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Mulheres indígenas do Rio Negro debatem autocuidado

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Com foco na valorização da alimentação indígena para combater a obesidade e o aumento de doenças crônicas não transmissíveis, oficina-curso ocorrerá entre os dias 25 e 28 de setembro no Instituto Socioambiental (ISA) no Amazonas
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Na pandemia de Covid-19, os médicos observaram que a obesidade foi um fator de risco para o agravamento das infecções. Como o quadro está diretamente associado a doenças crônicas não transmissíveis como diabetes e hipertensão, o excesso de peso favorece a piora do paciente, sobretudo os mais jovens, evoluindo rapidamente para a síndrome do desconforto respiratório agudo.

Assim como em todo o país, o município mais indígena do Brasil, São Gabriel da Cachoeira (AM), também sofre com a obesidade relacionada ao aumento do consumo de alimentos ultraprocessados, como são chamados os produtos alimentícios que passaram por um alto nível de industrialização e adição de ingredientes como conservantes, corantes e realçadores de sabor.

A Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM) alerta que 55% da população brasileira está acima do peso, ou seja, mais de 100 milhões de pessoas sofrem com obesidade ou sobrepeso. Os dados alarmantes são do levantamento da Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel), realizado em 2019.

Em reportagem do Conselho Federal de Nutricionistas (CFN), a presidente do órgão, Rita Frumento, chama atenção para esse resultado. “Os hábitos alimentares influenciam diretamente na qualidade de vida do indivíduo. Então, temos que fazer uma leitura desse quadro de maneira ampla, sob duas premissas: uma, que a alimentação balanceada é uma grande aliada na prevenção das doenças crônicas não transmissíveis; e a outra é que o nutricionista, como profissional da saúde, é o agente indutor e executor de políticas públicas para prevenção e tratamento da obesidade. Porém, temos outra grande preocupação momentânea, que é a questão da Covid-19 e o aumento no consumo de produtos ultraprocessados, que estão associados diretamente aos casos de obesidade, hipertensão e diabetes”.

Mukaturu, comunidades de autocuidado

Nesse contexto é que o Departamento de Mulheres Indígenas (Dmirn) da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn) uniu-se ao Instituto Socioambiental (ISA) e ao Instituto Aleema para realizar o curso-oficina Mukaturu, comunidades de autocuidado, com apoio da ONU Mulheres e da Nia Tero. O foco é o desenvolvimento do conceito de autocuidado na perspectiva das mulheres indígenas rionegrinas a partir da valorização da alimentação produzida localmente e orgânica em detrimento dos artigos industrializados.

O segundo módulo da atividade ocorrerá presencialmente na sede do ISA em São Gabriel da Cachoeira entre os dias 25 e 28 de setembro, contando com vídeo aulas gravadas pela médica homeopata Nazira Scaffi, coordenadora do Instituto Aleema, e com as instruções presenciais de Eufélia Lima, do povo Tariano, enfermeira com especialização em Saúde Indígena pela Unifesp (Universidade Federal de São Paulo).



Vinte mulheres indígenas das etnias Baré, Baniwa, Desana, Dâw, Wanano, Tukano, Tariano e Yanomami estão participando dessa formação, que tem como objetivo desenvolver um processo de longo prazo para que essas lideranças femininas sejam multiplicadoras em suas regiões, formando assim comunidades de autocuidado. Mukaturu, na língua nheengatu, um dos 4 idiomas indígenas cooficiais em São Gabriel, significa cuidado.

No Plano de Gestão Territorial e Ambiental (PGTA Wasu) das Terras Indígenas do Médio e Alto Rio Negro, a necessidade de se aumentar o investimento em prevenção na área de saúde indígena foi ressaltado. Foi inclusive destacada, antes mesmo da pandemia, a importância de se "diminuir o consumo de alimentos industrializados, sobretudo açúcar, salgadinhos, biscoitos e refrigerantes". Foi ainda observado que esses alimentos contribuem para o aumento do descarte de lixo nas comunidades.

Alerta global

Em 2012, a Organização Mundial da Saúde (OMS) fez um alerta global para a incidência epidêmica das doenças crônicas não transmissíveis em todo o mundo, como a diabetes, depressão e hipertensão arterial. Para a médica Nazira Scaffi, essas doenças crônicas serviram de base para o agravamento da pandemia de Covid-19, já que as comorbidades facilitam e agravam a infecção pelo coronavírus. “A obesidade, o cansaço e a ansiedade são os primeiros sinais deste tipo de adoecimento”, alerta Nazira.



“Essas doenças são decorrentes do estilo de vida e da alimentação, sendo, portanto, evitáveis desde que haja um processo educativo e condições para estimular o seu enfrentamento. Os povos indígenas são os que mais rapidamente adoecem no contato intercultural, como demonstram estudos. O quadro também se agrava nas comunidades indígenas pela carência de assistência e de treinamento para a conscientização das equipes de saúde indígena para abordar as doenças crônicas e a mudança do estilo de vida em contextos culturais diferenciados.

Mulheres e comunidades como protagonistas

A metodologia do curso Mukaturu estimula o protagonismo das comunidades no enfrentamento dessas doenças. O problema exige uma intervenção educativa de promoção à saúde, explica Scaffi, que seja culturalmente adaptada e proporcione o conhecimento e a motivação para o autocuidado. Assim, a experiência do curso Mukaturu visa desenvolver à promoção da saúde e prevenção das doenças crônicas a partir de conteúdos que explicam como ocorre a evolução do adoecimento no corpo e os impactos sociais que eles causam.

Além da perspectiva da medicina, conhecedores indígenas também colaboraram com os conteúdos do curso Mukaturu, como a especialista em plantas medicinais, Cecília Albuquerque, do povo Piratapuia, e o benzedor Ercolino Alves, da etnia Desana. Ambos tiveram um papel importante durante a pandemia de Covid-19 no Alto Rio Negro ajudando a população a se fortalecer e se prevenir da doença a partir dos conhecimentos tradicionais indígenas sobre manutenção da saúde.

Para esse trabalho com as comunidades do rio Negro, foi feita uma pesquisa sobre as cosmologias locais, os sistemas produtivos e os alimentos consumidos pelas comunidades, assim como sobre as mudanças no modo de viver de cada povo. A metodologia desenvolvida se baseia, segundo Scaffi, na socioeconomia e no sociopsicodrama desenvolvido por Jacob Levy Moreno. “A partir das vivências, debates e da experiência individual com a melhoria dos hábitos alimentares, espera-se que as participantes verifiquem os benefícios em seu próprio estado de saúde. A partir desse ponto, elas aprimoram o seu olhar sobre as condições de saúde e as transformações e intervenções que venham a ser necessárias para proteger a saúde de suas comunidades”, explica a médica.

Para a enfermeira Eufélia Lima, Tariana, instrutora do curso Mukaturu, as expectativas para esse segundo módulo são as melhores possíveis em relação ao empenho das participantes em promover uma alimentação saudável e, principalmente, diminuir o consumo de açúcar, muito elevado nas comunidades. No primeiro módulo foi feita uma avaliação das participantes, medindo seu IMC (índice de massa corporal), assim como conversas sobre os novos hábitos alimentares, que incluem produtos industrializados, como refrigerantes, bolos, pães, macarrão instantâneo e outros produtos facilmente encontrados nas prateleiras dos mercados e vendinhas locais.



“A gente espera que elas estejam fortalecendo o conhecimento delas sobre saúde. Também desejamos que as participantes nos ajudem a pensar sobre como podemos levar esses conhecimentos para o lugar onde elas vivem. Elas vão construir a forma de desenvolver a melhoria da saúde e da qualidade de vida, tentando minimizar as doenças crônicas não transmissíveis a partir da valorização da comida da nossa região. Dá pra gente substituir vários alimentos resgatando os alimentos locais”, enfatiza Eufélia.

Na sua percepção, está sendo colocada "uma sementinha” para promover uma mudança pela melhoria da saúde, que precisa ser fortalecida nesse contexto da pandemia e das sequelas deixadas em vários doentes. “Primeiro estamos trabalhando o autocuidado com a saúde de cada uma das mulheres participantes para depois trabalharmos o coletivo através delas. Essa missão é desafiadora e ficamos felizes pela possibilidade desse processo com as mulheres poder ser multiplicado e vir a ajudar a fortalecer a saúde coletiva dos povos do rio Negro”, conclui Eufélia, que é ex-secretária de Saúde de São Gabriel da Cachoeira.

Autocuidado como ato político

No final de 2020, percebemos o quanto vinham aumentando os relatos sobre pessoas sofrendo com as sequelas da Covid-19 nas comunidades indígenas do rio Negro. Ou seja, os números de curados precisam ser observados com cautela, pois muita gente que sobreviveu à doença ainda sofre com diferentes tipos de problemas, como queda de cabelo, cansaço, falta de ar, ansiedade, perda de memória, confusão mental e até depressão. Uma nota técnica sobre a necessidade de atenção à saúde mental em São Gabriel da Cachoeira foi, inclusive, elaborada pelos Médicos Sem Fronteiras, que estavam atuando na região no ano passado e direcionaram esse ponto ao Comitê Interinstitucional de Enfrentamento ao Covid-19 do município, que o ISA e a Foirn também integram.

Como muitas pessoas vivem da agricultura, as sequelas são ainda mais sentidas, pois o cansaço, aliado à falta de ar, impede o trabalho na roça ou diminui consideravelmente o tempo gasto pela agricultora em suas atividades devido à falta de condições físicas. Com isso vem a mudança na alimentação, mais alimentos industrializados são introduzidos e a perda da rotina também provoca alterações no humor e consequentemente na saúde psicológica da pessoa.


As mulheres indígenas lideranças, na linha de frente dos trabalhos de enfrentamento à pandemia, também se queixavam e relatavam problemas de saúde. Foi assim que a oficina curso Mukaturu nasceu. De uma necessidade ainda mais acentuada pela pandemia de Covid-19 de se cuidar da saúde, de se ter tempo para se alimentar bem, de cuidar de si e da sua família e comunidade.

Muitas mulheres passaram a fazer chás, banhos de ervas e xaropes de plantas amazônicas para fortalecer o sistema imunológico tanto para se prevenir, quanto para se fortalecer contra o coronavírus. Entretanto, pessoas com comorbidades, sobretudo diabetes e hipertensão, ficaram muito vulneráveis à infecção e evoluíram para casos graves da doença e, infelizmente, algumas não resistiram.

Vinte mulheres ligadas à rede da Foirn estão participando do curso Mukaturu para desenvolver o conceito de autocuidado sob a perspectiva indígena do rio Negro. Lembrando a escritora e ativista pelos direitos civis nos Estados Unidos, Audre Lorde, ícone da luta antirracismo, “o autocuidado é também um ato político, é autopreservação”.

Diante de tantas ameaças à sobrevivência em seus territórios, as mulheres indígenas rionegrinas se unem para cuidar de si e umas das outras, tecendo uma rede forte a favor da saúde, dos alimentos sem veneno e rompendo com o produtivismo a qualquer custo. Essa lógica produtivista que tenta impor modos hegemônicos de vida ao vender imagens de sucesso e de felicidade a partir do consumo, mas que só vem fomentando doenças, desigualdades sociais e sofrimento ambiental cada vez mais profundos e graves em todo o mundo.

Juliana Radler
ISA
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