto, apoiado pela Fundação Moore, é entender as interações entre os ciclos ecossistêmicos, práticas de manejo e possíveis mudanças climáticas mais abrangentes.
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