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O que está em jogo com a nomeação de um missionário para a coordenação de isolados da Funai

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Indigenistas temem mudança na política de não contato; no passado, doenças levadas por brancos em expedições dizimaram populações inteiras
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A provável nomeação de um missionário evangelista para a Coordenação Geral de Índios Isolados e de Recente Contato (CGIIRC), da Fundação Nacional do Índio (Funai), emitiu um alerta vermelho para indigenistas que trabalham na área. Os indígenas isolados não têm contato com não indígenas e tampouco com outros indígenas. No Brasil, existem 115 registros de grupos, 28 deles confirmados.

Na manhã desta sexta-feira (31/01), a imprensa brasileira noticiou a intenção da Funai de nomear Ricardo Lopes Dias para o cargo. Lopes foi membro da Missão Novas Tribos do Brasil (MNTB), conhecida pelo trabalho de evangelização de indígenas. Leia a nota de repúdio da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab).

Quem estava no comando da CGIIRC antes era Bruno Pereira, exonerado em outubro de 2019 do cargo sem nenhuma explicação, o que gerou críticas de ex-coordenadores e funcionários da Funai.

Em sua tese de mestrado, “Siyude: as ‘traduções’ Matses do contato histórico com missionárias do Summer Institute of Linguistics”, Dias afirma estar empenhado em realizar o trabalho evangelístico de indígenas. “Após ouvir um missionário veterano expondo a necessidade de novos voluntários para o trabalho evangelístico de indígenas, decidi empenhar-me especialmente nessa causa”, relata ele em um trecho.

A indicação de Dias alarma indigenistas, que vêem no nome um risco à política consolidada de não contato com essas populações e o respeito ao isolamento voluntário desses povos. Historicamente, os missionários procuram promover o contato com povos indígenas isolados e de recente contato para evangelizá-los, o que contraria uma política consolidada no Brasil, referência para as políticas públicas de países vizinhas.

A política de não contato e de respeitar o isolamento voluntário foi instituída na década de 1980, após o fracasso de inúmeras missões de contato com os povos indígenas ao longo do século XX, responsáveis por dizimar populações inteiras. A CGIIRC surgiu após essa mudança de entendimento e seu objetivo principal sempre foi garantir a proteção dos indígenas e das terras onde estão, inibindo invasões. Ou seja, permitindo a integridade do modo de vida dos isolados, que dependem intrinsecamente da floresta para sobreviver. Essa política também está em concordância com instrumentos legais internacionais dos quais o Brasil faz parte, como a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas e a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Eles garantem a esses povos sua opção pelo isolamento voluntário.

“Cabe à Coordenação de Índios Isolados da Funai garantir a sua proteção física e cultural, sendo imprópria e ilegal entregá-la a quem tem, por missão, destruir suas identidades culturais e organizações sociais próprias”, afirma Márcio Santilli, sócio-fundador do Instituto Socioambiental (ISA).

Pela situação de isolamento, esses povos são muito mais vulneráveis a doenças e epidemias. Durante o século XX, nessas expedições de contato, agentes do Estado contaminaram populações com doenças para as quais elas não tinham nenhum resistência. O resultado foi desastroso. No livro “Os Fuzis e As Flechas”, o jornalista Rubens Valente documenta como essas expedições muitas vezes contaram com o apoio de missionários cristãos, inclusive os da MNTB. No site da MNTB, que hoje estava fora do ar, eles afirmam “a missão de viver integralmente para alcançar os povos perdidos. Até que a última tribo, a última família, o último homem tenha ouvido sobre a maravilhosa salvação do Senhor Jesus Cristo".

Douglas Rodrigues, médico sanitarista especializado em saúde indígena, traça um panorama desse cenário na publicação “Cercos e Resistências: Povos Indígenas Isolados no Brasil”, produzida pelo ISA. Rodrigues aponta que alguns povos perderam 90% de sua população. É o caso dos Nambikwara. Antes do contato, eram 10.000 indivíduos. Nove mil morreram em decorrência de epidemias de sarampo, gripe, coqueluche e gonorreia. Situação parecida foi vivida pelos Panará. Entre 1973 e 1976, 80% da população morreu em decorrência da gripe e da malária. De 400 indivíduos, restaram apenas 79.

Veja a tabela abaixo:



No final de 2018, um missionário evangélico entrou na Terra Indígena Hi-Merimã, onde vivem os isolados Hi-Merimã (registro confirmado pela Funai). Sua intenção era justamente evangelizar esses indígenas, contra a sua vontade. O missionário foi retirado a tempo, antes do contato. Na publicação do ISA, Daniel Cangussu, coordenador da Frente de Proteção Etnoambiental (FPE) Madeira-Purus, e responsável por monitorar e proteger o território Hi-Merimã, aponta os perigos de um contato como esse.

“A FPE mantém um controle rigoroso da saúde dos seus funcionários e colaboradores. A cada entrada em campo para atuação direta com os Suruwaha ou em expedições pelo território Hi-Merimã, são realizados exames de saúde entre os membros das equipes para garantir que não sejamos vetores de doenças. E essa não é uma preocupação de um missionário. Sabemos que alguns deles, em um passado não tão distante, implementaram expedições pelo território Hi-Merimã, algumas delas interceptadas pela coordenação da FPE.

Há relatos de indígenas do entorno e que participaram dessas expedições junto aos missionários sobre pessoas gripadas durante as caminhadas. Pessoas que tiveram febre. Então, se acontece um encontro em uma situação assim, isso pode gerar o extermínio completo da comunidade. O longo período de isolamento impediu que o sistema imunológico desses povos pudesse dar respostas imunológicas eficientes a alguns patógenos [organismos que provocam doenças] comuns entre a gente. Um contato, neste contexto, gera um risco epidemiológico com resultados tão severos quanto todas as outras pressões às quais os povos indígenas isolados do Brasil estão sujeitos”, explica Cangussu.

Para saber mais… a política de não contato

A nova premissa do “não-contato” e o respeito à autonomia e à autodeterminação desses povos pela formulação de políticas públicas (Portarias da FUNAI 1900 e 1901, de 06 de julho de 1987, e 1047, de 29 de agosto de 1988) estabeleceram novas diretrizes e ações de proteção territorial e ambiental dos territórios ocupados por eles. A atual política só considera a perspectiva do contato se houver risco de extermínio do grupo. Nesse caso, deveriam ser realizadas ações educativas para tornar os índios autossuficientes. A partir desse momento, as ações de saúde pós-contato se tornam prioridade, outro um avanço importante proporcionado pela nova política. Nesse caso, vale ressaltar o esforço de médicos, indigenistas, antropólogos e servidores da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) e da Funai para a publicação da Portaria Conjunta nº 4.094 de 20 de dezembro de 2018 entre a FUNAI e o Ministério da Saúde, que “Define princípios, diretrizes e estratégias para a atenção à saúde dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato”. Apesar de ter sido um grande avanço, a recomendação contida no Art. 22 da referida Portaria ainda não foi cumprida. Ou seja, ainda não foi publicado o documento orientador para a elaboração dos Planos de Contingência para todos os registros confirmados de índios isolados no país.

Clara Roman
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