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Na tradição indígena, a Casa dos Homens é o lugar onde eles se reúnem para tomar decisões. Mulheres não entram. Isso vale para outras situações. Em algumas etnias, como os Yawalapiti, do Parque Indígena do Xingu (PIX), existem objetos sagrados, como as flautas sagradas, que não podem ser vistas por mulheres.
Ana Terra Yawalapiti e sua irmã Watatakalu fazem parte de um grupo de mulheres da aldeia Tuatuari, no Alto Xingu, que iniciaram no ano passado a construção da Casa das Mulheres, um sonho que acalentavam há anos. Em entrevista ao ISA, as irmãs, filhas do cacique Pirakumã Yawalipiti, que morreu subitamente em agosto de 2015, contaram os desafios de construir algo novo para ampliar seu espaço, adquirir mais visibilidade e assumir a liderança nas comunidades e fora das aldeias. É bom ressaltar que o movimento de mulheres no PIX é amplo e consolidado com a Associação Yamorikumã.
Já nas cidades, as mulheres indígenas têm participado da luta pelas demandas indígenas junto à sociedade e aos governos. Ana Terra, por exemplo, se divide entre a cidade de Canarana e a aldeia. Se os homens têm a casa deles para reuniões, as mulheres têm pouco ou nenhum espaço. As ocas não são adequadas para reuniões e as escolas são utilizadas para o ensino regular. Para as reuniões sobra o ar livre, desconfortável para elas e seus filhos, sujeitos ao sol e à chuva. Com isso, responsabilidades que cabem às mulheres na cultura indígena, como passar aos filhos os ensinamentos tradicionais, acabam ficando comprometidas.
Iniciativa inspiradora de luta e trabalho
“A maioria das mulheres não sabe mais fazer rede, conhecimento tradicional transmitido das mães para as filhas. Então a gente quer resgatar esses materiais e preservar nossa cultura”, explica Ana Terra. A ideia de um espaço próprio começou a ser concebido há cerca de três anos quando várias mulheres se reuniram na casa de Ana Terra e ela percebeu que muitas não sabiam fazer rede. Em outra reunião para falar sobre o ingresso da aldeia na Rede de Sementes do Xingu, a Casa das Mulheres surgiu na pauta e o sonho com o passar do tempo passou a fazer parte dos planos.
Watatakalu tem bom trânsito junto a empresários, ONGs e políticos em Canarana (MT) e em Brasília. Foi ela que começou a batalhar apoio para a aquisição de materiais para a construção. A Funai, a Associação Terra Indígena do Xingu (Atix) e várias empresas de Canarana ajudaram.
Muitos homens não acreditavam que as mulheres conseguiriam os materiais de construção. Alguns inclusive tentavam desanimá-las. “Os homens conseguem as coisas porque eles vão atrás. A gente tinha que correr atrás. Decidimos ir atrás porque pensamos: não custa nada pedir. Foi interessante como isso repercutiu na aldeia. Houve muita inveja, as mulheres ficaram receosas, mas quando viram que daria certo, que a gente estava conseguindo os materiais, elas ficaram muito animadas”, disse Watatakalu.
Morte de Pirakumã paralisou as obras
Com o material de construção em mãos, como arrame, prego, cerrote, era preciso buscar a madeira no mato. O problema é que poucos homens estavam dispostos a ajudar. Os que foram eram os maridos das mulheres que encabeçavam o projeto, depois de uma ameaça de greve de sexo. Já outros foram pagos para ajudar, com dinheiro que veio da venda de artesanato produzido pelas mulheres.
Em abril do ano passado, mulheres, crianças e alguns homens saíram em mutirão para tirar madeira a cerca de 20 km da aldeia, dando início aos trabalhos. Foram duas semanas, uma para cortar a madeira e outra para transportar. Na sequência, homens e mulheres se juntaram para fincar as estacas maiores no chão, formando a base da casa. Falta ainda a estrutura do telhado, a palha, a parede que será de barro e o piso que será de cimento.
A construção foi paralisada por conta da morte repentina do cacique Pirakumã. Ele era o arquiteto da obra e um dos poucos homens incentivadores do grupo das mulheres. O abalo foi grande. Passado o período de luto, o grupo de mulheres decidiu que era tempo de retomar as obras. Watatakalu iniciou nova jornada para conseguir mais material de construção porque ainda falta combustível, cimento para o piso, 150 kg de arrame recozido para as amarrações - são necessários 300 kg e 150 kg foram doados-, além de alimento para as pessoas que estarão trabalhando.
As obras devem ser reiniciadas neste mês de abril e em maio, a casa deverá estar pronta. Nesta segunda etapa muitos homens se comprometeram a ajudar. O cacique Aritana, irmão de Pirakumã, também apoia o projeto e convocou toda aldeia para os trabalhos. “A gente até disse que se os homens quisessem podíamos pagar, mas Aritana não deixou os homens responderem e disse que eles vão ajudar e que não precisa pagar ninguém”, contou Watatakalu.
A inauguração acontecerá com o Kuarup (festa de homenagem aos mortos), que neste ano será entre 10 e 15 de agosto na aldeia Tuatuari dos Yawalapiti. Ana Terra avalia que este Kuarup, que terá Pirakumã entre os homenageados, promete ser o maior da história do PIX desde a morte de um de seus fundadores, Orlando Villas Bôas, que não era indígena. Todas as aldeias devem participar e são esperados mais de cinco mil indígenas na festa.
Pirakumã, muito conhecido no Parque, foi por muitos anos servidor e até chefe da coordenação local da Funai. “Meu pai fazia parte do movimento indígena, conhecia muitas pessoas e estarão presentes todos os povos. Resolvemos fazer a inauguração com o Kuarup porque meu pai apoiou muito a gente, ele que desenhou a casa”, relata Ana Terra. Por esse motivo uma parte da casa abrigará um museu contando a história do cacique, com vídeos, fotografias e frases que ele dizia.
Casa será inaugurada em agosto durante Kuarup
Para realizar este mega evento que deverá fazer história no PIX, Watatakalu foi a Brasília buscar apoio junto ao Ministério da Cultura, que se comprometeu juntamente com a Funai a apoiar o Kuarup. Embaixadas estrangeiras, como a do Canadá e da Bélgica também vão dar apoio. Na tradição indígena, a família do homenageado tem a obrigação de dar transporte e comida a todos os visitantes.
A Casa das Mulheres será usada para transmitir conhecimentos, e tomar decisões. Será composta pela sala de acervo e museu, abrigando itens que representam a mulher Yawalapiti e a história de Pirakumã; por uma sala de reuniões, onde serão realizadas as oficinas e produzidos os artesanatos; e uma cozinha, para fabricação dos beijus e a extração de polvilho. O lucro da venda dos artesanatos e demais produtos servirá para manter o espaço. Outra parte do recurso para manutenção virá da venda de sementes florestais, pois a partir deste ano as mulheres Yawalapiti também pretendem integrar a Rede de Sementes do Xingu, como coletoras.
A inauguração da casa deverá estimular mulheres de outras aldeias a construir seu espaço, para fortalecer seu protagonismo dentro e fora da comunidade. Esse é um dos objetivos para inaugurar o espaço durante o Kuarup. “Aproveitar que as mulheres que vão, já participem dessa inauguração. Queremos mostrar o caminho para conseguir”, diz Ana Terra.