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Indígenas mortos com teste positivo de Covid-19 já são 11; casos confirmados dobram em dois dias

Casos reconhecidos pela Secretaria Especial de Saúde Indígena duplicaram em 48 horas, no fim da semana passada. Amazonas segue como epicentro da epidemia
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Texto atualizado às 19:10 de 28/4/2020
Reportagem e edição: Oswaldo Braga de Souza



A pandemia de Covid-19 alcançou definitivamente os povos indígenas. O número de mortos com teste positivo para a doença chegou a 11. Os óbitos incluem o de um indígena Warao venezuelano, em Belém (PA), em 16/4.

A Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), do Ministério da Saúde, confirmou a última morte neste domingo (26). Ela aconteceu no dia 3/4, em Macapá (AP), mas um primeiro teste para o novo coronavírus na doente teve resultado negativo e a contraprova positiva só foi conhecida no dia 24. A vítima era uma mulher de 35 anos, da etnia Palikur, que foi tratar da suspeita de um câncer na cidade. Foi a primeira indígena a falecer pela doença no Amapá.

Além desse óbito, a Sesai considerava apenas mais quatro até a noite desta terça (28). Os outros seis foram checados pela reportagem do ISA com órgãos municipais e estaduais de Saúde e familiares dos mortos (veja mapa ao final da reportagem).

A Sesai não está contabilizando casos e mortes de indígenas que vivem em cidades e afirma que eles devem ser atendidos pelos serviços convencionais do Sistema Único de Saúde (SUS). Ministério Público Federal (MPF) e organizações indígenas criticam a posição e pressionam o órgão a mudar sua política.

Tampouco o Ministério da Saúde, Estados e municípios têm registro sistematizado da contaminação e das mortes de índios urbanos. Segundo o IBGE, dos 896,9 mil indígenas do país, 324,8 mil ou 36% viviam em cidades em 2010, quando foi realizado o último censo no Brasil.

A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coaib) criaram uma rede de colaboradores para levantar casos e mortes suspeitos. A Apib também mantém uma lista de vítimas.

Casos confirmados

Do 92 casos confirmados pela Sesai até hoje, 83 estão no Amazonas. Eles estão concentrados nos Distritos Sanitários Especiais Indígenas (Dseis) do Alto Solimões (42), de Manaus (19) e Parintins (17) (saiba mais no quadro abaixo). Além disso, foram registrados os primeiros casos fora da Amazônia: dois no Dsei do Espírito Santo/Minas Gerais, dois em Pernambuco e um no Ceará.

A realização de testes em dois dos epicentros da epidemia - os distritos do Alto Rio Solimões e de Parintins - fez os casos confirmados dobrarem entre quinta e sexta, chegando a 84. No primeiro, foram identificadas 30 novas ocorrências e, no segundo, outras 13. Nos últimos quatro dias, mais oito foram notificadas, totalizando 92.

Segundo a Sesai, os 43 pacientes que testaram positivo para a enfermidade no fim da semana passada estão assintomáticos e isolados. “Mantendo-se esse quadro, na semana que vem, a maioria já constará como cura clínica”, afirma nota do órgão.

Também foram informados os três primeiros casos em São Gabriel da Cachoeira (AM), município mais indígena do país, e outro na Terra Indígena (TI) Jaraguá, na zona norte da cidade de São Paulo (SP), uma das áreas mais vulneráveis do país ao novo coronavírus, conforme estudo divulgado pelo ISA na semana passada. Nenhum dos quatro casos, no entanto, havia sido confirmado pela Sesai até o início da noite de hoje.


Vulnerabilidade dos Dseis

“Percebemos a vulnerabilidade em que eles [os Dseis] estão, enquanto órgão, para poder fazer seu trabalho. Não estão tendo equipamentos, condições financeiras. Muitos contratos relacionados à alimentação, à aquisição ou manutenção de equipamentos não estão conseguindo operacionalizar”, alerta Nara Baré, coordenadora geral da Coiab.

Ela denuncia que há problemas de má gestão em alguns distritos, falta prioridade para o problema no governo federal e coordenação entre Sesai, SUS, órgãos estaduais e municipais. Nara relata que muitas Casas de Saúde do Índio (Casais) estão sem itens básicos, como álcool gel, máscaras e luvas. Menciona ainda que as organizações indígenas estão tentando adquiri-los para as unidades de saúde e também medicamentos para os pacientes mais graves.

“A situação está sob o mais absoluto controle”, garante o secretário de Saúde Indígena, Robson Santos da Silva, em mensagem enviada por escrito à reportagem. “Os números não prenunciam agravamento algum. Estamos acompanhando diariamente a situação em cada um dos Dseis”, completou.

Segundo a Sesai, já foram enviados aos 34 distritos do país 8,9 mil máscaras, 96,4 mil luvas e 10,3 mil testes rápidos. “Todos estes insumos complementam os estoques próprios dos 34 Dseis, que também mantêm processos permanentes de aquisição de equipamentos, possibilitando assim que todos os colaboradores e, consequentemente, os indígenas atendidos por eles estejam devidamente protegidos”, apontou Silva.


Invasões como vetores de contaminação

Outra grande preocupação são as invasões às TIs por grileiros, madeireiros ilegais, garimpeiros e missionários, vetores do novo coronavírus. Apesar da pandemia, os relatos em várias partes do país dão conta de que o ataque não arrefeceu. O desmatamento na Amazônia, no primeiro trimestre deste ano, foi 51% maior que no mesmo período do ano passado, segundo o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam).

Por causa de desvantagens econômicas, sociais, de acesso à saúde e saneamento, além do modo de vida coletivo e da prevalência de doenças, como hipertensão e outras infecções respiratórias, os povos indígenas podem ser considerados grupos de risco para a pandemia. Segundo os epidemiologistas, se o novo coronavírus entrar nessas comunidades, pode se espalhar de forma muito rápida e difícil de conter.

O movimento indígena tem encaminhado denúncias e pedidos de providências ao MPF e ao governo federal para tentar conter as invasões durante a crise de saúde. “Como medida protetiva, é necessário urgentemente retirar os invasores dos territórios e do entorno dos territórios. Não tivemos uma resposta do Estado brasileiro. Tivemos uma resposta dos invasores. A resposta que estamos tendo são as mortes dos líderes indígenas”, critica Nara Baré.

Em março, a Fundação Nacional do Índio (Funai) suspendeu as autorizações para entrada nas TIs. Há duas semanas, anunciou que investiria R$ 6 milhões para distribuir 308 mil cestas de alimentos para cerca de 154 mil famílias em mais de 3 mil comunidades indígenas do país. Na mesma época, no entanto, o jornal O Estado de São Paulo mostrou que o órgão não havia gasto nenhum centavo dos mais de R$ 10 milhões recebidos em caráter extraordinário para combater a Covid-19 entre as populações nativas.

A reportagem entrou em contato com a assessoria da Funai para tentar atualizar o andamento das ações contra a pandemia, mas não obteve resposta até o fechamento desta notícia. Não se sabe quantas cestas básicas já foram distribuídas, por exemplo.

Na semana passada, o presidente do órgão, Marcelo Xavier, publicou uma medida que permite a ocupação e até a venda de áreas nas TIs, o que tende a estimular as invasões. A Instrução Normativa nº 9/2020 altera o procedimento de emissão da “Declaração de Reconhecimento de Limites”, permitindo que a instituição certifique o perímetro de imóveis e até mesmo de posses que incidem sobre TIs não homologadas. A homologação é a última etapa do complexo e demorado processo demarcatório e existem hoje 237 processos para a demarcação de TIs que ainda não alcançaram essa fase.

Os epicentros da epidemia

Dsei Alto Rio Solimões

No Alto Rio Solimões, o novo coronavírus foi trazido por um médico da Sesai, no fim de março. Por estar assintomático e diante da urgência de seguir para o trabalho, ele entrou no território sem fazer a quarentena. Houve “falha de comunicação” entre o Dsei e o profissional, na avaliação do presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena (Condisi) do Alto Solimões, Sildoney Mendes da Silva.

Robson Santos da Silva nega o problema. “Não houve falha na identificação [do caso]. O profissional comunicou ao coordenador do Distrito tão logo sentiu os primeiros sintomas, permaneceu em isolamento domiciliar e todos os seus contatos foram rastreados e testados. Da mesma forma foi feito com a indígena que havia testado positivo. Tanto é que ela foi o primeiro caso de cura clínica entre indígenas”, afirmou, em resposta por escrito à reportagem.

Conforme o jornal O Globo, o salto do número de testes positivos para a Covid-19 na semana passada teria se originado na contaminação de dezenas de pessoas numa confraternização, na mesma aldeia São José, no município de Santo Antônio do Içá, onde foi registrado oficialmente o primeiro caso da moléstia em um indígena no país, em 1/4.

A Casa de Saúde do Índio (Casai) de Tabatinga, maior cidade da região, está lotada. Além disso, com o agravamento da crise econômica, vários indígenas estão indo para os núcleos urbanos para tentar vender sua produção agrícola ou sacar benefícios sociais, como o bolsa-família e aposentadoria. Há barreiras sanitárias em alguns rios, mas é impossível controlar todo o trânsito de pessoas. A situação agrava o risco de transmissão do vírus.

Ismael Adércio Custódio, da Associação dos Caciques Indígenas do Município de São Paulo de Olivença (Acispo), confirma a dificuldade de manter os moradores nas aldeias e cobra da Sesai e das prefeituras da região mais apoio às barreiras e ao trabalho de conscientização das comunidades. Ele diz que não há informações sobre distribuição de cestas básicas na região, medida que poderia manter parte da população nos territórios. “Fecharam as portas para todo mundo nas aldeias. E aí? Qual o apoio que tem? Não tem. Como as pessoas vão se alimentar?”, questiona.

A reportagem do ISA tentou contato com a coordenação do Dsei durante vários dias e não obteve resposta.

Cidade de Manaus

A situação na capital amazonense é caótica. Os sistemas hospitalar e funerário colapsaram há duas semanas por causa da epidemia. Profissionais de saúde queixam-se do atraso de salários, condições de trabalho desumanas, falta de equipamentos de segurança e testes, apesar dos recursos federais extras recebidos pelo governo estadual. O Amazonas é o quinto Estado em número de casos e mortes no país: 3.833 e 304, respectivamente, segundo dados do Ministério da Saúde de anteontem.

Há cerca de 30 mil indígenas em Manaus, de acordo com a Coordenação dos Povos Indígenas de Manaus e Entorno (Copime). Eles sempre estiveram no fim da fila na assistência do SUS em função da discriminação e das distâncias entre a periferia e as principais unidades de saúde. Com a crise sanitária, a situação piorou. Lideranças indígenas contam que só casos gravíssimos conseguem ser atendidos. Não há distribuição de medicamentos para quem é mandado para casa, mesmo em condições preocupantes.

“Em Manaus, os indígenas ficam que nem [bola de] ping-pong. Não são atendidos pela Sesai e o município não está capacitado para atender no que diz respeito à questão cultural”, critica Marcivana Saterewé Mawé, integrante da Copime. Ela conta que há muitos casos suspeitos e pessoas passando necessidade em comunidades como as dos Tikuna, Kokama, Apurinã e Sateré Mawé.

Dsei Manaus

Manaus é um dos principais focos de contaminação. Vários indígenas foram infectados na Casai, gerenciada pela Sesai, e em unidades de saúde municipais ou estaduais, quando buscavam assistência para outros problemas. Algumas dessas pessoas voltaram a seus locais de origem sem saber que tinham o vírus e acabaram contaminando familiares e amigos. As informações foram confirmadas pela coordenação do Dsei de Manaus.

Apesar disso, a Casai da capital amazonense têm hoje 31 pacientes que já receberam alta de outros problemas de saúde, mas não conseguem retornar às suas aldeias por causa da interrupção dos transportes provocada pela epidemia, revela Mário Ruy Lacerda de Freitas Junior, coordenador do Dsei Manaus, que atende outras 30 mil pessoas, espalhadas em 253 aldeias ao redor da região metropolitana.

Ele explica que, desses 31 indígenas, quem não tiver sintomas e não testar positivo para a Covid-19 será levado para casa gradualmente, assim que a flexibilização das medidas de isolamento permitirem. A ideia é que fiquem nas sedes de seus municípios de origem por sete dias e então retornem às aldeias. Freitas acrescenta que a unidade de saúde não está admitindo novos pacientes, a não ser urgências.

O coordenador do distrito admite que profissionais da Casai têm comprado ou confeccionado seus próprios equipamentos de segurança, mas que a Sesai e o Dsei também têm feito algumas compras, apesar da falta de insumos no mercado.

Dos 19 casos registrados no distrito, quatro pacientes foram infectados em Manaus e 15 na aldeia Terra Preta, de índios Baré, localizada na Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) Puranga Conquista. Uma indígena que estava em São Paulo voltou para a localidade no início da pandemia e contaminou os moradores.

“Essa pessoa veio de fora e circulou muito tempo lá. Quando isso estourou, basicamente todos [os casos] que foram confirmados já tinham passado o vírus para outros”, explica. Ele nega que tenha havido falha na identificação e isolamento dos casos e informa que a comunidade está sendo monitorada.

Questionado sobre barreiras sanitárias do Dsei, conta que elas têm sido organizadas pelos próprios indígenas e também reconhece que é difícil manter as pessoas em casa. As duas principais ações organizadas pelo Dsei para tentar viabilizar o isolamento são rondas educativas e a distribuição de cestas básicas.

Dsei Parintins

O secretário-executivo do Condisi de Parintins, Derli Bastos Batista, aponta que a origem da contaminação de pelo menos dez casos confirmados no Dsei foram dois pacientes vindos de Manaus, provavelmente contaminados na Casai da cidade. Ele acusa a coordenação da unidade de saúde de ter escondido as primeiras informações sobre a situação dos pacientes.

“Onde surgiu a falha foi na Casai de Manaus. Porque quando acionaram o Dsei [Parintins] para buscar [os pacientes] disseram que estava tudo bem, que os exames já tinham sido feitos. Na verdade, não fizeram”, argumenta.

A transmissão de outros sete casos teve origem em um rapaz que veio da Bahia para o município de Maués e encontrou-se com familiares. Um deles acabou contaminado e morreu, no dia 17.

Batista informa que, logo após os primeiros três casos, o Dsei isolou todas as outras pessoas que testaram positivo e casos suspeitos.

O órgão tem recebido parte de seus insumos da Sesai e enfrenta dificuldades para comprar o restante pela alta dos preços no mercado. Também recebeu doações da Coiab, da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e da Igreja Batista.

O secretário-executivo do Condisi acredita que a situação está sob controle, mas que o risco de contaminação é grande na região. O Dsei atende cinco municípios: Barreirinhas, Maués, Nhamundá, Boa Vista e Parintins. Pelo menos nos três primeiros há barreiras sanitárias no acesso as TIs.

“A preocupação do Dsei e nossa, da parte do Condisi, é que tem vários parentes indígenas que estão furando as barreiras [sanitárias]”, ressalta. “Estão furando as barreiras até mesmo por terra, para ir atrás de benefícios [sociais], ter dinheiro para comprar seus alimentos”, ressalta.

Batista conta que está sendo discutido no Dsei a possibilidade de que servidores da Funai e Sesai tenham autorização dos indígenas para recolher os cartões de benefícios sociais para fazer compras nas cidades, retornando depois com elas, tomando os cuidados de higienização dos produtos. A Caixa Econômica Federal, responsável pela gestão dos benefícios, precisaria chancelar o procedimento. O objetivo seria manter os moradores nas aldeias. A ideia é polêmica porque a prática de retenção desses cartões e roubo de parte dos benefícios por comerciantes e atravessadores é comum na Amazônia.

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