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Por Infoamazonia*
Novo estudo publicado na edição do dia 27 de janeiro da revista Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS) reúne evidências de que povos indígenas e populações tradicionais têm de maneira concreta e mensurável atuado como os guardiões da floresta amazônica.
Um time de 19 pesquisadores calculou qual a importância das áreas protegidas e territórios indígenas na manutenção dos estoques de carbono da Amazônia. Neste caso, considerou-se os limites biogeográficos e não a extensão da bacia hidrográfica ou as fronteiras político-administrativas de cada país.
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De toda a biomassa estimada para a região amazônica (73 bilhões de toneladas de carbono), 58% encontram-se dentro de territórios indígenas e áreas protegidas. Segundo o artigo, os povos indígenas e populações tradicionais têm contribuído diretamente para regular o clima e evitar que o aquecimento da Terra seja ainda mais intenso.
O estudo foi realizado por pesquisadores da Rede Amazônica de Informação Socioambiental Georreferenciada (Raisg) em aliança com o centro de pesquisa Woods Hole (WHRC), localizado em Massachusetts, EUA, e a Coordenação das Organizações Indígenas da Bacia Amazônica (COICA) e o Fundo de Defesa Ambiental (EDF).
A Raisg é um consórcio de oito organizações não governamentais de seis países da Pan-Amazônia (Bolivia, Brazil, Colômbia, Equador, Peru e Venezuela).
No estudo, a já conhecida hipótese de que estas populações são "guardiões da floresta" foi de fato confirmada. Ou seja, por possuírem menores taxas de desmatamento e degradação florestal, estas áreas apresentam menores perdas de carbono ao longo dos anos.
Nos nove países da Amazônia, existem 3344 territórios indígenas e 522 áreas protegidas. Somando-se todas estas terras, entre áreas já reconhecidas ou ainda na fase de demarcação, revela-se que 52% da Amazônia está sob algum tipo de proteção.
Mais do que apenas contabilizar a quantidade total de carbono armazenado, o artigo “The Role of Forest Conversion, Degradation, and Disturbance in the Carbon Dynamics of Amazon Indigenous Territories and Protected Areas” investiga como o estoque foi variando ao longo dos anos.
Utilizando imagens do sensor MODIS combinadas com medições feitas em campo, os pesquisadores calcularam quais foram os gradientes de mudança nos estoques de carbono. A partir de então passaram a contabilizar o quanto destas variações ocorreram dentro ou fora de territórios protegidos.
O artigo faz um balanço de perdas e ganhos de biomassa. Indica que entre 2003 e 2016, as perdas (3,4 bilhões de toneladas) são quase duas vezes maiores que os ganhos (1,2 bilhão de toneladas). Mas, ainda assim, as reduções são menores dentro de territórios protegidos do que fora deles.
O artigo dos cientistas da Raisg, WHRC, Coica e EDF indica que, embora as terras indígenas e áreas protegidas representam apenas 10% de todas as perdas líquidas de carbono ocorrida na Amazônia em 2003 - 2016, existe uma piora no cenário.
O estoque de carbono é mal gerenciado pelos países amazônicos: há uma crescente perda e a reposição não dá conta. Com o desmatamento, queimadas e a degradação de florestas nativas, o estoque de carbono está literalmente sendo enviado pelos ares.
Uma das autoras, Carmen Josse, da Fundação Ecociência no Equador, aponta a importância de reconhecer a real dimensão da contribuição dos povos indígenas na mitigação do aquecimento global. “Isto é reconhecer que eles são efetivamente os guardiões desses estoques de carbono e não estão recebendo os recursos necessários para fazer este trabalho”.
O estudos contou com um acompanhamento de representantes indígenas que estão associados na COICA, organização que representa povos dos nove países da Amazônia. Os pesquisadores querem que as lideranças das centenas de etnias assumam uma voz nas discussões sobre o combate às mudanças climáticas, e utilizem o novo estudo como base para argumentação.
*Como parte do lançamento do estudo, a Raisg realizou em parceria com o InfoAmazonia, o vídeo Carbono Vivo que explica os principais resultados do estudo e traz entrevistas com pesquisadores que participaram do estudo
Estudos demonstrando a efetividade de territórios indígenas e áreas naturais protegidas em barrar o avanço da devastação têm sido recorrentes nas últimas décadas. A inovação do estudo é mostrar a dinâmica das emissões.
Este olhar sobre o carbono apontou uma das conclusões mais importantes: mesmo que não visível, existe uma perda num prazo mais alargado de tempo.
Ao contrário da tendência de perda acelerada em terras sem status de proteção, as terras indígenas e áreas protegidas sofrem mais com a degradação do que com o desmatamento.
O desmatamento é o corte raso, a remoção completa da cobertura vegetal. A degradação ou distúrbio é a perda gradual e com corte seletivo de madeira ou perda de densidade florestal devido a outras causas antropogênicas ou naturais. Uma vez degradada, a floresta se torna mais suscetível a incêndios o que pode levar a uma perda ainda mais rápida dos estoques de carbono no futuro.
Na Amazônia, 47% de todas as emissões vem da degradação. Essa percentual é preocupante diz Carmen Josse, pois essa é uma questão "praticamente ignorada" nas políticas públicas. Até hoje, os sistemas de monitoramento de perda de cobertura florestal e mitigação das emissões por mudança no uso da terra estão quase que totalmente focados no combate ao desmatamento. As imagens de satélite são processadas para captar apenas a supressão total de vegetação, o corte raso.
“Captar a dinâmica da degradação é muito importante para mostrar como as perdas de carbono estão avançando dentro de territórios indígenas e áreas protegidas”, aponta Cícero Augusto, também autor do estudo e coordenador de geoprocessamento do Instituto Socioambiental no Brasil.
O estudo mostrou que em sete países, a degradação florestal é a principal responsável pelas emissões de carbono, com porcentagem que varia entre 63% e 85 % das perdas em cada país. Na média entre todos os países, a degradação causa 75% das emissões. Com exceção do Brasil e Bolívia, onde a dinâmica de ocupação de terras para a produção agropecuária exige abertura de novas áreas. Nos outros sete países, a pressão maior advém do corte seletivo de madeira, das estradas, da exploração petroleira e os garimpos clandestinos para a extração de ouro.
O cenário para a manutenção dos estoques florestais na Amazônia não é dos mais favoráveis. Em 2019, o mundo parou em alarme diante das terríveis queimadas na Amazônia, em especial no Brasil e na Bolívia. Imagens de grandes extensões de floresta em chamas, com gigantes colunas de fumaça, foram capazes de mobilizar a opinião pública global.
Naquele momento, e ainda agora, um dos clichês repetidos à exaustão nos meios de comunicação era o de que a floresta amazônica é o “pulmão do mundo”. A metáfora, embora baseada em um fato científico verdadeiro - o de que a Amazônia produz 20% do oxigênio de nosso planeta - é equivocada. Nem um milímetro deste oxigênio sequer chega a nós humanos.
Quando fazem uma leitura sobre o papel da grande floresta tropical para nossa sobrevivência, o que destacam os cientistas é exatamente sua função de reguladora do clima.
Os dados da novo estudo, quando dissecados, mostram tendências claras. Em todas as categorias investigadas, as únicas que apresentam algum ganho são os territórios indígenas, sejam os já reconhecidos ou aqueles que estão ainda em fase de proposição.
Portanto, os debates sobre como evitar o aquecimento global, devem passar pelo tema de posse e regularização de terras. Os pesquisadores argumentam que enquanto se fala muito sobre criação de projetos de desmatamento evitado, a implementação no campo nem sempre é fácil.
Mas na Amazônia, as práticas de manejo florestal exercida pelos indígenas e populações tradicionais demonstram exatamente este caminho de sustentabilidade.
“Como os indígenas e comunidades locais valorizam bases de recursos diversificadas que lhes permitem evitar dependência dos mercados de subsistência, suas práticas de uso da terra tendem a ser mais holísticas, combinando conhecimento tradicional com perspectivas modernas de uso sustentável. Pessoas indígenas e as comunidades locais também protegem suas terras de maneiras mais eficazes e menos caras do que alternativas patrocinadas pelo governo”, afirma o estudo.
Hoje, há uma tendência generalizada em toda a Amazônia de avanço de atividades econômicas nos territórios protegidos. De acordo com o artigo, embora 87% dos territórios indígenas estejam formalmente protegidos, existe em um quarto deles (24%) sobreposição com áreas de mineração e poços petroleiros. Este quadro, influenciado por recentes acontecimentos políticos, é mais acentuado no Brasil, Colômbia e Venezuela.
“Infelizmente, os povos indígenas, que melhor gerenciam e conservam as florestas graças às suas práticas ancestrais, são os primeiros afetados pela perda da floresta e pelo aumento das emissões de carbono, uma vez que os eventos climáticos afetam os recursos que são fundamental para sua qualidade de vida. Agora eles devem não apenas enfrentar políticas e ameaças adversas de invasores e colonos, mas também os efeitos das mudanças climáticas", observa Sandra Ríos, especialista do Instituto del Bien Común, no Peru.