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Indígenas vivem ‘cenário de guerra’ com agravamento da pandemia, diz líder da Coiab

Coordenadora da maior rede de organizações indígenas da Amazônia, Nara Baré alerta sobre primeiros casos de reinfecção e nova variante do coronavírus identificada em Manaus
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Em 2020, a evolução da pandemia escancarou as desigualdades sociais, raciais, geográficas e de acesso aos serviços públicos. Populações periféricas, negras e do Norte do país foram as que mais sofreram com a falta de assistência e a invisibilidade provocada pela subnotificação. Com os povos indígenas não foi diferente. Em dezembro, a taxa de mortalidade pela Covid-19 dessas comunidades estava em 991 por milhão, 16% a mais que o índice nacional, conforme o levantamento independente da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). Hoje, ainda segundo a mesma fonte, o Brasil crava a triste marca de 959 indígenas mortos, 48,3 mil casos e 161 etnias afetadas.

A coordenadora da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), Nara Baré, descreve a situação das comunidades originárias da região diante do recrudescimento da crise sanitária, neste início de 2021, como um “cenário de guerra”. Ela diz que o caos provocado pela falta de insumos básicos, leitos hospitalares e profissionais de saúde foi agravado, agora, pelas falhas no fornecimento de oxigênio, os primeiros casos de reinfecção e a nova variante do coronavírus identificada em Manaus.

Nara comenta que a situação dos indígenas na capital amazonense segue dramática, como no ano passado. E pior: desassistidas pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), do Ministério da Saúde, como as populações indígenas urbanas no resto do país, as comunidades manauaras seguem excluídas dos grupos prioritários de vacinação, ao contrário dos moradores da zona rural, que já começaram a ser imunizados.

Leia a seguir os principais trechos da entrevista concedida ao ISA pela líder indígena.

ISA - Qual a gravidade da situação dos povos indígenas da Amazônia no momento de recrudescimento da pandemia?

Nara Baré - A gente inicia o ano de 2021 com esse colapso, esse cenário de guerra, que todos puderam ver nos jornais e nas redes sociais, do que aconteceu aqui em Manaus. Mas, para mim e muitos indígenas que estamos em regiões metropolitanas e que estamos em Manaus, é muito pior. É mais forte estar presente, ver e se sentir num cenário de guerra realmente.

Recebemos mensagens com pedidos de socorro de algumas lideranças, de pessoas que estão aqui em Manaus, correndo atrás de tentar conseguir esse elemento fundamental que é o oxigênio. Nunca pensei que a gente fosse estar, hoje, há quase um ano nesse enfrentamento da pandemia, com esse caos total e essa negligência do Estado, do poder público, dos governantes de deixar faltar oxigênio, o que acaba afetando não só quem está acometido pela Covid-19 mas todos que estão nos hospitais, nas UBS [unidades básicas de saúde], nas suas casas, mulheres, crianças, homens mais velhos, pessoas com problemas respiratórios.

Se nós tivemos poucos avanços por parte do Estado e do poder público, da nossa parte, enquanto pessoas, enquanto movimentos sociais, nós criamos uma rede de solidariedade e de apoio com parceiros, aliados, pessoas que são adeptas da causa, pessoas humanitárias. E essa rede, essa corrente, fez com que a gente perdesse cada vez menos pessoas e tivesse um impacto menor, mas esse impacto menor ainda é muito grande para todos, acaba afetando e tendo consequências psicológicas, adoecimento do corpo, da mente, do espírito. A gente continua no luto e na luta, mas sem poder vivenciar… Não dá tempo de viver o nosso luto.

Desde março do ano passado, o que acompanhamos e estamos vivendo é que o Estado brasileiro não está preparado, não se preparou e não se prepara para o combate, as precauções, a prevenção à pandemia. Isso é muito claro. É lastimável.

Depois desse colapso, Manaus acabou enviando esse alerta, não só para a Amazônia, não só para o Brasil mas para o mundo todo: da falta de responsabilidade dos governantes. Isso é uma negligência total! Não podem mais ficar brincando de ser governador, de ser presidente, de ser prefeito, de ser deputado federal e estadual, de ser senador, vereador. Porque é uma responsabilidade muito grande e eles estão aí e precisam fazer sua parte. Lógico que não são todos. Muitos estão comprometidos junto conosco, com a própria sociedade em geral.

O que trazemos como preocupação e reacende de uma maneira muito forte esse pedido de socorro dos povos indígenas da Amazônia é que nós estamos vivenciando novamente o pico [de casos e mortes] que se iniciou aqui em Manaus e no estado do Amazonas, em abril e maio do ano passado. Só que agora há dois diferenciais muito grandes: o próprio medo de novos casos da Covid-19 por reinfecção, com pessoas que estão tendo os sintomas novamente e estão conseguindo fazer o teste; e para completar - eu sempre falava assim ‘tinha que começar por aqui, não sei porquê’ - essa nova variante que foi diagnosticada aqui, no Amazonas. Isso traz o alerta para nós termos o cuidado e para fazermos com que as medidas sejam tomadas urgentemente, para que as reinfecções e, principalmente, essa nova variante não perpassem Manaus, chegando no interior do estado do Amazonas e nos demais estados da Amazônia brasileira e do Brasil.

ISA - Estão ocorrendo muitos casos de reinfecção?

NB - Desde março, estamos vivenciando a negligência e ocultação dos dados epidemiológicos. Há uma cortina de fumaça que se coloca, como se estivesse tudo bem. E não está. Se tratando de povos indígenas, o Estado e os meios [de comunicação] só consideram como dados oficiais os que são levantados pela Sesai, e a Sesai não passa os dados corretos. Eles continuam omitindo os dados. A gente deu continuidade ao diálogo com as lideranças indígenas, com as organizações da rede Coiab, com os profissionais de saúde indígena. Para nosso entendimento, que para gente é o que vale, muitos dos que pegaram a Covid-19, naquele período de março e abril, vemos que para alguns há esse sistema imunológico de defesa entre o período de três a cinco meses, e outros não têm essa imunidade e continuam tendo sintomas muito fortes. Do levantamento que a gente fez, muitas pessoas que estão sentindo novamente sintomas - febre, a dor no peito, falta de ar, falta de apetite - são também os sintomas de quem está com a Covid novamente.

ISA - Você falou de um cenário de guerra. Neste momento, quais são os principais problemas no atendimento às Terras Indígenas, na comparação com o que aconteceu no ano passado?

NB - Nas Terras Indígenas, o que a gente vem observando, com informações das nossas bases, é a falta de insumo. Não somos nós que precisamos fazer o que é papel do Estado. O Estado precisa assumir, e nós que estamos assumindo isso de continuar com a parte preventiva, de dar condições para as equipes [de saúde], para as pessoas que estão na linha de frente, nesse trabalho diário e árduo. Então, em algumas localidades do Amazonas, do Pará (principalmente da região que é fronteira com o estado do Amazonas) e Roraima, há informações de falta de oxigênio também.

[É preciso] continuar fazendo a testagem rápida, que pararam [de fazer]. Todo mundo parou. Não foi só a população que deixou de usar, por exemplo, a máscara. A própria Sesai, que é responsável pelos territórios, deixou de fazer também esse monitoramento. Porque, se o monitoramento tivesse uma continuidade, não haveria aumento de casos, a gente não precisaria, por exemplo, ativar algumas Uapis [Unidades de Atenção Primária Indígena] na região do Rio Negro que estavam desativadas. Houve esse declínio na parte do monitoramento, nas medidas preventivas. A prevenção precisa ser continuada, durante a pandemia e pós-pandemia. Porque hoje é a Covid-19. Amanhã ninguém sabe. Então, a prevenção é superimportante.

ISA - Como está a situação dos indígenas de Manaus neste momento?

NB - Aqui em Manaus está um caos total. Só no [bairro indígena] Parque das Tribos já foram confirmados 36 casos positivos de Covid-19. O apoio está sendo feito na nossa rede de solidariedade, puxado pelos próprios indígenas, por meio de uma Uapi, para que minimamente essas pessoas possam ter o atendimento por profissionais indígenas e também o oxigênio. Porque o oxigênio não tem para rico aqui. Imagine para pobre, pessoas de baixa renda, para os indígenas, para quem está na periferia! Não tem. Não tem leito disponível para ninguém, tanto que muitas pessoas daqui foram removidas do estado, do Amazonas, de Manaus, para outros estados. Porque [a pandemia] se alastrou para o interior e, não tendo toda essa estrutura no interior, vai vir pra onde? Para Manaus. E Manaus não tem lugar nem para quem está aqui nem para quem precisar. Então, é um descaso total com os indígenas. E aí eu falo de Manaus e entorno, que é toda a área metropolitana de Manaus e pega também Novo Airão, Rio Preto da Erva, Itacoatiara. [Em Manaus] foi desativado o hospital que tinha uma ala indígena. Foi a primeira no Brasil. Foi todo um marketing. E foi desativado. E não era pra ser desativado.

ISA - E a questão da vacinação? Você tem informações de que essas vacinas estão chegando? Os Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs) estão conseguindo fazer a vacinação? Tem capacidade de armazenamento? Os profissionais têm condição de trabalho hoje para fazer essa vacinação?

NB - Infelizmente, volto a bater nessa tecla, do não comprometimento dos órgãos públicos, no caso que a gente está falando é da Sesai. É muito bla, bla, bla e pouca ação efetiva. Porque eles não se prepararam e não se preparam para o enfrentamento da Covid. Há quanto tempo que temos informações sobre a vacina? Então, não pode falar: ‘ah, eu não sabia’. Sabiam e não se prepararam. Não são todos. Em alguns distritos sanitários, estão recebendo a vacina, já iniciaram também a aplicação, como temos colocado e acompanhado e está postado nas nossas redes sociais.

A gente quer deixar muito claro que os indígenas que tomaram a vacina até agora são indígenas que estão contemplados no Plano de Imunização Nacional do Ministério da Saúde. São indígenas que estão no cadastro da Sesai e profissionais de saúde indígena que estão na linha de frente. Então, não são todos os indígenas. Isso ainda é uma luta que a gente está aqui travando e buscando garantir esse direito [dos indígenas urbanos serem incluídos nos grupos prioritários de vacinação]. Porque, quando se fala de povos indígenas, são todos os povos indígenas do Brasil, independente da sua localidade, onde estejam naquele momento, que são do grupo prioritário. Porque, hoje, devido à pandemia, a gente se encontra em vulnerabilidade. Não é que nós somos vulneráveis, mas nos encontramos hoje em vulnerabilidade.

Nós enviamos uma carta para os nove governadores dos estados da Amazônia brasileira, para se comprometerem a inserir 100% da população indígena do seu estado na campanha de vacinação como grupo prioritário, e não somente aqueles atendidos pela Sesai. Os que forem atendidos pela Sesai, a Sesai atende. E os que não estão contemplados no sistema da Sesai que o estado reconheça e faça com que os indígenas sejam 100% imunizados. Essa foi a carta solicitando e exigindo junto aos governadores e também foi encaminhada ao Ministério Público.

ISA - Quem respondeu e se comprometeu?

NB - O governador do Pará. O de Rondônia respondeu dizendo que estava ciente e que em breve iria dar uma resposta.

ISA - Como as pessoas que têm interesse podem ajudar a Coiab e os povos indígenas da Amazônia no enfrentamento à Covid-19?

NB - Nós da Coiab estamos na linha de frente, desde março do ano passado, nesse enfrentamento, na prevenção e no combate ao coronavírus. E com uma preocupação muito grande com os novos casos de infecção e essa nova variante que apareceu no estado do Amazonas. A gente vem novamente pedir a ajuda e o apoio de cada um. Doe para os povos indígenas da Amazônia brasileira. Doe insumos, materiais. Vocês podem fazer a entrega na sede da Coiab, na Rua Eirão, número 1235, em Manaus, Amazonas. E vocês também podem entrar no site da Coiab: coiab.org.br/doe. Lá, podem conhecer nossas várias iniciativas, como no caso aqui do estado do Amazonas, a iniciativa junto com outros movimentos sociais “Amazonas pela Vida”, para arrecadação de insumos, como cilindros de oxigênio, gêneros alimentícios, materiais de limpeza, especialmente sabão em barra, álcool em gel, sabonete e máscaras, de pano, descartáveis. Isso é muito importante para os indígenas que se encontram em Manaus e no entorno de Manaus. Então pra você que puder e queira nos ajudar e nos apoiar, visita lá a nossa página da Coiab, dê um clique, nos conheça um pouco mais e vamos continuar com essa rede de solidariedade e apoio aos povos indígenas da Amazônia brasileira.

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