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No último 18/11, em Altamira (PA), foi lançado o livro Terror e resistência no Xingu, duas semanas antes do aniversário de criação do Conselho Ribeirinho - coletivo que representa as famílias ribeirinhas deslocadas de seus territórios pela construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte. Nesta quinta-feira (2/12), o coletivo completou cinco anos. O livro é resultado da tese de doutorado em Antropologia Social na Unicamp, da antropóloga Ana De Francesco, sob orientação do professor Mauro Almeida, entre os anos de 2013 e 2020.
O evento aconteceu no auditório da Universidade Federal do Pará e nas paredes foram pendurados os mapas usados e elaborados pelo Conselho Ribeirinho ao longo dos últimos anos. As cadeiras foram dispostas em círculo e no centro foram colocados remos, canoas, flores, uma faca de cortar seringa e um balde de alumínio usado para coletar o látex, objetos que trazem lembranças de tempos antigoa, e remetem à história e ao modo de vida beiradeiro.
Diferentemente de outras ocasiões, ribeirinhos, lideranças, pesquisadores e moradores de Altamira não se reuniram para denunciar as atrocidades perpetrradas pela construção da usina ou relembrar suas perdas e suas dores. O lançamento celebrou a resistência dos povos do Xingu e que permitiu vislumbrar possibilidades de reconstrução de um mundo desfigurado, abrindo espaço para novas perspectivas de futuro. Embora escrito por Ana, a publicação é fruto de uma experiência coletiva como revela em sua epígrafe: “Onde os seres são mútuos, as experiências são mais do que individuais” (Marshall Sahlins). Por essa razão, não havia palco, nem mesa, mas um microfone aberto.
O riberinho Cleo Francelino foi o primeiro a falar. Disse que os ribeirinhos são os conhecedores das coisas do Xingu, mas sem a parceria com “gente de fora”, outros não conheceriam suas histórias. Seu Raimundo e seu Aranô falaram que a importância do livro é deixar um registro para as futuras gerações, seus filhos e netos, que um dia poderão saber como foi dura sua luta. Maria Francineide disse que o Conselho mostrou para o mundo que eles, os ribeirinhos, existem e desejou que um próximo livro possa ser escrito sobre a felicidade daqueles que retornaram para o beiradão, e não mais sobre sua destruição. Rita Cavalcante, que dá vida à capa do livro, disse que o esforço de todos foi muito além da responsabilidade de cada um. Não se tratava apenas de uma etnografia escrita por uma antropóloga, mas de um livro entendido como “nosso” por pessoas que partilharam suas vidas e experiências ao longo de um processo bastante duro, mas cheio de belezas e aprendizados. E assim foram lembrados momentos importantes, expedições em campo, ataques por formigas, marmitas repartidas e muitíssimas reuniões.
A origem do Conselho Ribeirinho nos leva de volta ao ano de 2014, quando as famílias estavam sendo expulsas dos beiradões e ilhas do Rio Xingu pelo processo de deslocamento forçado provocado pela construção da usina hidrelétrica (UHE) de Belo Monte. Embora o deslocamento estivesse previsto, não havia no âmbito dos Estudos de Impacto Ambiental (EIA) da usina nenhuma referência aos ribeirinhos, seus modos de fazer e os territórios habitados por eles havia gerações. Tampouco havia no Plano Básico Ambiental (PBA) da usina a previsão de um modelo de reassentamento adequado, capaz de garantir, minimamente, a manutenção de seu modo de vida, ou medidas de mitigação de impactos e reparação de danos condizentes com sua organização social e especificidades culturais. Os ribeirinhos haviam sido excluídos do mapa.
Foi então que começou uma intensa procura, por parte destas famílias, das instituições de justiça. A primeira resposta veio em junho de 2015 com uma Inspeção Interinstitucional convocada pelo Ministério Públcio Federal (MPF). Desta inspeção surgiu uma força-tarefa liderada pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) que reuniu cientistas de diversas áreas do conhecimento e instituições para avaliar a questão dos ribeirinhos e propor soluções adequadas. O estudo foi coordenado por Manuela Carneiro da Cunha e Sônia Magalhães, realizado em colaboração com os ribeirinhos e apresentado em audiência pública na cidade de Altamira em novembro de 2016.
A audiência deu o impulso necessário para que os ribeirinhos formalizassem a organização coletiva que vinham construindo e garantiu a visibilidade necessária para que fosse reconhecida. Assim, em 2 de dezembro de 2016, foi criado o Conselho Ribeirinho, reunindo representantes das comunidades deslocadas por Belo Monte.
Desde sua criação o Conselho Ribeirinho enfrentou tarefas bastante complexas. A primeira delas foi reconhecer todas as famílias tradicionais moradoras da área hoje ocupada pelo reservatório da usina. Este processo durou meses e envolveu uma ampla mobilização e escuta das famílias que se encontravam dispersas pela cidade de Altamira e região. Mesmo após a conclusão do reconhecimento social, ainda foram necessários anos de articulação e incidência política para que, em meados de 2018, estas famílias fossem reconhecidas também pelo órgão licenciador e a empresa concessionária como atingidas pela usina.
O Conselho Ribeirinho também foi responsável, com apoio de um grupo técnico, pela elaboração de uma proposta de reassentamento que partia da principal premissa de seu modo de vida: a proximidade em relação ao Rio Xingu. Assim, o Território Ribeirinho, como foi chamada a proposta, prevê o retorno das quase 300 famílias ribeirinhas deslocadas para as margens do rio, detalhando áreas de uso familiar e coletivo e o local de moradia de cada uma das famílias, de modo a reconstruir o território habitado e suas redes de vizinhança.
Os conselheiros e todos aqueles que partilham de sua luta podem celebrar os 5 anos da fundação do conselho e o término de mais um ano com o sentimento de que, como disse Rita, foram além de sua responsabilidade. Embora apenas 14 famílias tenham sido reassentadas, das 292 que ainda aguardam o reassentamento longe do rio, hoje existe algum indício de que o retorno vai acontecer e o futuro já se esboça em interstícios de agroflorestas, plantadas pelos ribeirinhos, que começam a florescer onde a usina deixou apenas paliteiros, vazios de árvores apodrecendo.
Terror e resistência no Xingu é uma síntese atravessada por todo este processo. O livro começa com uma narrativa sobre a história de ocupação não indígena do médio curso do Rio Xingu, ao descrever a constituição histórica do beiradão a partir das tensões e conflitos que lhes são constituintes.
No segundo capítulo, é descrita a ruptura social e ecológica provocada pela instalação da UHE de Belo Monte e seus efeitos devastadores na vida das comunidades locais, especialmente os ribeirinhos expulsos de suas casas, do Rio Xingu e dos baixões de Altamira. O resultado deste processo é a desfiguração do mundo, que gerou, nas palavras da autora, um deslocamento ontológico, quando toda a ordem e sentido das coisas são alterados, fazendo com que tudo aquilo que é tido como certo, deixa de acontecer, causando desorientação, rupturas e adoecimento.
Por fim, os dois últimos capítulos tratam das respostas colocadas em movimento para fazer frente ao cenário de destruição provocado pela implantação da usina. No terceiro capítulo, intitulado “Repostas institucionais à catástrofe”, a autora trata das articulações e ações das instituições frente ao contexto de violação de direitos, descrevendo a atuação do Ministério Público Federal e da comunidade científica, bem como as respostas do governo federal e da Norte Energia, empresa concessionária da usina.
No quarto e último capítulo, "Resistências", são descritas as estratégias dos ribeirinhos para a retomada de seus territórios e modos de vida. Foi necessário que o Conselho Ribeirinho se apropriasse das tecnologias políticas do deslocamento forçado – cadastros, listas e mapas – para imprimir suas próprias lógicas, concepções e desejos e incidir politicamente nas negociações do licenciamento ambiental e criar soluções adequadas para a reconfiguração de seu mundo.
O livro se encerra mostrando como a organização em torno do Conselho Ribeirinho, a reativação das redes sociais preexistentes e o fortalecimento de outras parcerias possibilitaram a construção de uma proposta inovadora de reparação, o Território Ribeirinho, como garantia do direito ao retorno para o Rio Xingu, proposta esta que foi incluída como uma das condicionantes legais para a operação da UHE de Belo Monte.