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A capital federal continua vivendo sua mais grave crise hídrica. No ano passado, os dois principais reservatórios do DF, do Descoberto e de Santa Maria, chegaram a cerca de 5% e 21% de sua capacidade total, respectivamente. O racionamento de água completa mais de um ano. Os candangos ficaram, em média, 2 meses sem água nas torneiras – 24 horas a cada seis dias. Apesar das duas represas terem se recuperado, 2017 terminou com o volume de precipitações 15% abaixo do esperado. Ainda não se sabe quando o racionamento vai terminar.
A situação em Brasília é só o caso mais recente de um cenário preocupante marcado pela perspectiva de agravamento de eventos climáticos extremos. Estados do Nordeste também passam por graves crises hídricas, problema já enfrentado também São Paulo e Rio de Janeiro. Em geral, são esses eventos climáticos extremos a causa dessas crises, mas os especialistas já comprovaram que o desmatamento desenfreado está agravando o desabastecimento de água.
O quadro acrescenta dramaticidade ao julgamento das ações contra a Lei de Proteção da Vegetação Nativa (12.651/2012), que revogou o Código Florestal de 1965. O caso será retomado no Supremo Tribunal Federal (STF), nesta quarta (21/2).
Leia abaixo a entrevista com Nurit Bensusan, assessora do ISA, bióloga e pesquisadora associada da Universidade de Brasília (UnB), que comenta os riscos para o Cerrado e o abastecimento de água da manutenção da lei atual a partir de estudos recentes sobre as consequências do desmatamento.
ISA - Água e floresta são dois lados da mesma moeda?
Nurit Bensusan – Água e floresta estão, sim, umbilicalmente ligadas. Ou melhor dizendo, água e vegetação natural, pois há muitas paisagens naturais que não são florestas, mas que também devem ser conservadas. Tanto, que, às vezes, nos perguntamos sobre uma área onde há água: ali tem água por causa da vegetação ou tem vegetação por causa da água?
Veja, por exemplo, o caso dos oásis do norte da África: por muito tempo se acreditou que eram remanescentes de uma paisagem com vegetação que foi suprimida ao longo dos anos e transformada em deserto. Hoje, se sabe que esses oásis são fruto do plantio coordenado de plantas pelos povos daquela região, ao longo de centenas de anos, que transformaram aquele local trazendo água para a superfície.
Muitos ambientes da Terra sofrem hoje com escassez de água por causa do desmatamento e da ocupação desordenada das paisagens. As savanas africanas, degradadas devido ao sobrepastoreio e ao consumo de lenha, são um exemplo disso. Ao longo dos séculos, a diminuição da vegetação levou a uma maior falta d’água.
ISA – Então, quer dizer que desmatamento e a supressão da vegetação do Cerrado tem relação com a crise hídrica do Distrito Federal, por exemplo?
NB – Com certeza! E é interessante que essa relação acontece em pelo menos duas dimensões, uma química e outra física. A química é aquela que mostra que as árvores e a vegetação em geral têm um papel muito relevante na volta da água para atmosfera: por meio do processo de evapotranspiração as plantas bombeiam água de volta na atmosfera. Por exemplo, um estudo recente, publicado em 2016, na revista científica Global Chance Biology, mostra que a evapotranspiração da vegetação natural do Cerrado chega a ser mais de 50% maior do que a das culturas agrícolas que em geral a substituem. Evidentemente, isso impacta o regime das chuvas da região.
A outra dimensão é a física que pode ser vista nas profundas raízes que as plantas do Cerrado possuem. Dizem que o Cerrado é uma floresta ao contrário exatamente por conta dessas raízes grandes e profundas. Elas penetram fundo no solo, criam caminhos por onde a água passa e abastecem o lençol freático e os aquíferos subterrâneos. Pesquisadores da Universidade de Brasília (UnB), como o professor José Eloi, especialista em hidrogeologia, vem chamando atenção para a redução significativa de recarga dos aquíferos causada pela supressão da vegetação. O efeito disso sobre a disponibilidade de água é enorme, pois a água subterrânea é responsável por maior parte da vazão dos rios do Cerrado.
O bioma está sobre três dos principais aquíferos do nosso continente: o Guarani, bastante famoso, o Bambuí e o Urucuia. A chuva no Cerrado penetra no solo e fica armazenada nas rochas do subsolo e essa água abastece mais de dois terços das regiões hidrográficas do país. Toda a bacia do Rio Paraná é alimentada pelo aquífero Guarani, ou seja, a maior parte dos rios de São Paulo, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e grande parte dos rios de Goiás. A vazão desses rios diminui ano a ano, pois a recarga do aquífero está comprometida.
Nos últimos 50 anos, metade da vegetação do Cerrado se perdeu e uma boa parte do que sobrou não preservou sua integridade ecológica, o que também compromete sua função para manter o regime hídrico.
Como o professor Altair Sales Barbosa, da PUC-GO, sempre ressalta, a vegetação do Cerrado é de crescimento muito lento. Muitos buritis que vemos hoje estavam nascendo quando Pedro Álvares de Cabral chegou ao Brasil. Assim, a recuperação do Cerrado é complexa e muito demorada. Um estudo dos pesquisadores da UNESP, que saiu agora no Journal of Applied Ecology, mostra que, mesmo quando o extrato arbóreo do Cerrado se recupera, a parte herbácea (de plantas menores, capins e outras gramíneas) não se regenera e isso acaba por influenciar a integridade da paisagem e coloca em xeque seu papel no regime de chuvas.
Isso tudo é agravado pela situação específica do Distrito Federal, onde poucas áreas naturais foram mantidas e a ocupação urbana tem sido descontrolada. Um resumo de tudo isso é que sem a vegetação natural do Cerrado, o regime de chuvas fica comprometido e, com o aumento do desmatamento, a crise tende a se agravar.
ISA – Mantendo tudo isso em mente, o que se perde se o STF não acolher as ADIs ligadas ao Código Florestal?
NB – Estamos falando, entre outros dispositivos, da possibilidade de uma área maior do que o território de toda Alemanha deixar de ser recuperada – a nova lei anistiou os produtores rurais de recuperar 41 milhões de hectares desmatados ilegalmente. Além disso, estão na pauta formas diferentes de calcular as Áreas de Preservação Permanente (APPs), ou seja, não é apenas muita área que deixará de ser recuperada e onde a vegetação poderá ser suprimida, mas são áreas localizadas perto dos cursos d´água e as consequências para o regime de chuvas serão drásticas.
É vastamente documentado o papel das APPs na beira dos cursos d'água como filtro de sedimentos, reduzindo a quantidade de fertilizantes e pesticidas que chegam ao meio aquático, para a promoção da infiltração de água e recarga dos aquíferos, a proteção do solo, evitando erosão e assoreamento. A eficiência e a extensão desses benefícios, porém, dependem da manutenção da integridade da vegetação e dos processos ecológicos ali existentes.
A mais evidente consequência desses dispositivos na lei é o colapso do abastecimento humano e as recentes crises hídricas que oferecem um vislumbre do que pode acontecer. Mas, há consequências também para a produção de energia, para as atividades industriais e para a agricultura, atividade altamente dependente de água.
A proteção e a função ambiental das APPs ficaram também largamente ameaçadas pela exclusão dos entornos das nascentes intermitentes e temporárias O artigo 4, inciso IV, questionado por uma das Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs), qualifica como APP uma área de raio mínimo de 50 metros somente no entorno das nascentes e olhos d'água perenes, enquanto o antigo Código Florestal definia as áreas de entorno de todas as nascentes como de preservação permanente. Felizmente, o relator do caso no STF, ministro Luiz Fux, considerou esse ponto inconstitucional. Vamos aguardar com vão se posicionar os outros ministros.
Essas nascentes, intermitentes ou temporárias, excluídas da proteção das APPs são até mais vulneráveis que as perenes e possuem um papel fundamental na preservação da disponibilidade de água. É sabido que em ambientes do semi-árido brasileiro, onde vivem 20 milhões de pessoas, a grande maioria das bacias hidrográficas é composta de nascentes e cursos d’água intermitentes. Nesse ambiente e em muitos outros, haverá uma significativa diminuição das áreas de preservação permanente.
Se os artigos 61-A, 61-B, 61-C e 63, também questionados no STF, forem mantidos não será possível evitar as cada vez mais frequentes inundações e enchentes. Vale lembrar que a dispensa de recuperação de APPs também se aplica às áreas de encostas com declividade superior a 45 graus, às bordas de tabuleiro ou chapadas e aos topos de morro. Quem se lembra dos desastres da região serrana do Rio de Janeiro que ocorreram em janeiro de 2011 não vai ter dificuldade de entender a importância das APPs para o controle das inundações e quais são as consequências desastrosas de sua remoção, alteração e redução.
Enfim, o já-não-tão-novo Código Florestal protege menos a vegetação nativa brasileira. Esse julgamento é uma possibilidade de resgatar alguns dispositivos que conferem um pouco mais de proteção e isso, certamente, impacta além dos recursos hídricos, a quantidade de polinizadores, o controle de pragas e doenças e até mesmo da febre amarela e da dengue. Os dados científicos se acumulam mostrando que o futuro será muito mais difícil, se não impossível, sem as áreas naturais.