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Ministro do STF diz que proteção ambiental é obrigação, após Bolsonaro negar crise na ONU

Em audiência na corte, ministro de Meio Ambiente culpa Noruega por suspensão de operações do Fundo Amazônia e não consegue justificar paralisação do Fundo Clima
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Reportagem e edição: Oswaldo Braga de Souza

O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso disse que “a proteção ambiental não é uma escolha política, mas um dever constitucional”, horas depois de Jair Bolsonaro negar a crise das queimadas e do desmatamento e sua responsabilidade sobre ela num discurso para a ONU. O presidente mencionou que tem uma política de “tolerância zero” contra crimes ambientais e acusou “índios e caboclos” pelos incêndios na Amazônia, entre outras afirmações falsas.

Barroso deu outros recados, em contraponto a Bolsonaro. “Para resolvermos nossos problemas, precisamos fazer diagnósticos corretos e não criar uma realidade imaginária paralela”, defendeu. “Há uma mistura de ceticismo com desconhecimento, apesar de a grande maioria dos cientistas afirmarem peremptoriamente que este é um grande problema e ele vem se agravando”, comentou, referindo-se às mudanças climáticas (saiba mais no box ao final da reportagem). O presidente e alguns de seus ministros minimizam o problema. O chanceler Ernesto Araújo chega a considerá-lo uma invenção de políticos de esquerda.

O ministro do STF deu as declarações numa audiência pública, realizada entre segunda e terça, na qual, assim como o mandatário brasileiro na assembleia do órgão internacional, alguns de seus auxiliares diretos negaram evidências científicas e usaram de teorias conspiratórias para defender o governo e atacar críticos. Sem apresentar nenhuma prova, o chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), Augusto Heleno, voltou a acusar organizações da sociedade civil de promover uma campanha internacional para derrubar Bolsonaro e disse que a explosão das queimadas decorre de fatores naturais.

Barroso promoveu o evento para subsidiar o julgamento de uma ação apresentada, em junho, por PSB, PSOL, PT e Rede que questiona a suspensão do Fundo Nacional de Mudanças Climáticas. Ele é relator do processo e resolveu transformar a oitiva num relato sobre toda a política ambiental. Ao todo, 66 pessoas participaram da audiência, a grande maioria pela internet, entre parlamentares, cientistas, representantes do poder público, sociedade civil e empresários.

Paralisação do fundo

Pesquisadores e ambientalistas repetiram que o fundo está parado por decisão política do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, que simplesmente extinguiu a Secretaria de Mudanças Climáticas do ministério na primeira semana da atual gestão, em janeiro de 2019. O órgão foi recriado em agosto deste ano.

Na audiência, Salles alegou que a ação judicial “perdeu objeto” porque vários de seus pedidos foram atendidos. Barroso informou que “isso será considerado”. Na verdade, o ministro de Meio Ambiente recriou o conselho gestor do Fundo Clima (depois de extingui-lo, em 2019), elaborou seu plano de investimento, liberou R$ 350 milhões de seu orçamento e formalizou o empenho de outros R$ 238 milhões recentemente, sob pressão, depois que os partidos de oposição apelaram ao STF.

O ministro tentou emplacar a versão de que a paralisação das operações ocorreu devido à espera do novo marco legal do saneamento, aprovado pelo Congresso, também em junho. Tentando minimizar a crise das queimadas e do desmatamento, Salles insistiu que o principal problema ambiental brasileiro é o saneamento e que vai direcionar dinheiro do fundo para projetos sobre o assunto.

O problema é que, como alertaram vários especialistas na audiência, as emissões de gases de efeito estufa do setor, oriundas de lixões e aterros sanitários, não passam de 5% das emissões totais do país e as regras do órgão de financiamento obrigam investimentos em outros setores. Quase 70% das emissões nacionais originam-se do desmatamento, degradação florestal e agropecuária.

Salles ainda tentou aproveitar a audiência para se defender de outra ação que tramita no STF, desta vez contra a paralisação do Fundo Amazônia. A relatora é a ministra Rosa Weber. Barroso ainda não marcou a data do julgamento de seu processo mas indicou que as duas ações devem ser analisadas conjuntamente.

No ano passado, o ministro de Meio Ambiente tentou mudar as regras de funcionamento e extinguiu o comitê orientador do Fundo Amazônia sem avisar Noruega e Alemanha, seus principais financiadores. Também alegou que havia irregularidades em projetos já aprovados, sem apresentar evidências concretas. As medidas geraram uma crise diplomática e a suspensão das operações. Por causa disso, mais de R$ 2 bilhões destinados a projetos de conservação estão parados. O fundo financia atividades de combate ao desmatamento, inclusive operações de órgãos como Ibama e secretarias estaduais de meio ambiente.

No evento no STF, o ministro culpou os noruegueses pelo problema. “Tem sido dito que o governo paralisou [o Fundo Amazônia], quando na verdade eis aqui a carta da embaixada da Noruega dizendo que, não concordando com a nova governança empregada pelo governo ao fundo, governança essa que passa pelo BNDES, portanto um banco público sujeito à administração do governo federal, foi a própria Noruega que sugeriu, na verdade requereu que não mais houvesse desembolsos do Fundo Amazônia enquanto a nova governança não fosse restabelecida”, disse.

“Estado de coisas inconstitucional”

O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), abriu a audiência, fez duras críticas à administração federal e classificou a paralisação do Fundo Clima de inconstitucional. “Espero que o STF, a partir desse grande trabalho de escuta e reflexão, seja capaz de contribuir com a construção de saídas para esse estado de coisas inconstitucional que atinge as políticas de proteção ao meio ambiente do país”, afirmou.

Ele disse que o governo “inflou artificialmente” o orçamento do Fundo Clima de 2019 ao enviar ao Congresso um projeto com créditos extras de R$ 195 milhões só em outubro. A proposta foi aprovada em dezembro, sem que o dinheiro pudesse ser usado. “Precisamos impor ao agente público negligente a responsabilidade por frustrar de forma imotivada a aplicação de recursos destinados pelo Poder Legislativo a políticas públicas de concretização de direitos fundamentais”, completou.

O ex-presidente do Banco Central Armínio Fraga também fez críticas à política ambiental bolsonarista. “Em função da piora concreta das taxas de desmatamento e de sinais abundantes, eu diria, de que prevalece hoje uma certa tolerância com a questão, o Brasil tem merecido uma imagem bastante negativa na cena internacional”, avaliou. “O mesmo obscurantismo que nos prejudicou e nos prejudica no combate à pandemia nos afeta nos temas ambientais. Qualquer hesitação nessa área reforça essa percepção negativa que se abate sobre nós”, acrescentou.

Para reverter a situação, Fraga defendeu que o Brasil não apenas cumpra com o compromisso assumido no Acordo de Paris, tratado internacional de mudanças climáticas assinado em 2015, como apresente metas mais ambiciosas de corte de emissões, em especial de recomposição de seus biomas.


“Não política”

“O que fica claro é a decisão do atual governo federal pela não política pública, não execução da Constituição Federal, dos deveres fundamentais, é a ação insuficiente, colocando em risco o direito de todos e todas ao meio ambiente ecologicamente equilibrado”, criticou o consultor jurídico do ISA Maurício Guetta.

Ele reforçou que o governo Bolsonaro engavetou o plano de combate ao desmatamento na Amazônia, criado em 2004, e está gastando muito menos no combate à derrubada da floresta e às queimadas do que gestões anteriores.

Guetta apresentou uma projeção, feita com base na execução orçamentária do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) até o dia 11/9, que mostra que o órgão pode fechar o ano com uma queda de 67% nos gastos efetivos com controle e fiscalização ambiental, de quase R$ 85 milhões para R$ 28,3 milhões, na comparação com 2019. No caso da prevenção e controle de incêndios, a queda pode chegar a 46%, de R$ 36,7 milhões para R$ 19,6 milhões. Os dados foram coletados no Sistema Integrado de Planejamento e Orçamento (Siop) e os valores de 2019 foram corrigidos usando o índice de inflação IPCA.

A mesma projeção aponta uma queda de quase 52% para a fiscalização ambiental e prevenção e combate a incêndios florestais do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), de R$ 34,6 milhões para R$ 16,6 milhões. O órgão gere as 336 Unidades de Conservação federais.

Segundo estimativa equivalente, a aplicação de multas por desmatamento pelo Ibama, até o fim do ano, também pode ficar muito abaixo do ano passado: a queda pode chegar a 30%, de 4,3 mil para 2,5 mil. O decréscimo deste ano pode chegar a 59% em relação a 2018.

Militarização do monitoramento do desmatamento

Outro expositor da audiência que não poupou o governo foi o físico Ricardo Galvão, exonerado, no ano passado, da direção do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), após Jair Bolsonaro contestar os dados sobre o aumento do desmatamento do órgão e acusar o cientista de “estar a serviço de alguma ONG” pelo fato do instituto divulgá-los sem restrições. Neste ano, é o vice-presidente, Hamilton Mourão, que tem atacado o Inpe, afirmando que seu trabalho na área está ultrapassado e, novamente, que servidores estariam tentando prejudicar o governo ao divulgar os dados. Após a repercussão negativa sobre suas críticas à essa divulgação, Mourão confessou que desconhecia o fato das informações serem públicas.

Galvão disse que Mourão faz “acusações levianas” e que o governo está desperdiçando recursos públicos ao pretender comprar novos sistemas de satélites para o Ministério da Defesa e a Polícia Federal vigiarem a derrubada da floresta. Ele apontou que o trabalho do Inpe é reconhecido internacionalmente e que esses novos sistemas não são adequados para cumprir a tarefa.

“O governo está claramente indicando a intenção de controlar as atividades de observação da Terra sob a ótica das aplicações militares”, ressaltou. Para ele, a medida poderá comprometer a credibilidade, a transparência e a publicidade dos dados sobre desmatamento produzidos pelo Brasil.

“Fatos consensuais e incontroversos”

“O mundo comporta múltiplos pontos de observação e a verdade não tem dono, embora a mentira deliberada tenha. Um dos nossos esforços foi o de identificar narrativas que não tenham apoio nos fatos. Essa é uma corte de Justiça e nós trabalhamos com provas, fatos e juízos tão objetivos quanto possível”, afirmou o ministro Barroso, ao final da audiência. Em seguida, listou o que considerou os principais “fatos consensuais e incontroversos” do evento:

- O desmatamento cresceu em 2019 e ainda mais em 2020
- Houve redução do número de multas ambientais no atual governo
- Até a apresentação da ação, o Fundo Clima não tinha plano de investimentos nem alocação de recursos neste governo
- Consumidores e empresas internacionais ameaçam boicotar produtos brasileiros pela percepção crítica da política ambiental
- As emissões brasileiras decorrem principalmente de atividades criminosas, como grilagem, exploração de madeira e desmatamento, ao contrário de outros países, onde elas decorrem do progresso (indústria e consumo)
- Embora o desmatamento da Amazônia Legal chegue quase a 20% do território, o PIB da região continua estagnado em torno de 8% [do PIB nacional] desde os anos 1970, o que demonstra que o desmatamento não gera riquezas para a região

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